José
Afonso
Solidário, Inquieto e Músico
Mas em Dezembro de 2002 porquê José Afonso (JA)? Epitome
de um sentir radicalmente português, a sua obra é bem a
presentificação desse sentir/viver fecundo de futuro.
Análogo a Fernando Pessoa pelo consenso gerado no que à
perenidade da sua visão artística diz respeito, pareceu-nos
óbvia a escolha para este primeiro artigo cujo objectivo é
despertar ( uma vez mais...) o interesse para o seu legado musical,
literário e humano.
Sem código de barras e sem datas comemorativas.
Em 1929, ainda sob a Ditadura Militar do governo do general Iven Ferraz,
a dois de Agosto nasce, em Aveiro, José Manuel Cerqueira Afonso
dos Santos. Com quatro anos, JA no período do Estado Novo, encontra-se
JA em Angola, regressando a Aveiro em 1937, para voltar a partir um
ano depois, mas para Moçambique. Em 1940 vai para Coimbra fazer
o liceu e em 1953, já na faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, JA grava com o grupo de fados de António Brojo e
António Portugal os seus dois discos de estreia, dois 78 RPM
de fados de Coimbra que incluem “ Fado das Águias”,
com música e letra da sua autoria. Cumprindo dois anos de serviço
militar até 1955, volta a gravar um ano depois um EP também
de fados de Coimbra, onde se inclui “Balada”, um tema popular
açoriano musicado pelo cantor. Desta vez surge acompanhado por
António Portugal e Jorge Godinho ( guitarra) e Manuel Pepe e
Leuy Baptista ( violas ). É uma fase que quer ( até) nas
discografias mais completas, quer em muitas obras e estudos sobre JA
é omitida : o próprio praticamente a ignora em muitas
das suas entrevistas. Dela dirá, em 1985, num depoimento à
RDP-1, apenas: “ Gravei uns faditos de Coimbra...”
O hiato discográfico é quebrado em 1960 com o LP “
Balada de Outono” e que “assinala” o inicio da “balada”,
forma musical evoluída a partir da canção coimbrã,
mas marcada indelevelmente pelas raízes populares e tradicionais
portuguesas. Levando também a poesia ao conhecimento do povo,
Manuel Alegre e Adriano Correia de Oliveira são os outros pontos
da tríade desta transformação: é o tempo
da viola heróica e da poesia de combate.
Ano da crise académica, cujo rastilho foi a proibição
das comemorações do dia do Estudante, 1962 é também
o ano da edição de “Minha mãe” e “
Balada Aleixo” no LP “ Coimbra Orfeon of Portugal”
da Monitor dos EUA e a do EP “ Baladas de Coimbra ( Menino de
Oiro)”. Antes de partir para Moçambique, onde dará
aulas de 1964 a 1967 compõe nesse período música
para a peça de Berthold Brecht “ A excepção
e a regra” grava “ Baladas de Coimbra ( Vampiros)”
( 1963) e cantares de José Afonso ( Coro dos Caídos) “
( 1964) De regresso a Portugal, vai para Setúbal e em 1968 sai
“Cantares de Andarilho”, pelas Discos Orfeu nascida das
necessidades do cantor provocadas pela sua expulsão do Liceu
de Setúbal onde ensinava: inicio de risco de uma relação
de treze anos. Em 1969, são editados o LP “ Contos Velhos
, Rumos Novos” e o single “ Menina dos olhos tristes”.
No ano seguinte, JA grava nos estúdios da Pye Records em Londres
“ Traz outro amigo também”, mas sem Rui Pato a PIDE
não o autorizara a sair de Portugal que havia assegurado o acompanhamento
à viola em quarenta e nove títulos da obra do cantor.
