Globalização: Novo paradigma das ciências
sociais*
Octavio Ianni
*Publicado em Estudos Avançados - vol.8 no.21 - São
Paulo May/Aug. 1994
RESUMO
As ciências
sociais estão sendo desafiadas a pensar a globalização do
mundo. No fim do século XX, quando se anuncia o XXI, elas se defrontam com os
dilemas que se abrem com a globalização
das coisas, gentes e idéias. Há processos e estruturas sociais, econômicos,
políticos, culturais e outros que apenas começam a ser estudados. Além do que é
local, nacional e regional, colocam-se problemas novos e fundamentais com a
emergência da sociedade global. As fronteiras geográficas e históricas,
culturais e civilizatórias parecem modificar-se em direções e formas
surpreendentes. Indivíduo, grupo, classe, coletividade e povo são colocados
diante de outros horizontes. O próprio pensamento científico é desafiado a
elaborar conceitos e interpretações para dar conta de realidades pouco
conhecidas. As teorias da globalização,
que começam a ser esboçadas, revelam o empenho das ciências sociais em explicar
o que há de novo no que vai pelo mundo.
ABSTRACT
Social sciences are now being challenged to think on
the world's globalization. At the end of the twentieth century and dawn of the
twenty first, they are faced with the dilemas that open up with the
globalization of things, people and ideas: There are social, economical,
political, cultural and other processes and structures that are just begining
to be studied. Besides what is local, national and regional, new and fundamental
problems appear with the rising global society. The geographic, historical,
cultural and civilizatorian limits seem to change in surprising ways and
directions. The individual, group, class, colectivity and people are put before
other horizons. The scientific thinking itself is called upon to elaborate
concepts and interpretations to account for little known realities. The
globalization theories that are just being sketched show the efforts of Social
Sciences to explain what is new going on in the world.
Nesta altura da
história, no declínio do século XX e limiar do XXI, as ciências sociais se
defrontam com um desafio epistemológico novo. O seu objeto transforma-se de
modo visível, em amplas proporções e, sob certos aspectos, espetacularmente.
Pela primeira vez, são desafiadas a pensar o mundo como uma sociedade global.
As relações, os processos e as estruturas econômicas, políticas, demográficas,
geográficas, históricas, culturais e sociais, que se desenvolvem em escala
mundial, adquirem preeminência sobre as relações, processos e estruturas que se
desenvolvem em escala nacional. O pensamento científico, em suas produções mais
notáveis, elaborado primordialmente com base na reflexão sobre a sociedade
nacional, não é suficiente para apreender a constituição e os movimentos da
sociedade global.
O paradigma
clássico das ciências sociais foi constituído e continua a desenvolver-se com
base na reflexão sobre as formas e os movimentos da sociedade nacional. Mas a
sociedade nacional está sendo recoberta, assimilada ou subsumida pela sociedade
global, uma realidade que não está ainda suficientemente reconhecida e
codificada. Á sociedade global apresenta desafios empíricos e metodológicos, ou
históricos e teóricos, que exigem novos conceitos, outras categorias,
diferentes interpretações. "Sempre houve um enorme debate sobre como a
sociedade e o estado relacionam-se, qual deveria subordinar o outro e qual
encarnar os valores morais mais elevados. Assim, ficamos acostumados a pensar
que as fronteiras da sociedade e do estado são as mesmas ou, se não, poderiam
(e deveriam) ser. (...) Vivemos em estados. Há uma sociedade sob cada estado.
Os estados têm história e portanto tradições. (...) Esta imagem da realidade
social não era uma fantasia, tanto assim que teóricos colocados em perspectivas
ideográficas e nomotéticas desempenhavam-se com razoável desenvoltura,
utilizando esses enfoques acerca da sociedade e estado e alcançando alguns
resultados plausíveis. O único problema era que, à medida que o tempo corria,
mais e mais anomalias revelavam-se inexplicadas nesse esquema de
referência; e mais e mais lacunas (de zonas da atividade humana não
pesquisadas) pareciam emergir" (1).
Ocorre que a
sociedade global não é a mera extensão quantitativa e qualitativa da sociedade
nacional. Ainda que esta continue a ser básica, evidente e indispensável,
manifestando-se inclusive em âmbito internacional, é inegável que a sociedade
global se constitui como uma realidade original, desconhecida, carente de
interpretações.
A sociedade global
já tem sido objeto de estudos e interpretações, em seus aspectos históricos,
políticos, econômicos, culturais, geográficos, demográficos, geopolíticos,
ecológicos, religiosos, lingüísticos, artísticos e filosóficos. Além das
indicações e intuições que freqüentemente aparecem nos estudos sobre a
sociedade nacional, multiplicam-se as reflexões sobre as configurações e os
movimentos da sociedade global. Já são muitos os que pensam a sociedade em
âmbito transnacional, mundial ou propriamente global, mesmo quando não estão
utilizando esta noção, mesmo quando continuam a pensar a nação. Em forma
sintética, pode-se dizer que essa problemática está presente nos estudos e
interpretações sobre relações internacionais, geopolítica, integração regional,
sistema-mundo, economia-mundo, três mundos, quatro mundos, guerra fria, fim da
guerra fria, fim da história, nova divisão internacional do trabalho, fábrica
global, cidade global, aldeia global, shopping center global, disneylândia global, planeta
terra, norte e sul, ONU, Unesco, Unicef, FAO, FMI, BIRD, GATT, OTAN, NAFTA,
Mercosul, Casa da Europa, Estados Unidos da Europa, espaço europeu, espaço do Pacífico,
imperialismo, pós-imperialismo, dependência, nova dependência,
interdependência, multilateralismo, multinacional, transnacional, ascensão e
queda das grandes potências, Ocidente e Oriente, ciclo Kondratieff,
telecomunicações, mídia mundial, indústria cultural, cultura internacional
popular, marketing global, globalização e fragmentação,
novo mapa do mundo, modernidade-mundo, pós-modernidade.
Este é um momento
epistemológico fundamental: o paradigma clássico, fundado na reflexão sobre a
sociedade nacional, está sendo subsumido formal e realmente pelo novo
paradigma, fundado na reflexão sobre a sociedade global. O conhecimento
acumulado sobre a sociedade nacional não é suficiente para esclarecer as
configurações e os movimentos de uma realidade que já é sempre internacional,
multinacional, transnacional, mundial ou propriamente global. É óbvio que a
sociedade nacional continua a ter vigência, com seu território, população,
mercado, moeda, hino, bandeira, governo, constituição, cultura, religião,
história, formas de organização social e técnica do trabalho, façanhas, heróis,
santos, monumentos, ruínas. Ela constitui o cenário no qual os seus membros
movimentam-se, vivem, trabalham, lutam, pensam, fabulam, morrem. Tanto assim
que subsistem e ressurgem nacionalismos, provincianismos, regionalismos,
etnicismos, fundamentalismos e identidades em muitos lugares, nos diversos
quadrantes do mundo. Mas a sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem
metodologicamente ou histórica e teoricamente, de toda a realidade na qual se
inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações.
Aos poucos, e às vezes de repente, a sociedade global subsume formal ou
realmente a sociedade nacional, compreendendo indivíduo, grupo, classe,
movimento social, cultura, língua, religião, moeda, mercado, formas de
trabalho, modos de vida. Tudo isto continua vigente, como nacional, com
toda a sua força original. Mas tudo isto, simultaneamente, articula-se dinâmica
e contraditoriamente com as configurações e os movimentos de sociedade global.
Como totalidade geográfica e histórica, espaço-temporal, em suas dimensões
sincrônicas e diacrônicas, a sociedade global se constitui como um momento
epistemológico fundamental, novo, pouco conhecido, desafiando a reflexão e a
imaginação de cientistas sociais, filósofos e artistas.
Os estudos e as
interpretações da sociedade global apresentam algumas características que
merecem ser registradas. Cada uma de per si, e todas em conjunto, permitem
visualizar um pouco melhor tanto a originalidade do novo objeto das ciências
sociais como as dificuldades epistemológicas que suscita.
Primeiro,
baseiam-se principalmente nos ensinamentos das seguintes teorias, muito
correntes nas ciências sociais: evolucionismo, funcionalismo, sistêmica,
estruturalista, weberiana e marxista. Essas são as que predominam, às vezes em
termos bastante sistemáticos, outras vezes utilizadas de modo fragmentário.
Também há tentativas de combinar elementos de várias teorias, em formulações
ecléticas. Em vários casos, no entanto, fica evidente a dificuldade que alguns
autores enfrentam para libertar-se dos quadros de referência representados pela
sociedade nacional, como emblema do paradigma clássico, e pensar a sociedade
global em toda a sua originalidade.
Segundo, priorizam
determinados aspectos da sociedade global: econômicos, financeiros,
tecnológicos, informáticos, culturais, religiosos, políticos, geopolíticos,
ecológicos, sociais, históricos, geográficos e outros. São poucos os que
formulam abordagens gerais, abrangentes, integrativas. Também são poucos os que
reconhecem que o conjunto das relações, processos e estruturas que descrevem e
interpretam diz respeito a um objeto novo constituído pela sociedade global.
Terceiro, a
maioria situa-se em perspectiva que se pode denominar de convencional. Focaliza
este ou aquele aspecto da sociedade global, priorizando antecipadamente uma
perspectiva: a superpotência mundial; uma ou várias das nações dominantes ou
centrais no cenário mundial; uma ou várias nações do ex-Terceiro Mundo, do sul
ou da periferia, tais como as asiáticas, africanas, latino-americanas e
inclusive remanescentes do ex-bloco soviético do leste europeu; a comunidade
européia; a classe ou as classes dominantes; as classes subalternas,
compreendendo trabalhadores assalariados em geral, proletariado e campesinato;
as etnias minoritárias; a luta pela soberania nacional, com base em
projeto capitalista, socialista ou terceira via; a rede intra e
intercorporações, conglomerados ou empresas, compreendendo muitas vezes
alianças estratégicas entre elas; a nova divisão internacional do trabalho e da
produção; a mídia internacional; um ou outro fundamentalismo religioso,
incluindo-se o islamismo, catolicismo, protestantismo e outros; a luta pela
hegemonia mundial por parte desta ou daquela nação.
Quarto, o método
comparativo evidentemente está na base de praticamente todos os estudos e
interpretações. Comparam-se nações e continentes, tecnologias e
mercadorias, regimes políticos e políticas governamentais, indicadores
econômicos, financeiros, políticos, sociais e culturais, economias estatizadas
mistas e de empresa privada, mercado e planejamento. Há casos em que a
comparação elege relações, processos e estruturas, procurando combinar
configurações sincrônicas e diacrônicas. Em outros casos, comparam-se índices,
indicadores, variáveis. E claro que o recurso ao método comparativo apóia-se,
em última instância, em uma das teorias mobilizadas para a pesquisa:
evolucionismo, funcionalismo, sistêmica, estruturalista, weberiana ou marxista.
