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E REBANHOS, E CARDUMES, E...

 por MORA FUENTES

 

Costumo guardar as pilhas velhas no armário do corredor, porque nunca sabemos quando as coisas realmente se transformam e podem ser consideradas dispensáveis. Fervendo as pilhas, ou guardando-as no congelador, conseguimos prolongar o prazo de duração de cada uma delas. E não se trata de economizar dinheiro, porque eu simplesmente me limito a guardar as pilhas, deixando toda essa operação de recondicionamento para mais tarde, e mando imediatamente comprar outras novas. Com isso tenho um armário repleto de pilhas, uma estante de quatro por oito abarrotada de revistas, gavetas cheias de papéis com escritos inutilizáveis ou de aparência inútil no presente, caixas e mais caixas com infinidades de bugigangas, a vela e o terço da primeira comunhão, palitos de sorvete, caixas de fósforos com desenhos estranhos, botões (durante um tempo tive predileção por botões), barbatanas de colarinho, e milhares de outros objetos, já que minha mania de guardar não se estende só às pilhas. Aos dez anos isso já me dava problemas, tinha todos meus cadernos do primário em casa, numa escrivaninha, páginas que eu tinha destacado porque o cabeçário dizia que era vinte e sete quando estávamos no dia vinte e oito. Um erro simples, mas suficiente para que eu arrancasse a folha e a depositasse no seu devido lugar, isto é, em algum ponto de uma das todas abarrotadas gavetas da minha escrivaninha. Não, não me livrei disso fácil. Não me livrei, quero dizer, mas naquela época acreditei nos conselhos de uma analista tresloucada (esse pormenor só se revelou mais tarde), que me induziu a queimar minha vasta coleção de guardados, classificando-a simplesmente como um amontoado de masoquismo inútil. Permaneci com um peso insuportável no peito durante semanas, e prometi não colocar mais nada nas gavetas (ficaram todas vazias depois da queima). Não demorou e eu encontrei um bilhete de loteria na rua, e é claro que já era velho, mas tinha um desenho muito interessante, e depois quem sabe, se eu guardo o bilhete para comprar outro com igual numeração mais tarde, posso ganhar a sorte grande. Menos de três meses depois estava tudo abarrotado outra vez, repleto, num tempo surpreendentemente curto, se para encher todas as gavetas eu tinha tomado, antes, todo o tempo do primário e da primeira série. Ah, e mais tarde os peixes. Primeiro um aquário, depois três, quatro, sete aquários num barracão do quintal. Tenho até hoje quase todas as pedras que decoravam o fundo dos aquários, muitos termômetros, aquecedores e bombas de ar, termostatos, evidentemente que quebrados e inaproveitáveis mas não duvido que um dia vou ter tempo de refazer tudo (colocar o mercúrio dentro do tubo capilar, fazendo novas demarcações, enrolar o fio de cobre nas bobinas, recobrir as ligações elétricas dos motores responsáveis pela oxigenação dos aquários, arrumar os termostatos). Sempre intui que tudo pode ser refeito, e mesmo não tendo nunca concretizado essa hipótese, nem por isso deixo de guardar todos os