De Descartes à Internet Todo de branco, pastinha preta na mão, um jeito meio empolgado meio cansado, o médico entra no ônibus para se transportar de um plantão a outro. Entrega uma nota de 5 reais para pagar a passagem (de 1 real) e atravessa a roleta. O trocador guarda a nota, dá uma olhada para a caixa e nada. O médico, delicadamente, inicia o diálogo: - O meu troco. - Não tenho não, doutor. - Como não tem? - Só tem nota de dez aqui na caixa. - Isso é problema seu. O Senhor tem que me dar 4 reais. - Como problema meu? Se não há troco na caixa e eu não tenho como lhe dar o troco, o problema é seu, não meu. - O senhor me devolva, então, minha nota e eu não pago a passagem. - Isso não é mais possível porque o doutor já passou pela roleta. - Isso é um absurdo! Você é muito atrevido, rapazinho. Me dá logo esse dinheiro que eu já estou perdendo a paciência. - Calma, doutor, que esse nervosismo pode lhe prejudicar a saúde. E eu não quero ser culpado de nenhuma gastrite em cliente. Eu lhe dou um crédito de 4 viagens grátis até o fim do mês. - Isso não existe. Se você não tem o meu troco é obrigado a arredondá-lo para menos até poder me pagar. - O senhor está sendo muito cartesiano. - O quê? - Está utilizando um raciocínio linear indutivista-dedutivista, baseado nas relações de causa e efeito. E o mundo não é assim. - Que história é essa? - O mundo constitui-se de uma intrincada rede holística de múltiplas e variadas relações e co-relações, que se interpõem de modo real, irreal ou surreal. Veja a Internet. Se dependesse de Descartes não haveria a internet... - E o que tem a ver a Internet com o meu troco? - O senhor pode receber seu troco pela Internet através do meu site www.trocadorsemtroco.com.br. É só preencher um cadastro, informando o valor a ser recebido e os seus dados bancários. Quando eu tiver o troco envio. - O meu ponto já está chegando e minha paciência acabou. Se não me devolver o dinheiro vou lhe dar umas bolachas. - Isto o senhor não pode fazer porque vai contrariar o juramento de médico. Por que não aproveita o prejuízo e compensa com uma economia saudável. Deixe de tomar uns cafezinhos, coma menos na hora do almoço. O doutor ainda vai me agradecer por isso. E não é o ponto que está chegando, nós é que estamos chegando no ponto, a não ser que esteja usando o conceito de relatividade de Einstein, o que é já é um grande avanço em seu pensamento. O médico sai correndo para não perder o ponto, deixando o trocador falando sozinho e pensando consigo mesmo - esse mundo só tem maluco!
O trocador, então, levanta a parte de baixo da caixa, retira quatro notas de um real, coloca-as em seu bolso e comenta: médicos, médicos, sempre cuidando da saúde da gente!
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