Em geral, a comparação toma como referência aberta ou implícita este ou aquele
país moderno, desenvolvido, industrializado, pós-industrial.
Quinto, são
poucos, muito poucos, os que se posicionam nos horizontes da desterritorialização,
uma perspectiva que pode passar pelas convencionais, mas não se fixa em
nenhuma, como a que seria prioritária, privilegiada ou mais avançada.
Dado ao fato de que esse novo objeto das ciências sociais não só é novo mas
também muito problemático, seria apressado estabelecer precipitadamente uma
perspectiva como prioritária ou exclusiva. A fecundidade possível da reflexão
sobre a sociedade global, em suas configurações e seus movimentos, pode
ampliar-se bastante se o sujeito do conhecimento não permanece no mesmo lugar,
deixando que o seu olhar flutue livre e atento por muitos lugares, próximos e
remotos, presentes e pretéritos, reais e imaginários.
Sim, a sociedade
global é o novo objeto das ciências sociais. Ao lado da sociedade nacional,
vista como um todo e também em suas partes, as ciências sociais começam a
debruçar-se sobre a sociedade global, vista como um todo e também em suas
partes. São dois objetos presentes: um dos quais bastante conhecido,
codificado, interpretado, ao passo que o outro ainda por se conhecer, se
explicar. A sociedade nacional pode ser vista como o emblema do paradigma
clássico das ciências sociais, com o qual elas nascem, amadurecem e continuam a
se desenvolver. Enquanto que a sociedade global pode ser vista como o emblema
de um paradigma emergente. Envolve um novo paradigma, tanto porque a sociedade
global encontra-se em constituição, em seus primórdios, como porque carece de
conceitos, categorias, interpretações.
Acontece que a globalização
em curso no fim do século XX pode ser algo muito novo, a despeito da impressão
de que parece apenas continuidade. A humanidade de que se falava no passado era
uma idéia, hipótese, utopia. A globalização que prenuncia o século XXI está aí,
dada, evidente, esperando ser pensada, revelando a humanidade como ela começa a
ser. "A idéia de humanidade é um pensamento antigo e persistente. Mas foi
como uma idéia potencialmente realizável, ou como um ideal a ser procurado, que
empolgou a atenção de filósofos. No entanto, à medida em que se expande a
sociedade ocidental, desde o século XVI, acentua-se a distancia entre a
realidade e o ideal. A diversidade cultural e o freqüente desentendimento mútuo
parecem caracterizar o mundo real. O método comparativo tornou-se central na
sociologia precisamente como resposta a essa experiência. Foi a realidade do
desenvolvimento social que mudou essa situação.
Desde a Segunda
Guerra Mundial, tem havido um crescente reconhecimento, entre sociólogos, de
que a população mundial está envolvida em um único sistema social mundial. Sociedade,
como tal, passa a compreender uma multidão de sociedades que, no
contexto de um sistema mais amplo, podem somente encontrar uma autonomia
relativa e condicionada, em grande medida como nações-estados
estreitamente entrelaçados (2).
Revertem-se
perspectivas e possibilidades de ser de uns e outros, em todo o mundo. O local
e o global determinam-se reciprocamente, umas vezes de modo congruente e
conseqüente, outras de modo desigual e desencontrado. Mesclam-se e tencionam-se
singularidades, particularidades e universalidades. "A globalização pode
assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala
mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos
locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e
vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais
podem se deslocar numa direção inversa às relações muito distanciadas que os
modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto
a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço. Assim, quem
quer que estude as cidades hoje em dia, em qualquer parte do mundo, está ciente
de que o que ocorre numa vizinhança local tende a ser influenciado por fatores
– tais como dinheiro mundial e mercados de bens – operando a uma distancia
indefinida da vizinhança em questão" (3).
Esse o contexto em
que todas as ciências sociais são postas diante de novo desafio epistemológico.
Muitos dos seus conceitos, categorias e interpretações são postos em causa.
Alguns tornam-se obsoletos, outros perdem parte de sua vigência e há os que são
recriados. Mas logo se coloca o desafio de criar novos. Á medida em que a
realidade social passa por uma verdadeira revolução, quando o objeto das
ciências sociais se transfigura, nesse contexto descortinam-se outros
horizontes para o pensamento.
Há noções que
sofrem uma espécie de obsolescência, em certos casos parcial, em outros total.
O estado-nação, por
exemplo, entra em declínio, como realidade e conceito. Não se trata de
dizer que deixará de existir, mas que está realmente em declínio, passa por uma
fase crítica, busca reformular-se. As forças sociais, econômicas, políticas,
culturais, geopolíticas, religiosas e outras, que operam em escala mundial, desafiam o
estado-nação, com a sua soberania, como o lugar da hegemonia. Sendo assim, os
espaços do projeto nacional, seja qual for a sua tonalidade política ou
econômica, reduzem-se, anulam-se ou somente podem ser recriados sob outras
condições. A globalização cria injunções e estabelece parâmetros, anula e abre
horizontes. Mas o pensamento científico parece um tanto tímido, surpreso ou
mesmo atônito, diante das implicações epistemológicas da globalização.
As noções de
interdependência, dependência e imperialismo também estão postas em causa, se
admitimos que o
estado-nação está em crise, enfrenta uma fase de declínio, busca reformular-se.
As grandes e pequenas nações, centrais e periféricas, dominantes e
subordinadas, ocidentais e orientais, ao sul e ao norte, todas se deparam com o
dilema da reformulação das condições de soberania e hegemonia. É claro que há
blocos, geopolíticas, imperialismos, dependências e interdependências nesse
mesmo cenário. Há vínculos antigos e novos que atrelam nações umas às outras,
não só em condições de igualdade mas principalmente de desigualdades. Também as
organizações internacionais, compreendendo a ONU, FMI, BIRD, GATT e outras
exercem as suas atividades priorizando interesses de nações com maior poder
econômico, político, militar, cultural. Essa continua a ser uma dimensão
importante do cenário mundial.
Simultaneamente,
no entanto, declinam e reformulam-se as condições de soberania e hegemonia, em
todos os quadrantes. Mesmo porque já há centros de poder, em escala global, que
sobrepassam soberanias e hegemonias. As empresas, corporações e conglomerados
transnacionais, em suas redes e alianças, em seus planejamentos sofisticados,
operando em escala regional, continental e global, dispõem de condições para
impor-se aos diferentes regimes políticos, às diversas estruturas estatais, aos
distintos projetos nacionais.
Este o
horizonte,das noções e metáforas que as ciências sociais estão sendo desafiadas
a criar: aldeia global, fábrica global, cidade global, nave espacial, desterritorialização,
re-territorialização, redes inter e intracorporações, alianças estratégicas de
corporações, nova divisão internacional do trabalho, neofordismo,
acumulação flexível, zona franca, mercado global, mercadoria global, moeda
global, planejamento global, tecnocosmo, planeta terra, sociedade civil
mundial, cidadania
mundial, contrato social universal.
Não é suficiente
transferir conceitos, categorias e interpretações elaborados sobre a sociedade
nacional para a global. Quando se trata de movimentos, relações, processos e
estruturas característicos da sociedade global, não basta utilizar ou adaptar o
que se sabe sobre a sociedade nacional. As noções de sociedade, estado, nação,
partido, sindicato, movimento social, identidade, território, região, tradição,
história, cultura, soberania, hegemonia, urbanização, industrialização,
arcaico, moderno e outras não se transferem nem se adaptam facilmente. As
relações, processos e estruturas de dominação e apropriação, integração e
antagonismo característicos da sociedade global exigem também novos conceitos,
categorias, interpretações.
Logo fica evidente
que não se trata de dois objetos distintos, com tessituras e dinâmicas
próprias, alheias. Implicam-se reciprocamente, em articulações sincrônicas e
diacrônicas diversas, desde convergentes e antagônicas. Envolvem possibilidades
diferentes no que se refere às formas do espaço, às durações do tempo. São duas
totalidades bastante articuladas, cada uma a seu modo, mas reciprocamente
referidas, sendo que a global tende a subsumir formal ou realmente a nacional.
É claro, há
autores que reconhecem que as ciências sociais se encontram em face de
modificações radicais em seu objeto. Reconhecem que a globalização implica
desafios empíricos, metodológicos, teóricos e, propriamente, epistemológicos.
Mas agarram-se a conceitos, categorias e interpretações acumulados com base na
reflexão sobre os problemas da sociedade nacional, do estado-nação. Procuram
transferir ou reformular esse patrimônio, induzindo a idéia de que a sociedade
global significa uma ampliação da nacional, quando não simplesmente uma soma de
nacionais. Inclusive há aqueles que tomam as sociedades mais desenvolvidas,
dominantes ou hegemônicas como parâmetro do que pode ser o mundo. Nestes casos,
a globalização tende a ser vista como europeização, americanização ou ocidentalização,
ainda que se fale em modernização, secularização, individuação, urbanização,
industrialização ou modernidade (4).
Ocorre que a
problemática da globalização
se encontra ainda em processo de equacionamento empírico, metodológico e
teórico. Mais que isso, apenas começa a ser percebida em suas implicações
epistemológicas. Trata-se de uma realidade que pode ser vista como uma
totalidade em formação. Constitui-se como um jogo de relações, processos e
estruturas de dominação e apropriação, integração e contradição, soberania e
hegemonia, configurando uma totalidade em movimento, complexa e problemática.
Trata-se de um universo múltiplo, uma sociedade desigual e contraditória,
envolvendo economia,
política, geografia, história, cultura, religião, língua, tradição, identidade,
etnicismo, fundamentalismo, ideologia, utopia. Nesse horizonte, multiplicam-se
as possibilidades e as formas do espaço e tempo, o contraponto parte e todo, a
dialética singular e universal.
São ainda poucas
as indicações, intuições e interpretações de que a sociedade global corresponde
a uma nova realidade, uma totalidade abrangente, subsumindo formal ou realmente
as nacionais. "A idéia central é a de que existe um sistema global com
vida própria, independentemente das sociedades nacionais constituídas que
existem dentro das suas fronteiras. (...) Embora os estudos sobre o moderno
sistema mundial envolvam grandes divergências quanto a objeto, horizontes
temporais e metodologias, todos estão de acordo quanto a duas questões:
primeiro, reconhecem que um sistema mundial ou global existe além das
sociedades nacionais, que podem ser estudadas de per si. Reconhecem que
a economia mundial, ou o estado do sistema internacional, possuem vida e
dinâmica estrutural próprias, podendo ser identificados e interpretados.
Segundo, este sistema-mundo exerce influência sobre o desenvolvimento e, mais
importante ainda, o subdesenvolvimento das sociedades nacionais inseridas nas
estruturas globais. Não há apenas um sistema-mundo lá, ele também determina o
desenvolvimento de áreas dentro das suas fronteiras. Com efeito, o
desenvolvimento ou subdesenvolvimento de um país tem mais a ver com a sua
localização hierárquica na divisão do trabalho mundial do que com a própria
taxa de desenvolvimento interno. (...) Denominamos esta ciência emergente da
dinâmica global como globologia, o que simplesmente significa a ciência de
distintos processos globais, sejam econômicos, políticos ou culturais. Se a
sociologia é a ciência dos sistemas sociais, então globologia é a ciência do
sistema global. Globologia, pois, é análoga à sociologia e refere-se aos
estudos de estruturas e processos do sistema-mundo como um todo, da mesma forma
que a sociologia se refere ao estudo de estruturas e processos sociais" (5).
Há autores, no
entanto, que sistematizam de modo mais ou menos consistente e convincente suas
idéias sobre a sociedade global, como um todo ou em algumas das suas partes.
Ultrapassam o nível das indicações ou intuições preliminares. Focalizam
diretamente a problemática da globalização, colaborando no sentido de
equacionar essa problemática em suas implicações empíricas, metodológicas,
teóricas e, em certos casos, também epistemológicas. "Globalização diz
respeito a todos os processos por meio dos quais os povos do mundo são
incorporados em uma única sociedade mundial, a sociedade global. Globalismo é
uma das forças que atuam no desenvolvimento da globalização" (6).
A reflexão sobre a
sociedade global, em suas configurações e movimentos, transborda os limites
convencionais desta ou daquela ciência social. Ainda que haja ênfases e
prioridades, quanto a este ou aquele aspecto da globalização, logo fica
evidente que qualquer análise envolve necessariamente várias ciências. A economia da
sociedade global envolve também aspectos políticos, históricos, geográficos,
demográficos, culturais e outros. A cultura da globalização passa pela cultura
de massa, indústria cultural, mídia impressa e eletrônica, religiões e línguas,
além de outros aspectos que transbordam limites convencionais da antropologia e
da sociologia. Não sempre, mas em muitos casos, os estudos e as interpretações
sobre globalização reabrem questões epistemológicas que pareciam resolvidas,
quando as ciências sociais trabalhavam principalmente com a sociedade nacional,
como emblema do paradigma clássico. "A questão diante de nós, hoje, é se
há algum critério que possa ser usado para assegurar, com relativa clareza e
consistência, as fronteiras entre as quatro presumidas disciplinas de
antropologia, economia, ciência política e sociologia. A análise dos
sistemas-mundo responde com inequívoco não a esta pergunta. Todos os
critérios presumíveis – níveis de análise, objetos, métodos, enfoques teóricos
– ou não são mais verdadeiros na prática, ou, se mantidos, são obstáculos a
conhecimentos posteriores, antes do que estímulos para a sua criação" (7).
As noções de
espaço e tempo, fundamentais para todas as ciências sociais, estão sendo
revolucionadas pelos desenvolvimentos científicos e tecnológicos incorporados e
dinamizados pelos movimentos da sociedade global. As realidades e os
imaginários lançam-se em outros horizontes, mais amplos que a província e a
nação, a ilha e o arquipélago, a região e o continente, o mar e o oceano. As
redes de articulações e as alianças estratégicas de empresas, corporações,
conglomerados, fundações, centros e institutos de pesquisas, universidades,
igrejas, partidos, sindicatos, governos, meios de comunicação impressa e
eletrônica, tudo isso constitui e desenvolve tecidos que agilizam relações,
processos e estruturas, espaços e tempos, geografias e histórias. O local e o
global estão distantes e próximos, diversos e mesmos. As identidades
embaralham-se e multiplicam-se. As articulações e as velocidades
desterritorializam-se e re-territorializam-se em outros espaços, com outros
significados. O mundo se torna mais complexo e mais simples, micro e macro,
épico e dramático. "Há, hoje, um relógio mundial, fruto do progresso
técnico, mas o tempo-mundo é abstrato, exceto como relação. Temos, sem dúvida,
um tempo universal, tempo despótico, instrumento de medida hegemônico, que
comanda o tempo dos outros. Esse tempo despótico é responsável por
temporalidades hierárquicas, conflitantes, mas convergentes. Nesse sentido
todos os tempos são globais, mas não há um tempo mundial. O espaço se
globaliza, mas não é mundial como um todo, senão como metáfora. Todos os
lugares são mundiais, mas não há um espaço mundial. Quem se globaliza, mesmo,
são as pessoas e os lugares" (8).
A rigor, a
reflexão sobre a sociedade global reabre questões epistemológicas fundamentais:
espaço e tempo, sincronia e diacronia, micro e macro, singular e universal,
individualismo e holismo, pequeno relato e grande relato. São questões que se
colocam a partir do reconhecimento da sociedade global como uma totalidade
complexa e problemática, articulada e fragmentada, integrada e contraditória.
Simultaneamente às forças que operam no sentido da articulação, integração e
até mesmo homogeneização, operam forças que afirmam e desenvolvem não só as
diversidades, singularidades ou identidades, mas também hierarquias,
desigualdades, tensões, antagonismos. São forças que alimentam tendências
integrativas e fragmentárias, compreendendo nação e nacionalidade, grupo e
classes sociais, provincianismo e regionalismo, localismo e cosmopolitismo,
capitalismo e socialismo.
É óbvio que a
globalização envolve o problema da diversidade. Praticamente todos os estudos e
interpretações sobre a sociedade global colocam esse problema. A reflexão sobre
a diversidade não pode estar ausente, já que implica aspectos empíricos,
metodológicos, teóricos e propriamente epistemológicos. Logo que se reconhece
que a sociedade global é uma realidade em processo, que a globalização atinge
as coisas, as gentes e as idéias, bem como as sociedades e as nações, as
culturas e as civilizações, desde esse momento está posto o problema do
contraponto globalização e diversidade, assim como diversidade e desigualdade,
ou integração e antagonismo.
Mas ocorrem
posicionamentos exacerbados. Alguns chegam ao extremo de autonomizar o
diferente, diverso, sui generis. Apegam-se ao local e esquecem o global,
imaginando que o singular prescinde do universal. Enfatizam a diferença,
tornando-a original, estranha, exótica; ou elegendo-a primordial, isenta,
ideal. Incorrem no etnocentrismo ocidentalizante que pretendem criticar,
tomando o outro,
que querem resgatar e proteger, em um ente abstrato, deslocado da realidade, da
trama que o constitui como diferente. Alimentam uma nostálgica utopia escondida
no próprio imaginário. Outros, subordinam toda diversidade à globalidade.
Reconhecem a diversidade, mas não a contemplam, não percebem a sua
originalidade. Esquecem que o local pode não só se afirmar como se recriar no
contraponto com o global. Naturalmente entre esses dois extremos, uns
priorizando o local e outros o global, há toda uma gama de posições. Revelam-se
nas reflexões sobre os mais diversos aspectos da realidade.
Esse o contexto
metodológico em que se situam algumas das controvérsias correntes nas ciências
sociais. Uns preocupam-se com a diversidade, procurando a identidade, e
protestando contra a globalidade. Outros contrapõem o saber local ao global,
falando em indigenizafão ou criolização das ciências sociais,
fazendo reservas ou oposição à ocidentalização. Há uma "crescente
demanda pela indigenização das ciências sociais no Oriente Médio e no
Sudoeste Asiático, em substituição à ocidentalização e importação das ciências
sociais distorcidas. Recentemente deflagrou-se um clamor pela pureza dos
traços culturais. Aqueles, no entanto, que pedem autenticidade pela indigenização
podem não estar ainda cientes de que o saber local, sobre o qual querem
construir uma alternativa, há muito tempo tem sido parte das estruturas
globais; ou de que desempenham uma parte do jogo da cultura global, que também
pede a essência, da verdade local" (9).
Neste ponto, cabe
relembrar que o problema da diversidade está sempre presente nas configurações
e movimentos da sociedade global. Seria impossível imaginar a globalização sem
a multiplicidade dos indivíduos, grupos, classes, tribos, nações,
nacionalidades, culturas etc. São estes que se globalizam, ao acaso ou por
indução, sabendo ou não. Da mesmo forma que são estes que vivem, agem, pensam,
aderem, protestam, mudam, transformam-se. "O capitalismo global
simultaneamente promove e é condicionado pela homogeneidade cultura e pela heterogeneidade
cultural. A produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente
essencial do capitalismo contemporâneo, que é, em todos os casos,
crescentemente envolvido na múltipla variedade de micro-mercados (nacional,
cultural, racial e étnico, de gênero, socialmente estratificado e assim por
diante). Ao mesmo tempo, o micromercado ocorre no contexto das crescentes
práticas econômicas universais-globais" (10).
Em bom
entendimento, não se trata de priorizar um ou outro momento da realidade e da
reflexão. É claro que a análise da sociedade global envolve sempre tribo, nação
e nacionalidade, história e geografia, cultura e civilização, indivíduo, grupo
e classe, sindicato, partido político, movimento social e corrente de opinião
pública, indústria e agricultura, mercado e planejamento, campo e cidade,
identidade, diversidade, desigualdade e contradição, soberania e hegemonia,
reforma e revolução, paz e guerra.
Em todos os casos
está em causa o contraponto local e global, parte e todo, micro e macro,
individualismo e holismo. Em todos os casos, os momentos lógicos da reflexão
científica necessariamente envolvem a dialética singular e universal. Não se
trata de priorizar um momento, em detrimento do outro, mas reconhecer que ambos
se constituem reciprocamente, articulados harmônica, tensa e
contraditoriamente, envolvendo múltiplas mediações. São mediações
indispensáveis e secundárias, evidentes e insuspeitadas, próximas e remotas.
Podem ser signos com sinais trocados, reversos, recriados.
Nesses termos é
que é indispensável que toda reflexão sobre a sociedade global contemple tanto
a diversidade como a globalidade, reconhecendo que ambas se constituem
simultânea e reciprocamente. Quando isso não ocorre, a reflexão se arrisca a
permanecer na mera descrição, ideologizar este ou aquele momento da análise, ou
ficar a meio caminho da interpretação. É difícil, na verdade impossível, que o
conceito, a categoria ou a interpretação deixem de contemplar o contraponto singular
e universal (11).
No conjunto, os
estudos e as interpretações sobre a sociedade global, em suas configurações e
em seus movimentos, permitem algumas observações do maior interesse para o
esclarecimento desse novo objeto das ciências sociais.
Primeiro, a
sociedade global se constitui desde o início como uma totalidade problemática,
complexa e contraditória, aberta em movimento. Está impregnada e atravessada
por totalidades também notáveis, às vezes também decisivas, ainda que
subsumidas formal ou realmente pela totalidade mais ampla, abrangente, global:
estado-nação, bloco geopolítico, sistema econômico regional, grande potência,
empresa transnacional, ONU, FMI, Banco Mundial, indústria cultural e outras;
também tribo, nação, nacionalidade, etnia, religião, língua, cultura e outras
realidades também fundamentais. Ás próprias formas de pensamento inserem-se na
dinâmica da sociedade global, no seu todo ou em suas partes, operando no
sentido da constituição de todos os subordinados, ou da constituição da
sociedade global como uma totalidade abrangente, sempre problemática, complexa
e contraditória.
Segundo, a
sociedade global é o cenário mais amplo do desenvolvimento desigual, combinado
e contraditório. A dinâmica do todo não se distribui similarmente pelas partes.
As partes, enquanto distintas totalidades também notáveis, consistentes, tanto
produzem e reproduzem seus próprios dinamismos como assimilam diferencialmente
os dinamismos provenientes da sociedade global, enquanto totalidade mais
abrangente. É no nível do desenvolvimento desigual, combinado e contraditório,
que se expressam diversidades, localismos, singularidades, particularismos ou
identidades. Às vezes, os localismos, provincianismos ou nacionalismos podem
exacerbar-se, precisamente devido aos desencontros, às potencialidades e
dinâmicas próprias de cada um, cada parte; e também devido às potenciações
provenientes da dinâmica da sociedade global, das relações, processos e
estruturas que movimentam o todo abrangente. Sob vários aspectos, a
ressurgência de nacionalismos, regionalismos, provincianismos, etnicismos,
fundamentalismos e identidades são fenômenos que se esclarecem melhor quando
vistos nos horizontes dos rearranjos e tensões provocados pela emergência da
sociedade global. À medida em que esta debilita o
estado-nação, reduz os espaços da soberania nacional, transforma a
sociedade nacional em província da global, nessa medida reflorescem identidades
pretéritas e presentes, novas e anacrônicas. Também por isto a globalização não
significa nunca homogeneização, mas diferenciação em outros níveis,
diversidades com outras potencialidades, desigualdades com outras forças. Nesse
horizonte, a sociedade global pode ser vista como uma totalidade desde o início
problemática, no sentido de complexa e contraditória; atravessada pelo
desenvolvimento desigual, combinado e contraditório, que se especifica no
âmbito de indivíduos, grupos, classes, tribos, nações, sociedades, culturas,
religiões, línguas e outras dimensões singulares ou particulares.
Terceiro, à medida
em que se constitui e desenvolve a sociedade global, como emblema de um novo
paradigma das ciências sociais, alguns conceitos, categorias e interpretações
podem tornar-se obsoletos, exigir reelaborações ou ser articulados com novas
noções suscitadas pela reflexão sobre a globalização. Já são diversas as noções
que começam a povoar o pensamento global: globalização, desterritorialização,
re-territorialização, miniaturização, cultural mundial, aldeia global, cidade
global, shopping center global, disneylândia global, fábrica global,
nova divisão internacional do trabalho, redes de
articulações intra e intercorporações, alianças estratégicas de corporações,
modernidade-mundo, sistema-mundo, economia-mundo, comunicação mundo,
publicidade global, espaço europeu, espaço do Pacífico, capitalismo global,
moeda global, capital global, terceiromundialização do Primeiro Mundo, exército
industrial ativo e de reserva global, planeta terra, sociedade civil mundial,
cidadão do mundo, contrato social mundial, pensamento universal.
Quarto, nos
horizontes abertos pela sociedade global, a historia universal deixa de ser uma
fantasia, metáfora ou utopia. À medida em que se organiza e movimenta, as
histórias das nações e nacionalidades inserem-se de forma cada vez mais
dinâmica nos movimentos da história universal. As nações e as nacionalidades
continuam a desenvolver-se com ritmos marcados por suas singularidades,
tradições, forças, dinâmicas, historicidades, míticas. Simultaneamente, no
entanto, umas e outras são influenciadas pelos andamentos da história
universal. Esse o contexto em que se instauram algumas das novas condições da
duração, curta, média ou longa, histórica ou mítica. Já não é mais apenas a
grande potência, a metrópole imperialista, que incute de modo mais ou menos
exclusivo o seu andamento neste ou naquele segmento ou em grande parte do
mundo. Desde que se forma e se desenvolve a sociedade global, com a sua
economia política, a sua dinâmica sócio-cultural, desde esse momento as
histórias nacionais tendem a ser, em alguma medida, subsumidas pela história
universal.
Quinto, é no
âmbito da sociedade global, com sua economia política, dinâmica sócio-cultural,
historicidade complexa e contraditória, que se concretizam as possibilidades do
pensamento global. O que era fantasia, metáfora ou utopia, quando o pensamento
se propunha pensar o mundo, equacionar a razão universal, imaginar o
cosmopolitismo, diagnosticar as contradições universais, mergulhar nas
opacidades do real, quando se forma a sociedade global, tudo isso pode adquirir
outro significado, novas possibilidades. Nesse sentido é que a emergência da
sociedade global permite repensar a dialética da história esboçada por Marx; ou
a teoria da racionalização generalizada sugerida por Weber. Talvez se possa
dizer que sem Weber e Marx, fundamentalmente mas não exclusivamente, não é
possível pensar, em toda a sua abrangência e complexidade, a sociedade global
que se forma no limiar do século XXI. Outra vez, no entanto, isto não significa
que se torna possível a transferência ou adaptação pura e simples de conceitos,
categorias, interpretações. Pode-se afirmar que as obras de Marx e Weber
constituem duas matrizes excepcionalmente fecundas para pensar-se configurações
e movimentos da sociedade global. Pensar, compreender e explicar essa sociedade
tanto em suas singularidades e particularidades como nos horizontes da história
universal.
Nessa perspectiva,
a modernidade propriamente dita encontra outras possibilidades de
desenvolver-se, seja como razão instrumental, seja como razão crítica. "No
fim das contas, é pois sua globalidade simultaneamente estrutural e planetária
que define a modernidade do final do século XX como um momento singular.
Globalidade social de um pan-capitalismo onipresente e de um sistema social
fundado na imbricação e interconexão de múltiplos processos que são eles
mesmos, cada vez mais complexos. Globalidade espacial do planeta
intercomunicado, do mercado
mundial, do tecnocosmo. Essa é a modernidade-mundo. (...) Tal é, pois, a
mutação fundamental realizada pela modernidade: com a mundializaçao da economia, o
tecnocosmo, a internacionalização da vida social, coloca-se em evidência um
sistema global, do qual não existiu jamais um equivalente ao longo da história
da humanidade. É impossível ocultar a força qualitativa desta mutação em nome
da continuidade capitalista. Também seria desarrazoado reduzi-la à sua dimensão
técnica. (...) Momento histórico singular, a modernidade mundo impõe a sua
singularidade também à reflexão histórica e ao saber histórico" (12).
Notas
1 Immanuel Wallerstein, Unthinking
social science (The limits of nineteenth-century paradigms). Cambridge,
Polity Press, 1991, p. 246. Citação retirada do cap. 18: Call for a debate
about the paradigm, p. 236-256.
2 Martin Albrow &
Elizabeth King (eds.), Globalization, knowledge and society (Readings
from International Sociology). Londres, Sage Publications, 1990, p. 155.
Citação
de One world society, introdução de uma das partes da coletânea reunindo textos
de diferentes autores.
3 Anthony Giddens, As
conseqüências da modernidade, trad, de Raul Fiker. São Paulo, Editora
Unesp, 1991, p. 69-70.
4 Talcott Parsons,
Evolutionary universals in society. New York, American Sociological Review,
v. 29, n. 3,1964; Talcott Parsons, Politics and social structure. New
York, The Free Press, 1969, cap. 12: Order and community in the international
social system; Harold D. Lasswell, World organization and society, Daniel
Lerner e Harold D. Las-swell (eds.), The poticy sciences, Stanford,
Stanford University Press, 1965, cap. VI; Alex Inkles, The emerging social
structure of the world, Princeton, World politics, v. XXVII, n. 4,1975,
p. 467-495; Wilbert E. Moore, Global sociology: the world as a singular system,
Chicago, The American Journal of Sociology, v. LXXI, n. 5,1966, p. 475-482;
Niklas Luhmann, The world society as a social system, International Journal
of General Systems, v. 8,1982, p. 131-138; Robert W. Cox, On thinking about
future world order, Princeton, World Politics, v. XXVIII, n. 2,1976, p.
175-196; C. E. Black, The dynamics or modernization (A study in
comparative history), New York, Harper & Row Publishers, 1966.
5 Albert Bergesen, The
emerging science of the world-system, International Social Science Journal,
v. XXXIV, n. 1, UNESCO, 1982, p. 23-36; citação das p. 23-24.
6 Martin Albrow,
Globalization, knowledge and society, publicado por Martin Albrow e Elizabeth
King (eds.), Globalization, knowledge and society (Readings from International
sociology), London, Sage Publications, 1990, p. 3-13; citação da p. 9.
7 Immanuel Wallerstein,
World-systems analysis, publicado por Anthony Giddens e Jonathan H. Turner
(eds.), Social theory today, Cambridge, Polity Press, 1987, p. 309-324;
citação da p. 312; consultar também: Immanuel Wallerstein, Unthinking social
science (The limits of nineteenth-century paradigms), Cambridge, Polity
Press, 1991, especialmente parte VI: World-systems analysis as unthinking.
8 Milton Santos, A aceleração
contemporânea: tempo mundo e espaço mundo, conferênda de abertura do Encontro
Internacional O novo mapa ao mundo, Departamento de Geografia, Universidade
de São Paulo, l de set. 1992; citação da p. 4. Do mesmo autor: Les espaces de
la globalisation, comunicação apresentada no Seminário organizado por Gemdev.
Paris, 4-5 fev. 1993.
9 Mona Abaza e Georg Stauth, Occidental
reason, orientalism, islamic fundamentalism: a critique, publicado por Martin
Albrow e Elizabeth King, Globalization, knowledge and society, citado,
p. 209-230; citação da p. 211.
10 Roland
Robertson, Globatization(social theory and global culture), London,
Sage Publications, 1992, p. 173. Consultar: International Social Science
Journal, n. 117, UNESCO, 1988, nº especial sobre The local-globe nexus;
Cliffor Geertz, Savoir local, savoir global (Les lieux du savoir), trad,
de Denise Paulme, Paris, Presses Universitaires de France, 1986.
11 Charles Bright e Michael Geyer,
For a unified history of the world in the twentieth century, Radical History
Review, n. 39,1987, p. 69-91; George E. Marcus, Past, present and emergent
identities: requirements for ethnographies of late twentieth century modernity
worldwide, Anais da 17ª Reunião, Florianópolis, Associação Brasileira de
Antropologia, 1990, p. 21-46.
12 Jean Chesneaux, Modernité-monde
(Brave modern world), Paris, Éditions La Décou-verte, 1989, p. 196,198 e 199.
Consultar também: Serge Latouche, L'ocidentalisation du monde, Paris,
Editions La Découverte, 1989; Samir Amin, L'emfire du chaos (La nouvelle
mondialisation capitaliste), Paris, Editions L' Harmattan, 1991.
Octavio Ianni é sociólogo e professor do
Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas da
Universidade de Campinas. É autor de A sociedade global (Civilização
Brasileira, 1994), entre outros livros.