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Deus

 por MORA FUENTES

 

Negra, magra e bêbada, Isolina vive no escuro do viaduto. De luzidio, a novidade da imensa barriga e o mistério que ali dentro se fazia. Perdida em tantos incompreensíveis, uma coisa apenas a preocupa:

- Que nome, meu Deus, pro meu menino?

Então um relâmpago incendeia o mundo. E no meio de estrondos, surge o entendimento no coração de Isolina:

- Seu nome é Deus.

Coincide que a seguir tudo silencia. Águas e ventos se acalmam, a chuva vira coisa miúda, menos que garoa fina. Um carro ilumina a negra como se fosse dia.

- Deus.

Afogueada, temendo arder de tanto entendimento, grita:

- Minha barriga é Deus.

Muita coisa fica assim esclarecida. Os refinamentos desde que se soube cheia. Nunca mais tomou cachaça (substituiu por cinzano) nem gritou pelas ruas. Modificou-se. Agora sabia:

- Porisso não precisei de homem.

Quase derruba a garrafa. Bebe eufórica. Dança e chora até ficar rouca. Depois cai exausta, estala a língua. Finalmente sorri. Peida na grandiosidade das tormentas. Tem sonhos incríveis também.

Manhã cedo, vai atrás do padre (o mesmo que à noite reúne mendigos para a sopa). Emocionada, tenta abraça-lo. Ele se esquiva, ela quase cai. Mesmo assim conta tudo. O olho do padre aumenta, as sobrancelhas uma só:

- Ficou louca, Isolina.

- Fiquei não, padre.

- Bebeu. Me deixa em paz, não me apoquenta com tuas carraspanas.

- Agora só bebo de noitinha.

- Mas criatura, é blasfêmia. Nem repete.

O coração quase pára. A voz pequena:

- O quê?

- É pecado, voz do demônio. Claro que teve homem, você está mentindo.

- Juro que não.

- Então esqueceu, se enganou.

No vazio dos dentes, a língua se enrolava e se perdia:

- É tudo verdade, padre. Eu juro. Fui escolhida. E o nome é lindo.

- Vai embora, Isolina. Reza bastante, pede perdão e pára de me atormentar.

- Batiza meu filho.

- Com esse nome não pode, criatura. Chama José, aí eu batizo. E vai que é menina? Maria é bom. Mãe de Deus.

- Sei que é macho, fruto do divino.

- É Satã te assoprando essas idéias. Chama de Francisco, Sebastião, Benedito.

- De jeito nenhum nome de preto, que meu filho é o rei do mundo e preto nunca é.

Ela, defendendo a cria. Ele, gritando exorcismos, derruba um círio, depois suaviza:

- Nem fala mais nisso. Te abençôo em nome de Deus, agora vai em paz (e se escafede para a sacristia).

Vomitando antipatias contra esse estúpido, Isolina passeia pela igreja. No altar principal se ajoelha, volta a ter doçuras:

- Você tá aí, meu menino, tão judiado nesses pregos todos. Como pode esse desconforto de dor se na minha barriga tá espertinho e são? E vai sê batizado sim, que pra isso tu tem mãe.

Um anjo cinza voa pela igreja e ela quase o vê. Anima-se:

- O padre há de entendê.

Volta ao ensolarado das ruas, começa seu trabalho. Papel, papelão, latas de alumínio, assim é sua farta lavoura. Canta também, extasiada:

O meu filho é Deus

Pregado está Jesus

A minha alegria

É que ele estoure a cruz.

Alguém grita: Cala a boca, cariboca. Mas o mundo é tão grande que ela não escuta. De noite, hora da sopa na igreja, encara outra vez o padre:

- Vai batizá meu filho sim, porque não haveria?

- Escolheu o nome?

- Deus.

- Pára com isso, Isolina. Já mandei.

- Sô mendinga de rua mas num minto.

- Filha, faz favor, pega um prato e vai pra fila.

- Se o senhô dizê que batiza.

Ele suspira. Vontade de outras vidas. Uma paróquia no campo. E por que não casado, com filhos, esquecido do corpo?

- Sai da minha frente. Vade retro.

Uma sanha sangüínea, intensos vermelhos, na alma de Isolina:

- Faço estripulia se o senhor não batizá. Viro Exú.

- Está vendo, minha filha? Não disse que é o demônio? Pede perdão, criatura. Reza.

A gritaria atrai Neuzona, conhecida velha, que a puxa pelo braço até o fim da fila. Isolina conta sua revelação.

Neuzona (besta) - Credo, Isolina, tu tá loca.

- Por meu filho sagrado. É verdade.

- Ahh, tá bom. E Ele ia escolhê  justo ocê, uma fudida?

- Pois foi.

Neuzona (mangando) - Essas coisa da Bibria, Isolina, tempo de começo de mundo... num é toda hora todo dia não (Começa a rir) e nem com qualqué uma (Ri numa seqüência de tosses. No primeiro respiro, mãos nos quadris, continua) Mas puta que pariu, comadre... passa mais de ano que tu tá gorda, deve sê filho Dele mesmo (Gargalha).

Laminosa, moída de afrontas, Isolina por bem prefere desistir da sopa e evitar desvarios. Volta pro oco no viaduto. Troncha de tudo, bebe e confabula:

- Cês há de vê (e começa, na terra do oco, a cavar um berço).

Os dias seguintes foram um crescente de luta, cansaço e escárnio. Até daquela bosta podre que é Índio Bó:

- Dona Virge Santa, como é que vai seu filho Deus? (E girou à sua volta, saltimbanco de asas e cobertor imundo).

Foi Neuzona, vaca perdida, que espalhou veneno pra quem pôde. Isso não podia ser. Desfazer da sua barriga santa e do seu filho Deus?

- Mas tu tem mãe, que há de te vingá.

E outra vez, um dia, é noite. Hora da sopa, fundos da igreja. Avista o padre. Também Neuzona.

Pra ele: Batiza ou te furo.

Pra ela: Ocê eu furo de qualqué jeito.

Entre um e outro, o estupor dos presentes e a louca agilidade de Isolina, aqui-ali mais rápida que o susto. O padre desviou fácil, como se habituado. Neuzona, distraída, sentiu o lábio rasgado, a bochecha furada, por pouco não se foi um olho.

- Meu filho é Deus - foi o último que disse Isolina. Depois foi agarrada, socada e chutada. De repente, sangrou. E tanto, que na espera da ambulância perdeu para sempre os sentidos.

No dia seguinte, quase hora do almoço, uma beata entra na sacristia:

- Como vai, padre?

Mal, mas não diz. Sonhos perturbadores, (fornicava com negras e meninos), acordou consumido. O que era ele, afinal?

- Venho do hospital. A esfaqueada vai bem. Mas a outra... é uma história triste. Não tem filho nenhum. Ela está é podre por dentro, coitada. Um tumor terrível. De hoje não passa nem por milagre.

- Deus... como eu podia saber?

- E quem podia, padre? São destinos que o Altíssimo manda.

Ele pensa que poderia ter sugerido Deolindo. E em como seria bom desaparecer para sempre e nunca mais ser visto.

No fim da tarde morreu Isolina. Neuzona lembrou dela uns tempos. Depois, é claro, foi absolutamente esquecida.

 

Mora Fuentes  - Casa do Sol - Topo

Página criada em Janeiro de 2000.