É substituído por Carlos Correia ( o “ Bóris”
). Testemunha assídua nos estúdios londrinos é
a do cantor/compositor ( e agora ministro da Cultura ) brasileiro Gilberto
Gil, à altura exilado com Caetano Veloso na capital britânica,
reconhecendo então todo o mérito das canções
de JA. Com este albúm se encerra mais uma fase, marcada mais
uma vez pela elevada qualidade e pioneirismo das propostas musicais
e poéticas nela contidas. O Outono de 71 viria a constituir marco
incontornável na história da música portuguesa
com a edição de “ Os Sobreviventes” de Sérgio
Godinho, “ Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” de
José Mário Branco ambos exilados em Paris - “ Gente
de aqui e de agora” de Adriano Correia de Oliveira e “ Cantigas
de Maio” de JA. Para este último, gravado nos Strawberry
Studios de Herouville, França e por onde tinham passado Beatles
e Pink Floyd, José Afonso, por impossibilidade de José
Niza em Portugal a gravar “ Gente de Aqui e de Agora” de
Adriano Correia de Oliveira, decide convidar para os arranjos e direcção
musical José Mário Branco, decisivo na conceptualização
de novos arranjos e orquestrações que ele pretendia que
fossem veículo da emoção estética, tanto
a nível formal como de conteúdo. Do albúm constam
canções como “ Maio Maduro Maio”, “
Milho Verde” e a canção/ símbolo “
Grândola Vila Morena”. Em 1972, para além da participação
no Festival Internacional do Rio de Janeiro com “ A morte saiu
à rua” nesse evento estão presentes Astor Piazolla
e Chico Buarque, entre outros , grava “ Eu vou ser como a toupeira”
nos Estúdios Cellada em Madrid, com direcção de
gravação de José Niza e a participação
do cantor galego Benedicto Gárcia Villar.
Esta presença do cantor galego explica-se pela amizade entre
os dois, em parte resultado da sua crescente paixão pelas gentes
e cultura galegas e que vinha no seguimento do estreitar de relações
entre os cantores de Coimbra e da Galiza. No albúm seguinte,
o “ Venham mais cinco” editado um ano depois, JA convida
para encenador musical o “ repetente” José Mário
Branco, com Gilles Sallé como técnico de som havia-o sido
também em “ Cantigas do Maio” e a participação
no tema-título de Janine Waleyne, solista do afamado vocal de
Jazz Swingle Singers, num processo de enriquecimento pessoal e de universalização
musical que o cantor aveirense nunca enjeitou. Ainda no ano de 1973,
em Abril, é preso pela segunda vez a anterior detenção
tinha sido em Outubro de 1971: será a última, pois às
00h20m do dia 25 de Abril de 1974 “ Grândola Vila Morena”
é transmitida pela Rádio Renascença marcando o
início das operações militares que levam à
queda da ditadura e à instauração do regime democrático.
Em
“ Cor dos Tribunais”, gravado novamente nos estúdios
da Pye Records JA depois da revolução de Abril, é
Fausto pela primeira vez responsável pelos arranjos e direcção
musical, num albúm onde se podem ouvir, entre outras, “
O Avô Cavernoso”, “ Cor dos Tribunais” e “
Eu marchava de dia e de noite”, estas duas escritas para a “
Excepção e a Regra” de Bertold Brecht. No ano quente
de 1975, JA percorre o país tocando em espectáculos gratuitos
e sem condições técnicas de apoio a iniciativas
populares, procurando consciencializar as pessoas dos seus direitos
de cidadania. Ainda assim, grava “ Viva o poder popular”
single editado com selo LUAR e “ República”, LP gravado
em Roma nos estúdios da Santini Edizioni e editado por Lotta
Continua/ Ill Manifesto/ Vanguardia Operaria com o intuito de apoiar
financeiramente os trabalhadores do jornal português “ República”.
A vivência desse período pode ser sentido em “ Com
as minhas tamanquinhas” de 1976, onde disco mais explícito
nas denúncias, elogios e homenagens que o atravessam e exemplo
disso é o título da canção “ Os fantoches
de Kissinger”. Do mesmo ano é ainda o albúm ao vivo
“ José Afonso in Hamburg”, com edição
Portugal Solidaritat.