objetos que usei, ou que algum dia se ligaram a mim num momento qualquer da minha vida. A fita velha da máquina de escrever pode ter outra utilidade, não importa que eu não a tenha descoberto ainda, e as escovas de dente antigas podem servir para espalhar a graxa no sapato, ou limpar as unhas, tanto das mãos como dos pés, pintar, tirar o pó de reentrâncias não muito desejadas mas altamente estéticas das minhas pedras. O cartão de Natal de 1957 tem uma ligação muito íntima para que possa ser eliminado de uma forma não dolorosa, mesmo que tenhamos brigado quinze dias depois e eu nunca mais a tenha visto. Pode estar morta, ou casada e com filhos, não sei, mas de qualquer forma essa ausência completa e esse desconhecimento do instante presente do corpo que me mandou o cartão de Natal em 1957 valoriza ainda mais o cartão. E depois tem um fundo azulado cujo tom posso querer reproduzir algum dia. Continua guardado e vai continuar até que minha casa pegue fogo, e isso se eu morrer junto com a casa ou não tiver tempo suficiente para salvar meus guardados. Lenços velhos, negativos totalmente riscados e impossíveis de reproduzir de fotos com mais de vinte anos (tenho também as fotos, evidentemente), enfim, uma série de coisas que me asseguram momentos de quase todos os meus anos de vida. E me parece bom ajudar a memória, evitar que tudo se transforme num acontecimento unicamente interno com o correr do tempo. Basta abrir uma das gavetas, ou a porta do armário, ou visitar o sótão, e o dia treze de fevereiro de 1961 aparece outra vez, porque um jornal velho desbotado anuncia o horário de chegada do navio no porto de Santos, e eu estou muito contente e emocionado porque vou rever prima e primo depois de muito tempo. Ou então o dia em que encontrei Marta. Chovia muito e ela teve a idéia de se refugiar no bar da biblioteca, e eu também. Tomamos um café bem quente, não me importa que Marta não saiba que alguns metros à esquerda temos estantes repletas com quase todos os gênios da humanidade, tudo o que disseram ou pensaram. Não me importa, porque neste instante Marta está tomando café e abrindo ligeiramente os lábios, e depois sorrindo, doce sorriso de Marta, e mais tarde sete meses na minha cama, sorrindo também, querendo distribuir melhor a desordem no meu quarto. Foi embora, nunca mais soube dela, mas a fivela do seu sapato que se quebrou no dia quinze de outubro (seis dias depois do meu aniversário, quando ela me deu a cigarreira que está guardada agora embaixo da escada, no baú, atualmente transformada num pedaço de couro sujo e rasgado), essa fivela ainda está comigo. Muitas vezes tentei superar essa vontade indo a não sei quantos analistas, que descobriram que essa mania provinha de uma neurose profunda, rejeição da realidade, ou de profundas repressões de caráter sexual. Continuo guardando tudo que me aparece pela frente, comprando caixas e mais caixas, baús e mais baús, para colocar meus objetos, meus papéis, lâminas de barbear usadas, pedaços de fio elétrico, sapatos velhos, roupas, tocos de vela, restos de passagens de trem, ônibus ou avião.

Talvez se eu encontrasse uma mulher, se eu me apaixonasse por uma mulher, quem sabe não poderia ser classificado recuperável, porque todos meus amigos (e isso já faz muito tempo) me consideram mentalmente abalado, e mesmo aqueles que a princípio preferem não levar muito a sério essa retenção exagerada (eu mesmo reconheço) das coisas, terminam por evitar as visitas à minha casa. E isso há muito tempo, porque agora ninguém mais me visita. Faz dois anos mais ou menos que não toca o telefone. Mesmo assim continuo pagando a conta pontualmente e guardando os recibos em algum lugar. Posso precisar algum dia tanto dos recibos como do telefone. E há quase quatro anos evito sair de casa. Cada saída representa mais alguma coisa a ser guardada. Portanto, prefiro não sair e mando comprar tudo o que preciso, comida, roupa, remédios, fitas para a máquina de escrever, papéis, cadernos, tudo enfim. Aliás, ultimamente não tenho nem saído muito ao jardim, porque está tudo sempre tão verde, tão buliçoso, tão branco margarida, azul hortênsia, amarelo girassol, vôo de canário da terra, pintassilgo, pardal, e é tudo tão evidentemente impossível de guardar que me vem uma sufocação enorme no peito, como aquela dos dez anos, quando queimei a pilha de “inúteis” das gavetas. Ou uma sufocação maior ainda, mas da mesma espécie. Alguma coisa me escapa sempre (e digo alguma coisa, porque não tenho muita ousadia) e mesmo agora que passo os dias na sala, lendo ou escrevendo, me vem a certeza de que muita coisa me escapa, não importa que eu esteja dormindo ou não, atento ao menor movimento ou acompanhando o trajeto de uma barata que se escondeu atrás do baú. Mesmo quando me detenho horas observando um inseto de ínfimas proporções que fixou moradia na minha sala, e o acompanho na ousada tentativa de atravessar a extensão quase infinita da poltrona onde estou, até a estante maior do corredor (uns quinze metros, mais ou menos, com inúmeros desvios e escaladas pelos meus baús, o que transformam quinze metros numa aventura de desbravamento e circunavegação), percebo que quase tudo me escapou desse trajeto, e que o inseto certamente não vai ter mais tempo de refazê-lo outra vez. Vivem tão pouco os insetos. Infelizmente não tinha filme nem máquina fotográfica por perto, e mesmo que tivesse seria impossível fotografá-lo. Pequeno demais o inseto, e seria mais uma foto e outro negativo a ser guardado. De qualquer forma teria uma fotografia do chão da minha sala que certamente haveria de me lembrar a noite em que um inseto desbravou corajosamente esse território. Infelizmente não vou saber por quê. Ele me parecia bem instalado na poltrona, e por um tempo pensei que desejava fixar moradia na abertura do couro. E pensei isso porque ela teve espaço suficiente para Tomás, o camundongo (morreu há dois meses), e se agradou a Tomás deveria ter sido considerada excelente para o segundo locatário. Mas parece que as leis de comodidade e estética variam entre roedores e insetos. Ou talvez fosse sua sina, caminhar por desertos e escalar altíssimas montanhas-baús. Não sei, como já descobri há muito tempo, sempre me escapa alguma coisa. Mas se eu encontrasse uma mulher ( e a mulher que imagino tem que se comover com a aparente inutilidade da vida desse que atravessou a sala), talvez saísse mais vezes ao jardim. Certamente sairia, e não só ao jardim, mas de toda esta comodidade e observação a que me acostumei nos últimos anos. E como não sei se realmente desejo prescindir dessa comodidade e observação, evito possíveis contatos com as fêmeas da minha espécie. Nunca me aproximo das portas ou janelas que se comunicam com a rua. Evidente que desta forma a única pessoa que vejo é Pedro, o rapaz que me soluciona o problema das compras necessárias para minha subsistência. E mesmo assim, há uns três meses que não o vejo porque deixo um bilhete na mesinha da entrada com tudo o que preciso, e ele já tem a chave da porta, de modo que ele entra, pega a lista, vai e compra tudo. Quando chega grita da entrada: Doutor, está tudo certo. Vai precisar de mais alguma coisa? Posso passar mais tarde se o senhor quiser. Não, nunca precisou passar à tarde, porque gasto quase três horas todas as noites planejando uma lista de compras perfeita, de modo a que nada me falte. Não, Pedro, obrigado. Pode ficar com o troco, eu respondo da sala ou do meu quarto (ultimamente só da sala). Uma vez esqueci de anotar os fósforos numa das listas e passei até o dia seguinte revistando baús e gavetas, porque certamente encontraria algum. Mas estavam todos comprometidos, isto é, todos os palitos que encontrei marcavam datas especiais, estavam relacionados com acontecimentos demasiadamente importantes para que eu pudesse arriscar perder algum, simplesmente queimando-o. Mesmo assim pensei em usar pelo menos um deles, para acender uma das bocas do fogão, que permaneceria acesa por toda a noite. Depois recolocaria o fósforo no devido lugar. Mas isso acarretaria um guardado de segundo grau, isto é, uma mesma coisa com duas implicações de tempo. Me pareceu perigoso. Pedro veio no dia seguinte e comprou três pacotes de fósforos. Claro que a lista de compras desse dia foi guardada num lugar especial (as outras vão indistintamente para a mesa da copa ou o armário do banheiro).

