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Redução de danos: vivendo acorrentado à beira do abismo.

Gilberto Lucio da Silva **

 

Existe uma música, criação do compositor e intérprete pernambucano Lenine, que diz: “tudo em volta do buraco é beira”. Conforme podemos ver, esta traz a perfeita noção de que, em primeiro lugar, o que define um “buraco” é a “beira”, o “em torno”, o meio circundante, que delimita e define o lugar da falta. Transmite, de igual modo, uma mensagem otimista. A de que existe um espaço muito maior de “ancoragem”, onde se possa segurar, do que a vertigem do nada – ou seja, sempre se tem mais beira que buraco, mais apoio que ausência.

Na gestão do Partido dos Trabalhadores, a implantação do modelo de atendimento aos usuários de drogas psicoativas tanto na esfera do governo federal, como no município de Recife, se definiu pela proposta da Redução de Danos. No Recife, esta proposta recebeu o nome de Projeto Mais Vida, programa de redução de danos no consumo de álcool, fumo e outras drogas.

Reduzir o dano no uso de drogas tem sido apontado como um modo de intervenção moderno, de primeiro mundo, mais de acordo com o respeito às liberdades individuais e aos Direitos Humanos. A versão deste modelo a ser implantada na atual gestão do município preconiza, sobretudo, a liberdade do adulto de decidir usar ou não a droga, entendendo o uso como algo que está na esfera da opção, da vontade.

Uma vez que esta intervenção se propõe a trabalhar o uso de drogas psicoativas como se as mesmas fossem usadas com base no livre arbítrio, quer nos parecer que sua abordagem, no mínimo, apela para uma das mais curiosas tendências políticas, éticas e filosóficas na reflexão sobre o tema. E como não é condizente com o papel de “cuidador” o agir com base na curiosidade, menos ainda no que tange aos cuidados com a saúde mental – este cristal tão frágil, sempre predisposto a rachaduras na concepção freudiana, e avaliando que não somos parentes dos felinos para morrer de curiosidade, entendemos que algo deve ser feito para realmente evitar danos ainda maiores ao já entorpecido cidadão que faz uso de drogas e é utilizado como justificativa para as mais diversas intervenções.

Certamente é do conhecimento dos zelosos especialistas na área que as drogas psicoativas causam alterações nas sensações, no humor, na consciência, cognição, capacidade de julgamento ou em outras funções psicológicas e comportamentais. Como todos nós, seres humanos, possuímos, independente de nossa etnia, credo ou cultura, o mesmo aparato neurológico, as alterações causadas pelo uso de drogas psicoativas podem promover redução, aumento ou perturbação da atividade cerebral, fazendo com que surjam quadros de relaxamento e agitação extremos, episódios de intoxicação, síndrome de abstinência e complicações clínicas.

Obviamente, as drogas psicoativas não são todas iguais. Apresentam graus diferenciados de risco, dano e reações, em conformidade com o tipo de substância, a maneira como é utilizada, a pessoa e o lugar em que ocorre o uso. Mas, indiscutivelmente, estão cada vez mais disponíveis no meio social, implicando que pessoas e grupos sociais com diferentes graus de vulnerabilidade no nível individual, que inclui fatores biológicos, comportamentais, psicológicos e cognitivos, social, composto pela rede de interações sociais e pelos determinantes demográficos, e/ou programático, que diz respeito ao acesso aos bens, insumos e serviços disponíveis, passaram a ter contato com as drogas, e apresentam pouca ou nenhuma capacidade de decidir sobre sua situação de risco.

Além disso, as drogas psicoativas estão recebendo continuamente o apoio de determinados segmentos da mídia e de personalidades públicas ligados aos meios culturais ditos “alternativos” e/ou “transgressivos”, os quais atingem mais diretamente as camadas mais jovens da sociedade. Se reconhecermos que a adolescência é um período especial na formação da identidade e desenvolvimento da personalidade, quando a influência do grupo e o fenômeno da “modelagem” condicionam a imitação de determinados comportamentos a partir de um ídolo, o uso regular de drogas psicoativas pode resultar em inconsistências ou deficiências na personalidade futura.

Estas características são suficientes para desmontar quaisquer pretensões de liberdade no uso de drogas. Supõe-se que até os RD (Redutores de Danos) sabem disso, muito embora a equipe do Mais Vida faça absoluta – e curiosa – questão de tirar o “psicoativa” da sua auto definição. Deixar de dizer algo, felizmente ou infelizmente, não significa em absoluto que este algo deixe de existir.