Novo
albúm em 1978, “ Enquanto à Força”
e novamente com direcção de Fausto e que inclui a participação
de, por exemplo, Carlos Zíngaro, Pedro Caldeira Cabral, Rão
Kyao e Michel Delaporte, naquela que seria a última colaboração
começada no “ Cantigas do Maio” do percussionista
francês com JA e, porventura o detentor do maior número
de presença em discos daquele. Não podemos, pois deixar
de falar da instrumentação na música da JA e da
preponderância da percussão relativamente aos restantes
instrumentos. Da totalidade dos por ele utilizado não será
exagero considerarmos que 45 por cento dos sons ouvidos nos seus discos
são “gerados” por instrumentos de percussão,
sendo causa importante do bambolear que eles imprimem aos temas as estadias
de JA em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Em “Fura, fura”, albúm de 1979 JA convida Júlio
Pereira para partilhar consigo a responsabilidade pelos arranjos e direcção
musical em nove das doze músicas, sendo as três restantes
da responsabilidade do cantor conjuntamente com Trovante. Para executar
este repertório, maioritariamente composto por canções
escritas para/ou integradas em peças de teatro, foram convidados
Né Ladeiras, António Chaíno, Guilherme Inês,
Luís Represas e João Gil, entre outros.
Dois
anos depois, no que pode ser visto como um regresso aos seu passado,
JA grava “ Fados de Coimbra e outras canções”,
para volvidos mais dois anos sair “ Zeca em Coimbra”, maxi-single
com temas gravados ao vivo. No ano de 1983 sairía ainda o duplo
LP “Ao vivo no Coliseu” e um novo disco de estúdio
intitulado “ Como se fora seu filho”. Primus inter pares,
harmonia e ritmo são nesta obra superiormente tratados por músicos
como Júlio Pereira, Rui Júnior, Janita Salomé,
Pedro Wallenstein e Edgar Caramelo. Ouçam-se “O país
vai de carrinho”, “ O canarinho” e “À
proa” ... Bastas vezes sub-valorizados em muitas das apreciações
críticas da sua obra, o último disco de JA “Galinhas
do Mato”, com data de 1985, dá continuidade ás mesmas
premissas qualitativas estéticas e formais do anterior, colaborando
nele quer nos arranjos e direcção musical, quer como músicos,
muitos dos amigos dos três albúns anteriores. A doença
que lhe ataca o sistema nervoso esclerose lateral amiotrófica
terá limitado a sua participação enquanto músico
voz em apenas “ A década de Salomé” e esse
pedaço vivo de África viva que é “Galinhas
do Mato”.
Luta corajosamente contra a doença, mas a 23 de Fevereiro de
1987, morre em Setúbal um dos artistas que mais pugnou pela divulgação
da cultura popular portuguesa, incluindo na sua obra gravada quer canções
populares, quer letras populares por ele musicadas, para além
de ter composto músicas para textos de por exemplo, José
Carlos Ary dos Santos, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Luís de
Andrade “ Pignatelli” e Luís de Camões, postura
que consideramos afim da do compositor Fernando Lopes Graça.
A sua obra é ocasionalmente objecto de revisitação/releitura
de uma forma mais sistemática/sistematizada, e neste âmbito
podemos, salvaguardadas as distâncias devidas, apontar como exemplos
o “ Maio Maduro” de José Mário Branco, Amélia
Muge e João Afonso conta também com a presença
de António José Martins e Rui Júnior e o albúm
de homenagem “ Filhos da Madrugada”, datado de 1994, onde
estão incluídos nomes como Mão Morta, Madredeus,
Xutos & Pontapés, Brigada Vítor Jara, Censurados,
Frei Fado d' El Rei, Sitiados, GNR, Sétima Legião e Opus
Ensemble. De iniciativa própria, digamos assim, Fernando Lopes
Graça, Negros de Luz, Zé Eduardo Unit, Carlos Martins
o sax alto de “ Galinhas do Mato” -, Bizarra Locomotiva
e Netos do Ngumbé são alguns dos outros olhares à
obra do “ menino de oiro”, como se lhe refere numa sentida
canção à sua memória José Mário
Branco.
O nome da canção? A do amigo, “ Zeca”.
Jorge dos Santos