 

Mas se eu encontrasse uma mulher, se eu me apaixonasse, é evidente que minha vida ia mudar. Amigos, passeios, tudo isso outra vez. E seria considerado normal. Ou aparentemente normal, já que a necessidade de preservar as coisas continuaria existindo, apenas controlada para evitar discussões desagradáveis com a mulher. Mas isso do normal não me interessa mais, e a simples suposição de que teria de me desfazer das minhas caixas e baús, já que ela não gostaria nunca dessa aparente desordem, me tira todo o estímulo de procurar uma companheira. E parece que toda modificação me é impossível. Eu não conseguiria suportar. Depois a mulher nunca seria uma coisa possível de se guardar. Quando muito algumas cartas ou objetos. De Márcia, por exemplo, tenho três grampos. Ah, mas isso tudo já faz muito tempo, mesmo a hipótese de trazer alguma mulher para cá é bem antiga. E essa impossibilidade não me aborrece. Verdade que algumas vezes sonhei com minha hipotética companheira. Num desses sonhos ela estava no banheiro acompanhando a trajetória de uma formiga. Eu entro e pergunto o que está fazendo e ela me diz que tem pena, muita pena do bicho. Mas faz tempo, muito tempo mesmo, que tive o último sonho desse tipo. E dos sonhos não pude guardar nada. Escrevi muitos deles, mas eu guardo apenas as folhas em que escrevi esses sonhos, e nisso existe uma diferença até certo ponto sutil. Me aconteceu um dia sonhar que fazia uma viagem e era recebido numa casa enorme, toda de pedra, onde morava uma mulher que fazia espirais de metal. Essa mulher (parece que Agda era seu nome) tinha alguma coisa nas costas que ninguém podia saber (não me lembro o que era). Pois bem, um tempo depois encontrei num dos meus baús uma espiral de ouro, igual àquelas que a mulher do sonho fazia. Não me lembro de nada ligado a essa espiral que pudesse justificar sua existência concreta num dos baús. Nada a não ser o sonho, mas essa justificativa me pareceu absurda. Tão absurda, que dias mais tarde procurei outra vez a espiral e não a encontrei mais. Pode ser que não tenha procurado no lugar certo, mas isso é difícil porque sei exatamente onde estão as minhas coisas. A única prova da materialização da espiral é um caderno em que escrevi o sonho e o terrível que ocorreu tempo depois. Mas no sonho, a mulher que fazia essas espirais se apaixonava por mim, e era uma coisa linda essa paixão. Infelizmente tinha um homem, ou outros homens, não me lembro bem, e me parece que um deles esculpia madeira, esculturas enormes, e tinha um olho sempre perturbado esse homem. No entanto era para mim que a mulher se dirigia quando desejava descobrir o secreto, o mais fundo da alma. E eu não podia nunca ser o companheiro porque ninguém deveria suspeitar, já que o olho das pessoas seria mau, um olho de raiva e inveja. Sim, era complicado esse sonho, e ela me dava a espiral de ouro para que um dia alguém a encontrasse comigo e soubesse do nosso amor, e descobrisse que nos tínhamos amado até o mais fundo. E enquanto ela me dá a espiral, eu também tento imaginar um meio de avisar as pessoas, num outro tempo, que um dia eu e a mulher fomos companheiro, irmão, vida e descoberta um para o outro. Complicado esse sonho. E evitei sonhar depois que encontrei a espiral no baú, porque se alguma coisa que eu não sei fez com que a espiral se materializasse (não tenho dúvida alguma a respeito), essa mesma coisa que eu não sei, o dia em que sonhar com uma adaga, pode fazer com que eu desperte com a adaga enterrada no coração. Que outro lugar melhor para se guardar uma adaga? Não, não quis sonhar mais, e para isso permaneço dois ou três dias sem dormir. Quando finalmente deito, tenho o sono pesado demais para conseguir reter algum sonho.

Com o tempo vou-me acostumando, e é necessário aumentar os dias de vigília. Já consigo ficar quase quinze dias sem sentir a menor vontade de dormir, e depois bastam-me oito ou dez horas de sono para que me sinta completamente refeito e com ótima aparência. Refeito e preparado para continuar existindo desta forma retalhada e dispersa pelos baús, gavetas, estantes, escrivaninhas, armários, vãos de escada. Refeito e preparado para coexistir comigo mesmo e com nada, e com aquilo que eu imagino ser, em mim, boa aparência.  

 

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