Para podermos visualizar a situação do usuário de qualquer droga psicoativa, pode ser útil recorrer a uma imagem que traduz um certo tipo de consciência, antes mesmo de que tenhamos todos os argumentos para expor uma aproximação teórica. Para o filósofo W. BENJAMIN (1985), por exemplo, a imagem é um ato e não uma coisa, se constituindo na consciência de alguma coisa. Neste sentido, uma das imagens do usuário contemporâneo de drogas psicoativas que surge na consciência é a de alguém que vive circulando em torno de um abismo.

Conforme sabemos, existem muitos povos que vivem em regiões montanhosas, na Ásia, na Europa, nos países da América do Sul que são atravessados pela Cordilheira dos Andes, que encontraram soluções adaptativas para conviverem com as situações de risco que precipícios e despenhadeiros costumam trazer. De modo similar, muitas sociedades incluíram algum tipo de droga psicoativa em seus rituais de ordem religiosa, nas festividades e celebrações. A droga, como o abismo, cumpriu e cumpre uma função reguladora, de impor limites para realizar ritos de “passagem” os mais diversos, para atingir objetivos mais distantes, para fazer viagens que envolviam desafio e coragem, vencendo grandes riscos e obtendo prazer em fazê-lo.

Mas, o que é um abismo, afinal? Estritamente, um grande buraco quase sempre originado de falhas geológicas ou da erosão ambiental que produzem características no revelo de determinada região do globo terrestre. Felizmente, para a civilização, existem grandes espaços cultiváveis e habitáveis entre um e outro destes “buracos”, que permitiram que a sociedade humana pudesse crescer em torno e apesar deles.

Na compreensão do psicanalista Contardo CALLIGARIS (1989), os elementos “habitáveis” e “cultiváveis” da civilização compõem uma “rede de significantes” que, embora “não amarre o mundo” em torno dos “buracos” dos transtornos de personalidade, das estruturas psicóticas, e dos distúrbios de caráter, se interpõe como o único esteio onde um eu imaturo, superficial, insuficiente ou inadequado do paciente pode “se segurar” para manter uma mínima errância no mundo. Errância que é fascinante até que o indivíduo encontre uma crise. E sempre há uma crise.

Freqüentemente, o terapeuta do usuário de drogas funciona como elemento desta “rede”, ou é, nos casos mais graves de abuso e dependência, a própria “beirada”, o tecido mesmo desta rede, o ponto além do qual só existe o vazio e a angústia da queda. O apoio deste profissional ou, como preferido na linguagem “politicamente” correta (que às vezes é mais policial que política) do agente de saúde, pode funcionar como uma espécie de “beira”, agindo com base em diversos modelos, dentre os quais o da Redução de Danos.

Pode, por exemplo, apresentar ao usuário (ocasional, prejudicial ou dependente) uma passarela em torno do abismo-droga, e convidá-lo a andar por ela em sua companhia. Nesta passarela, mais ou menos segura a depender de sua estrutura, o usuário pode, hipoteticamente, observar o perigo, conhecer os riscos, recebendo informações “turísticas” do seu guia/terapeuta. Pode até mesmo se debruçar sobre o abismo, sentindo a angústia da queda sem realmente cair, pois o “guia” poderá ajuda-lo a se “segurar”.

Enquanto passeia, pode parar vez em quando para refletir melhor, avaliar a firmeza da passarela, esperar um dia mais claro para olhar o fundo do abismo, e, principalmente, olhar em outra direção, para além da beirada. Numa destas “olhadelas”, poderá encontrar lugares mais interesses que o abismo-droga, espaços mais abertos, mais iluminados, por onde possam, ele e o seu guia, seguir ou subir, se afastando cada vez mais da náusea da queda que a situação de “viver na beirada” pode lhe causar.

O apoio pode também se dar de modo a erigir uma barreira protetora em torno do abismo. O agente de saúde, agindo de maneira semelhante à muitas famílias, pode construir um “muro de concreto” bem forte e bem alto, separando os “normais” dos “terroristas”, de modo a impedir que o usuário o escale, rompa a barreira ou sequer vislumbre o abismo. Tentando assegurar ainda mais esta intervenção proibitiva pode cobrir o muro de cartazes e avisos, onde o mandamento supremo do “não passarás” terá lugar de destaque.

Neste viés, o usuário é colocado na posição de um perigoso invasor do MSTP (Movimento dos Sem Terra Psíquica), de índole voraz e atitude agressiva com a foice e a enxada na mão, pronto para invadir o “latifúndio improdutivo” do abismo-droga, este lugar do mundo da imagem-nação, onde se crê que “plantando tudo dá”. Obviamente, uma vez tolhido na sua “ocupação”, o candidato à revolucionário poderá ver outros “abismos” logo ali na esquina, no próximo bar.

No outro extremo, o “guia” pode valorizar os “esportes radicais”, funcionar como uma plataforma de lançamento e entender que o seu “cliente-atleta” pode e deve se lançar no abismo, independente do risco de uma fratura cervical que uma queda no escuro e no desconhecido possa ocasionar. É a terapia do “body-jump”, que estimula a vitória sobre os medos através do empenho total no seu enfrentamento no ato, se jogando da ponte, da murada, da passarela, e de corpo inteiro. Nem pense, se lance (no lance). Nem cogite, faça o que “der na telha”, muito embora a “telha” fique, em geral, nos lugares mais altos.

Esta abordagem, paradoxalmente, se aproxima do modelo chamado de Intervenção. Preconizado por Johnson em 1980, o mesmo procura na verdade dar um ultimato quanto ao uso abusivo de drogas, algo do tipo “ou vai ou racha”. Neste caso o “ultimato” é a injunção para que o usuário se “lance”, precipitando (sem trocadilhos) uma tomada de decisão, para a qual talvez lhe falte habilidade e condição.

Evidentemente que o agente de saúde “redutor de danos” não deve, em princípio, agir como que o seu cliente fosse um turista (acidental?), um “sem-terra” psíquico ou um (para)atleta olímpico que deve empurrar para o limite do “doping”. Sua função pode ser estimular comportamentos que diminuam os riscos envolvidos no consumo de drogas, alertando para o risco de um “acidente” no uso, a chamada overdose, ou no trânsito, quando na condução de veículos sob efeitos de drogas psicoativas, em situações de violência ou em práticas sexuais sem proteção. Funciona mais como um “instrutor” de pára-quedismo, que instrumentaliza o “saltador” para que execute a “queda” com segurança, no preparo da mochila, no aprendizado da dobra do pára-quedas, no flexionar dos joelhos na hora de toca o chão, e no monitoramento do relógio e do altímetro para saber se dá tempo de “deixar-se cair” mais um pouco ou já está na hora de evitar o choque com a mãe terra puxando o cordão e reduzindo o “dano”.

Conhecemos, ademais, outra perspectiva de Redução de Danos, expressa em documento técnico do Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação Humana (CECRH), produzido em 2001, que descrevia o funcionamento, a missão, o público alvo, os serviços e a visão do Centro. Mais abrangente que a anterior, a mesma procurava atingir, entre os possíveis resultados esperados na avaliação do tratamento o retorno à escola, à atividade laborativa, a melhoria dos vínculos familiares e sociais (amizades, participação criativa, exercício da cidadania), dos cuidados pessoais, e, por fim, dos comportamentos não destrutivos, que é, curiosamente, o aspecto mais destacado na perspectiva do projeto Mais Vida da Prefeitura Municipal do Recife.

Estes planejadores que chegam parecem achar que estão lidando com a imagem de Ícaro, o jovem que utilizou as asas coladas com cera que lhe dera seu pai para fugir do labirinto da Ilha de Creta. Querem aconselhar o jovem contemporâneo usuário de “asas” a não subir muito alto no vôo, na pretensão de atingir o sol. Mas, lembremos, o jovem Ícaro tinha pai, e um pai produtivo, criativo, que lhe ofertou uma dádiva, uma herança, que ele utilizou mal e terminou por cair no mar. O que estão oferecendo aos jovens, que desejam uma saída para o labirinto em que estão prisioneiros, estes cuidadores que se apresentam no lugar do “pai”? Onde está o pára-quedas que precisa ser ajustado?

Quando pensamos na queda de Ícaro, voltamos à pensar no abismo, e uma imagem que pode nos surgir é a de Prometeu Acorrentado no rochedo do Cáucaso, eternamente expectante, vivendo o suplício do devoramento de seu fígado por um abutre, na iminência de ser precipitado pelos raios de Zeus, pai punitivo todo poderoso, nos abismos negros do Tártaro. Sua culpa? Procurar dotar o homem de razão, de inteligência, de ciência e de arte, fazendo-o abandonar o estado de animalidade, da pura necessidade, e participar da construção do mundo.

Embora a coordenação de saúde do município, e a equipe de planejamento do Distrito Sanitário IV, tenham sinalizado para uma construção coletiva do modelo de atenção integral à saúde do usuário de substâncias psicoativas, junto com a equipe que efetivamente trabalha na unidade, o que de fato se viu no decorrer do processo foi a imposição do Programa Mais Vida, com o qual a equipe foi “convidada” a se afinar. Contudo, não é muito eficaz – no mínimo é deselegante – se convidar profissionais de reconhecida maestria no saber e no fazer em determinada área do conhecimento para a construção de um projeto, e atalhar o debate com a apresentação uma cartilha previamente confeccionada, onde a unidade já se encontra inserida no modelo de atenção pretendido.

Também não se impõe “goela abaixo”, no dizer de uma representante do Serviço Social, um modelo de atendimento ante o qual a maioria de uma equipe com quase vinte anos de trabalho não se identifica, e do qual discorda em “detalhes” nem um pouco pequenos. Dentre os quais, podemos destacar o público alvo a ser atendido no Centro.

Na perspectiva da equipe, respaldada em levantamento estatístico atualizado, o público em atendimento é majoritariamente (cerca de 82%) composto por adultos (indivíduos acima de 18 anos), provenientes de diversos municípios da Região Metropolitana do Recife, e, em menor número, do interior do Estado de Pernambuco e de outros Estados da Região Nordeste. Todavia, na visão da coordenação da prefeitura, o atendimento deve ser adscrito à população de adolescentes (indivíduos com até 18 anos) do Distrito Sanitário IV. Uma solução parcial foi encontrada, ao se pactuar a ampliação da idade dos candidatos ao atendimento para até 24 anos, e a continuidade do trabalho com os clientes que já foram recebidos em atendimento. Mas esta “solução” não resolve a questão da definição mesma do público, desconsiderando a posição inequívoca que o CECRH conquistou ao longo de sua história, e da falta de uma escuta adequada às demandas do grupo que atua na unidade neste momento. Mas... tudo em volta do buraco é beira.

Estamos em ano eleitoral, interesses maiores estão em pauta. A gestão plena deve ser implantada, ainda que não seja um gesto pleno. O “pacto” em torno da cartilha e seus princípios tem de ser assinado, de preferência com sangue, suor e lágrimas, para atender ao narcisismo dos megalômanos, que se assemelham a Zeus, e dos mitômanos, que nada sabem dos mitos, apenas de suas “estórias”.

Fulminados, talvez deixando que o medo de perder gere a queda, só nos resta recordar o brilho da voz emocionada da psicóloga que, entusiasta do seu trabalho e quase sufocada pela dúvida, bradava: “Ali está o “buraco”, ali no teu discurso. Na tua fala tem um vazio”. Estarrecida pelo poder, fazendo valer o seu direito ao “jus experniandi”, a incauta ainda teve de ouvir da autoridade constituída: “Não... de modo algum! Você é que não entendeu nada, teu sentimento é desequilibrado, fora de hora e lugar, teu argumento não existe, está totalmente errado”.

E o buraco... é mais embaixo.

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. Teses sobre filosofia da história. In:Walter Benjamin , (F.R. Kothe, org.), São Paulo, Ática, 1985, pp. 153-164.

CALLIGARIS, Contardo.Introdução a uma clínica diferencial das psicoses., Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.

MORIHISA, R. S. & SCIVOLETTO, S. “Conceitos básicos no tratamento de adolescentes usuários de drogas”. Em:Aspectos básicos do tratamento das dependências químicas.Brasília, SENAD, 2002, pp. 57-62.

MARTINS, Isabel. “As drogas na atualidade”. Em:Formação de multiplicadores de informações preventivas sobre drogas. UFSC/SENAD, 2002, pp. 11-24.

PASSARELLI, C.; DONEDA, D.; GANDOLFI, D.; DA ROS, V. “Drogas e Aids – reduzindo os danos à saúde”. Em:Aspectos básicos do tratamento das dependências químicas. Brasília, SENAD, 2002, pp. 151-162.

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Jurídico, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar