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A Psicologia do Senso Comum
e o Discurso Jornalístico*
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Gilberto Lucio da Silva**

"Somos freqüentemente obrigados, por propósitos terapêuticos,
a nos opormos ao superego e nos esforçarmos para diminuir suas exigências.
Exatamente as mesmas objeções podem ser feitas
contra as exigências éticas do sugerego cultural."

Sigmund Freud, O Mal-estar da Civilização

 

Tentamos apreender o sentido de um fenômeno rotineiro no quadro sócio-cultural brasileiro nas duas últimas décadas: a quase sempre simpática e tranquilizadora presença de profissionais "psi" concedendo entrevistas nos programas televisivos, jornalísticos ou não, participando de debates nas emissoras de rádio, e tendo publicadas suas opiniões em jornais e revistas. Estes são convocados enquanto "especialistas na alma humana", conhecedores e mestres da intimidade mais recôndita e das camadas mais profundas da mente, a prestar serviços à comunidade através de sua compreensão esclarecida e esclarecedora.

O questionamento que podemos fazer a partir desta constatação é o que estes profissionais estão fazendo na mídia? O que comunicam? De que modo o fazem? O que leva as emissoras de rádio e televisão e as redações de jornais e periódicos a colocá-los na pauta? A respeito do que falam? Com base em que ponto de vista?

Quais as regras que podemos observar no campo jornalístico? Em primeiro lugar, a limitação do tempo. Na televisão, bem como no rádio, tempo é dinheiro, e as demandas dos patrocinadores hão de ser respeitadas. O profissional além de falar no tempo que lhe é atribuído, ainda deve fazê-lo de uma maneira que possa ser compreendido por todos os ouvintes. Em nome da conveniência da audiência, o tema tem de ser tratado de modo a que todos os indivíduos que a ele tem acesso consigam reconhecer-se nele. A audiência decide o que deve ser dito, em última análise.

Esta "mentalidade-índice-de-audiência" costuma criar um último problema, característico do campo jornalístico. O mundo social é descrito-prescito pela televisão, e pelos meios de comunicação em geral, que se tornam o árbitro do acesso à existência social e política. Algo do tipo: só o que aparece no noticiário é digno de ser visto.

Diante disto, a freqüente e progressiva participação, nos principais veículos de comunicação, do que chamamos "especialistas psi", em entrevistas que enfocam os mais variados assuntos, se relaciona ao fato de que estes assuntos estão, presumivelmente, ligados aquilo que se considera o bem maior do homem contemporâneo: sua Personalidade. Nesta ideologia, o romântico culto da sinceridade e da autenticidade rasgou as máscaras que as pessoas usavam em público e destruiu os limites entre vida pública e privada.

Poder-se-ía imaginar que nada seria mais natural, tendo em vista a importância que a subjetividade adquiriu no trato social. Hoje, mais que em qualquer época da história da sociedade ocidental, o que o sujeito sente, o que reconhece na sua anima (que pode ser definida como aquilo que nos impulsiona internamente, o que nos dá animação) é o aspecto mais importante da sua contribuição perante o mundo em que vive.

Entretanto, mesmo que seja assim na vida como o é na canção caetana e: "Narciso acha feio o que não é espelho", não podemos esquecer que o espelho é construído dentro e/ou fora do sujeito que nele se olha.

E se esta "realidade" do indivíduo narcisista pode ser vista como sendo o real da sociedade contemporânea, temos de observar e descrever quais os aspectos que a constituem. Podemos verificar, por exemplo, que os indivíduos residentes em grandes centros urbanos, onde a influência da mídia se faz mais evidente, desenvolveram, nas três últimas décadas, um progressivo enfraquecimento do Sentido de Tempo Histórico. Isto os leva a viver para o momento, viver para si, e não para as gerações seguintes, ou para a posteridade. Se perdeu em grande parte o senso de pertencer a um contínuo histórico, a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e se prolongarão no futuro.

Tais indivíduos também vivem em busca da sensação momentânea de bem estar pessoal, saúde e segurança psíquica, no sentido de estabelecer uma identidade. Daí podermos afirmar que o clima social contemporâneo é terapêutico, e que neste clima a atitude política social é substituída pela atitude introspectiva, onde o indivíduo experimenta de um tudo (bioenergética, hipnotismo, tai chi, dança moderna, meditação, massagem, feng shui, corrida, alimentação natural, controle da mente, acupuntura, terapia sexual, terapia reichiana, entre outros) a fim de atingir um estado em que se "ama" bastante para não sentir necessidade de outras pessoas para fazê-lo feliz.

Se são plausíveis as colocações anteriores, de que somos narcisistas e sempre usamos espelhos, sugerimos que possamos pelo menos olhar e dizer o que vemos e não o que é esperado que vejamos. Um pouco de faculdade crítica em princípio, um tanto de espírito analítico e menos superficialidade, e poderemos começar a descobrir que ser assim, narcisistas, imersos na contemplação do próprio umbigo, como se dele fosse brotar o mundo, resulta em um corpus social anti-natural, onde tentamos viver o paradoxo insolúvel de uma sociedade sem grupo. Uma sociedade onde o ideal moral é o indivíduo e a Psicologia é a "nova ciência da administração moral".

Lembremos, por exemplo, com RACAMIER (cf. DESSUANT, 1992), que no mito grego o que matou Narciso não foi sua contemplação de si mesmo no espelho das águas de um lago, mas se ter esquecido de que aquilo era um "espelho" e não um corpo igual ao seu. Por confundirmos nosso próprio eu (espelho) com o corpo social é que se inicia uma dialética da realização onde o meio é uma faceta, talvez a maior, da personalidade individual, e os motivos sociais são fundamentados pelo apetite dos indivíduos.

Os "especialistas psi" são chamados justamente para tentar organizar o resultado deste estado de coisas. Funcionam com a mesma função dos oráculos na Grécia Antiga, qual seja, predizer o futuro. E sendo assim disputam o "mercado" de assertivas com os astrólogos, tarólogos, videntes e novos profetas, na previsão do "tempo psíquico". Vai chover ou fazer sol? A temperatura (do social) vai ficar estável ou sujeita a variações bruscas? São algumas das perguntas que poderiam ser dirigidas aos profissionais da saúde mental (tomada como espelho e corpo da saúde social) que são entrevistados. Pois afinal, se o mundo é constituído de indivíduos, e se os indivíduos vão bem, o meio social também (sic) estará. Esta é a lógica interna do sistema de entrevistas especializadas nos aspectos psicológicos das questões em pauta. E como toda questão é psicologizada, todos os aspectos são psicológicos.

Não silenciando, os "especialistas" perdem a chance de contribuir para que outros saberes sejam buscados na tentativa de entender o que está em pauta. Pois se digo que sei o que na verdade desconheço, e a minha palavra é conclamada e aclamada como sendo a mais eficaz para tudo, deixo para o ouvinte a sensação de ter entendido (ainda que minimamente) o que se passa. E como, em geral, o conhecimento jornalístico peca pela superficialidade, o leitor-ouvinte-espectador, que nada mais lê que o jornal do dia, e nada mais busca que aquilo que vê na televisiva intimidade de seu lar, recebe o que é dito numa entrevista – ainda por cima exposto por um especialista, alguém que presumivelmente sabe do que está falando – como algo que deve ficar incluso no rol das certezas.

É parte do argumento anterior, a constatação de que, no mundo contemporâneo, os indivíduos não param para pensar. Isso é quase uma "natureza" na vida em sociedade urbana. Trabalho, trabalho, trabalho, lazer (com hora agendada), trabalho, trabalho, ver um pouco (e só um pouco!) de televisão, mais trabalho... Esse ritmo (quase um rito) torna-o propenso a aceitar um saber "mastigado", fragmentado, que lhe é entregue no aconchego de sua casa. Com pouco tempo para "digerir" as informações que lhe são oferecidas, sua apreciação se dá nos termos de uma anima mínima (LYOTARD), só o superficial o atinge, o mobiliza.

Do ponto de vista cultural há um empobrecimento. Pois onde tudo é facilmente "engolido", quase nada de fato é assimilado. Ou talvez haja uma "ingestão" parcial de cada discurso e de cada fenômeno num acúmulo interno que faz as vezes de estrutura de entendimento da vida, do social, e, sendo assim, as partes (mínimas) de cada discurso são tidas como suficientes para explicar o conjunto, numa visão enciclopédica ao estilo da Internet ou de revista científica de curiosidades para adolescentes!

Esta leitura do real, do social, de modo rápido, novidadeiro e sem esforço, gera uma extrema relativização de tudo. A nova Cultura do Narcisismo que traz, ao nosso ver, em seu bojo estas características, não se opõe ao eu (narcísico) e promove a ilusão de que todas as suas variedades podem existir e coexistir.

Pois, desde Freud, o discurso veiculado pelos "especialistas psi" busca apresentar uma outra racionalidade que possa "sobreviver" à descentração provocada pela descoberta do Inconsciente. Se a Razão não é mais o "Senhor do Castelo", e o sujeito vive em continua ambivalência entre as forças de seus desejos e a realidade, outra posição tem de ser assumida por um ser pensante, ainda que ambivalente. Esta posição poderia ser entendida como a assunção de um caráter estável numa época instável.

Esta resignação a viver dentro dos limites de uma moralidade individual (diríamos melhor, individualista), vivida com base num "alheamento" em relação aos outros, reflete uma tradução da Psicanálise Freudiana em moldes hedonistas. Isto significa, em princípio, que, nesta ótica, os indivíduos simplesmente buscam prazer e evitam a dor, sem preocupações quanto ao sentido de seus atos.

Faz-se uma política dos "bons sentimentos" e da "boa vizinhança", onde o que importa é se sentir adequado no seu quinhão de prazer. E é a partir deste discurso espontaneísta que se busca, explorando e lisonjeando os gostos particulares de cada ouvinte, atingir a mais ampla audiência, oferecendo aos espectadores "fatias de vida". E estas deverão, sempre que possível, revelar-se cheias de "novidades", que nada mais serão que exibições cruas de experiências vividas, freqüentemente extremas e capazes de satisfazer uma forma de voyeurismo e de exibicionismo. Afinal, todos querem os seus quinze minutos de fama.

Mas, entendamos... ele deseja ser novamente convidado... não pode se tornar uma persona non grata. A este inconsciente (da "mentalidade-índice-de-audiência") ele não deve resistir, caso pretenda desfrutar dos benefícios de um "gozo maior". Talvez um convite para o Programa do Jô!

Concluindo, diríamos que o terreno em que são peritos não é o do conhecimento universal, adquirido ou não nas academias, tão pouco é um conhecimento especializado e argumentativo sobre um tema específico. Sua competência consiste em formular tomadas de posição simples em termos claros e brilhantes (como fogos de artifício), evitando se embaraçar com saberes complexos. Interessam-se mais pelo jogo e pelos jogadores do que por aquilo que está em jogo.

*Resumo do trabalho apresentado no X Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste, UFBA, Salvador, Bahia, 14 a 17 de agosto de 2001.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar