Interdisciplinaridade no vestibular *

Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira

* Publicado no Jornal “A Razão” em 07.01.2007

 


 

   Muitas universidades no país resolveram inserir a interdisciplinaridade em seus vestibulares. Juntamente com as perguntas de estilo clássico, a introdução das chamadas “questões interdisciplinares” tem sido justificada  como uma maneira de se “incluir perguntas que cobrem o raciocínio e sejam mais abrangentes”, e com isso “selecionar alunos com uma postura crítica diante do conhecimento”. Ao mesmo tempo, as instituições estariam se adequando ao que pede a Lei de Diretrizes e Bases da Educação  no que tange a avaliações de caráter qualitativo, e no que se estabelece como finalidade da educação, a estimulação do pensamento reflexivo. Porém, esta decisão apenas no vestibular, é uma decisão simplificadora, e logo apresenta graves problemas que, em última análise, comprometem os objetivos desejados de “criticidade e reflexividade”.

   Primeiro, destaco a persistência da confusão em torno da interdisciplinaridade, que continua sendo tomada como justaposição entre conteúdos de diferentes disciplinas. Ao contrário da multidisciplinaridade (“relação fraca ou simples” entre disciplinas, sem uma efetiva interação entre elas), a interdisciplinaridade diz respeito a uma “inter-relação” que se estabelece a partir de muito diálogo entre os semelhantes e os diferentes especialistas, buscando-se como resultado de intensas trocas, a superação das fronteiras disciplinares, e com isto, novas maneiras de se relacionar com o conhecimento, com os Outros e com o mundo. Ora, questões que de acordo com uma “pós-modernidade vazia”, são elaboradas a partir do recorte e colagem de trechos de diferentes disciplinas, nada têm de interdisciplinar, e na melhor das hipóteses podem ser entendidas como multidisciplinares.

  Segundo, a incoerência explícita desta decisão. Nos vestibulares, a tentativa de uma ação interdisciplinar, nas práticas cotidianas de ensino, pesquisa e extensão, a negação, o descaso e o desconhecimento da mesma. Talvez os professores responsáveis por este “novo enfoque de avaliação”, trabalhem em suas instituições sob uma perspectiva interdisciplinar, e neste caso, seria uma grande contribuição à qualidade técnica e política das universidades, que os mesmos desenvolvessem trabalhos com os demais colegas objetivando-se a articulação dos diversos saberes. Embora os currículos continuem sendo desenhados pelas disciplinas, estas deveriam se constituir em unidades que privilegiassem a busca e a análise das relações (de seus conteúdos, e entre elas), e não em unidades de conteúdos dissociados e dissociadas uns/umas dos/das outros/outras. 

  As práticas educacionais na universidade (e em todo o nosso sistema educacional), são regidas pela ultra-especialização geradora de uma completa desarticulação entre as disciplinas, formando-se áreas que representam verdadeiras “migalhas do saber”. Assim, como e por que cobrar dos vestibulandos “raciocínio” interdisciplinar? A interdisciplinaridade faz parte de um amplo projeto de mudanças, e, portanto, não começa nem se esgota em alguns dias de vestibular.

  Por último, e relacionado com o problema anterior, a avaliação está sendo aplicada completamente desvinculada de um processo. Se no ensino médio nossos alunos desconhecem a metodologia interdisciplinar e suas avaliações são predominantemente disciplinares, quantitativas e voltadas para um raciocínio limitado/delimitado, torna-se incorreta, no final deste percurso, a tentativa de uma avaliação interdisciplinar.

  O discurso da interdisciplinaridade no vestibular está colaborando para um entendimento distorcido da mesma, aumentando as incertezas e as angústias dos vestibulandos.  As “fábricas” pré-vestibulares detectaram esta distorção e este medo, e já falam, descabidamente, em “ensinar a resolver” as tais questões interdisciplinares, como se fosse possível associar interdisciplinaridade com treinamento. Reflexão, criticidade, entendimento e práticas relacionais são resultados de um longo processo educacional crítico/progressista, jamais de fórmulas voltadas exclusivamente para o aumento da performance dos vestibulandos no acerto de questões.

Mais uma vez,  uma questão complexa, e como tal rica em possibilidades, está sendo vista pelas lentes da superficialidade e dos modismos, infelizmente bastante comuns na área educacional, tendo-se como resultado, obstáculos ao conhecimento e à efetivação das mudanças que desejamos.  Seria bastante produtivo para a educação, bem como para o crescimento intelectual de nossos alunos, que os educadores e todos aqueles que nas condições atuais de nosso sistema educacional defendem a interdisciplinaridade no vestibular, refletissem em profundidade sobre a seguinte idéia de Edgar Morin: “a simplificação é um ato inibidor, que limita o processo do conhecimento”.


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