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Mito e Literatura:
temática e contexto em narrativas de massa*
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Gilberto Lucio da Silva**

No atual quadro do desenvolvimento científico, é cada vez mais comum se falar em “interdisciplinariedade”, conceito que traduz um modo novo de lidar com os objetos de estudo, com os planos teórico e metodológico da pesquisa, e, especialmente, com o papel do cientista diante do universo que busca compreender e/ou explicar.

No âmbito dos estudos literários não poderia ser diferente. O estudo das relações entre a Literatura e outros campos de investigação, buscando, na medida do possível, propor, discutir ou criticar modos de colaboração entre a literatura e outras áreas de estudo, parece dar a tônica dos trabalhos atualmente.

Tendo como colaboradores áreas do conhecimento que vão da Psicanálise a Arte, da Sociologia a Filosofia, os estudos literários fazem um percurso que recoloca a questão epistemológica do próprio estatuto da ciência da literatura. Onde buscar respostas? Texto ou contexto, texto e contexto, são dilemas que permeiam o fazer literário desde o final do século XX.

Neste trabalho tentamos dar mais um passo na aproximação entre a Literatura a Antropologia. Isto pode se tornar possível, na medida em que o texto, numa determinada perspectiva, é visto como elemento de ligação em um ritual que une emissor e receptor. Este tipo de abordagem é extremamente caro ao olhar antropológico acerca da comunidade dos homens, pois que o rito é elemento estruturante e fundador da própria noção de sociabilidade.

E se o rito seria, senão a chave, um dos elementos críticos da vida social, e falar em vida social é falar em ritualização, o contato, via linguagem, obtido entre leitor e autor, se constitui como pedra de toque para um melhor entendimento do viver humano na sociedade moderna.

Sociedade que talvez não leia tudo que deveria, ou exatamente aquilo que “deveria” ler, mas que, sem sombra de dúvida, consome mais literatura, no sentido amplo do termo, que qualquer uma de suas predecessoras. E, sobretudo, que desenvolveu formas específicas de se aproximar e apropriar do texto.

Pois o texto moderno se pergunta sobre si mesmo e, nesse questionamento, expõe e desnuda a forma com que fez a própria pergunta. Ele se constrói contemplando ativamente sua construção, algo que é característico de toda a episteme científica de última geração, este olhar crítico sobre as próprias perguntas que são feitas, surge de forma cabal no âmbito da arte moderna em todas as suas modalidades.

A todo momento o receptor há de redimensionar sua posição, quando da leitura dos textos cada vez menos experimentais, pois já se tornam o padrão a ser seguido, em função da meta-teoria que lhe propõe a leitura de um determinado texto. O rito da leitura torna-se cada vez mais acessível apenas aos iniciados em um conhecimento quase esotérico. E acima de tudo, o texto torna-se sagrado, existindo o texto compatível com a doutrina do grupo social que o aceita enquanto adequado ao seu culto.

Processo que, aliás, não é novo. Cada sociedade elege seus ritos e, juntamente com eles, seus mitos. Tanto que a mitificação de conteúdos, de gêneros, de obras e autores, é prática consagrada no decorrer da história. Temos exemplos históricos de textos que, transformando-se em obras representativas de sua época, são cultuados até os dias de hoje, pelas suas qualidades literárias. Mas, não será a hora de perguntar, como o biólogo a se questionar sobre o que está “realmente” vendo no microscópio eletrônico, de onde vêm as nossas certezas com respeito a qualificação destas obras?

Nossa abordagem do assunto tem um caráter propositadamente radical e polêmico. Radical, no sentido de buscar ir as raízes da questão, a episteme de nossas posições científicas, e polêmico, enquanto busca trazer para o nível do "dilema" aquilo que se encontrava estagnado num nível não problemático.

Compreendemos que o estudo de textos literários contemporâneos pode demostrar que os mesmos guardam estreita relação com os universos de um discurso elitizado (textos ditos de fruição, onde impera o significante, a leitura tornar-se difícil, e há o afastamento dos padrões culturais), e de um discurso "profano" que traz elementos de um discurso cultuado (textos de prazer, onde importa o significado, a economia de leitura fácil, e a ênfase nos padrões culturais estabelecidos).

Esta aproximação entre os universos do "sagrado" e do "profano", num texto ligado a literatura de massa, parece-nos satisfazer, por seu turno, critérios intra e extra-literários, que podem, ambos, ser remetidos a dimensão simbólica da arte na vida humana e ao estatuto ideológico da narrativa em nosso tempo.

Em outras palavras, trataremos do mito da literatura e do texto que narra mitos, percebendo-os como verso e reverso do mesmo fenômeno: o texto mitificado cria seus próprios padrões de produção e consumo, cria realidades socioculturais, ressoa em esferas de significado intra e pluri-societais, torna-se um sistema semiológico segundo, implicando numa forma de pensar o existente.

O mito no texto: objeto de ciência e de delírio.

Mitos são, geralmente, histórias de deuses. Quando transmitidas em uma determinada ordem, estas formam o sistema de uma mitologia como, por exemplo, a greco-romana.

Segundo RÖSSNER (1989), os mitos nessa forma de histórias, de tema de poesia, constituem a imprescindível base de nossa arte e nossa literatura ocidental. Para este autor, sobretudo a literatura contribuiu, no transcurso de suas variações históricas, com a criação de novos mitos que passaram a compor o repertório iniciado com os mitos de origem greco-romana e cristã.

Numerosos mitos, especificamente relacionados a figuras e motivos favoritos de determinada época, como por exemplo, no fim do século XIX, a morte por amor, trazem em comum o fascínio sobre o público leitor. Tal fato levou MARTINON (1977: 123) a afirmar que “nossa percepção ou melhor a Koiné que se pode ter do mito é portanto um tipo de discurso que integra o mito na tradição literária”.

O mesmo autor conclui: “Por esta razão as questões primeiras que se deve levantar a respeito do mito são, ao mesmo tempo, a da posição do etnólogo diante dos mitos e de seus modos de expressão e de comunicação nas sociedades que não mitificaram o mito, e as dos mitólogos, do homem de ciência que interroga os mitos que nossa própria sociedade reinterpreta no quadro institucional legitimado socialmente por toda uma série de mecanismos que especifica ao englobá-los sob o termo ‘literatura’”.

Mas, se como os recorda SODRÉ (1988), o mito é ao mesmo explicação de um acontecimento e sua revelação, tornar-se mais pertinente a questão crucial de MARTINON: “como o mito na literatura, torna-se, além do que exprime, o mito de uma sociedade”.

Se a partir da Renascença e, sobretudo, a partir do século XVII, os textos mais reinterpretados pelos escritores foram os mitos greco-romanos, estes passaram. a fazer parte da definição mesma do que seja literatura. O mito, ou melhor, as temáticas míticas, tornaram-se um corpus que faz parte integrante da literatura, um código compreensível para aqueles que detêm culturalmente as chaves da decifração. E cabe-lhes não a decifração do mito em si, mas das múltiplas variações e interpretações dos temas. Isto posto que o mito é polissêmico.

Esta sua variabilidade de interpretações de época para época, permite sua tradutibilidade em contextos culturais diversos daquele que lhe deram origem, e o faz veículo de mensagens atemporais. O mito em si mesmo não é literatura, mas a reinterpretação dos mitos se torna literária. Daí podermos afirmar que o mito é o discurso privilegiado entre todos pelo qual os remanejamentos sucessivos podem se elaborar em torno de um centro reduzido a um simples lineamento temático ou então a visão de uma obra.

O escritor nada mais faz que transcrever ou retranscrever as temáticas diretoras que constituem o código prioritário de um grupo social. E é esse grupo social que se colocará como mito constitutivo da diferença entre o que é definido como literário e o que deve ser rejeitado na República das Letras.

Pois para que uma obra seja considerada “literária”, no sentido de ser “culta” ou de “grande alcance simbólico”, esta precisa ser reconhecida como tal pelo grupo social que se apropriou da definição consagradora.

Esse processo implicará no surgimento de uma “literatura não culta”, que não seguirá os padrões adequados para o ingresso no panteão dos ilustres representantes do fazer literário.

Tal literatura, por vezes chamada “literatura de massa”, narrativa de massa, folhetim, ou best-seller, costuma, na verdade, seguir padrões de reconhecimento e produção de texto que são diversos da literatura consagrada pelas instituições.

Neste âmbito, da literatura de massa, a palavra entretenimento se revela capital, pois define, segundo SODRÉ (idem: 10), “o público típico do roman-feuilleton, produzido em massa a partir de 1830 na França”. Tratava-se de contar histórias de modo a responder às necessidades do público urbano de amainar as agruras do dia-a-dia e projetar-se como herói de aventuras insólitas.

Seria oportuno lembrar que os primeiros trabalhos de campo na pesquisa antropológica surgem, no século XIX, e se caracterizavam, sobretudo, pelo viés etnocêntrico do exotismo. Pesquisadores ditos “de gabinete” , como Maine (“Ancient Law”, 1861), Banchofen (“Das Mutterrecht”, 1864) , Fustel de Coulanges (“La Cité Antique” 1865), MacLennan (“O Casamento Primitivo” 1871), Tylor (“A Cultura Primitiva”, 1877), Morgan (“A Sociedade Antiga”, 1890), Frazer (primeiros volumes do “Ramo de Ouro”), entre outros, pretendiam, no dizer de LAPLANTINE (1988), o estabelecimento de um verdadeiro corpus etnográfíco da humanidade.

Para tais autores, pertencentes ao período evolucionista da Antropologia, o postulado teórico básico era a existência de uma espécie humana idêntica, mas desenvolvida em ritmos desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, a fim de alcançar o nível final: a “civilização”.

Ora, o pensamento dos primeiros leitores da denominada “literatura de massa”, não se diferenciava muito desta base teórica evolucionista. E, dotados de interesse semelhante ao dos mais imparciais representantes do meio científico, buscavam com avidez o conhecimento. Movidos, em princípio, por sua curiosidade, pouco se atinham as diferenças histórico-geográficas dos relatos coletados e agrupados pelos etnólogos de gabinete, que jamais foram aos locais de que falavam. O que interessava-lhes era o geral, o universal, o mítico.

Mítico, pois que o evolucionismo apontava para a descoberta das origens da sociedade moderna, os primórdios de suas instituições (família, religião, direito), prometendo a tudo responder e elucidar. De um lado, justificava-se o colonialismo, de outro, tratava-se de reduzir as tensões intra-sociais da modernidade, oferecendo um passado grandioso e progressista.

Passo a passo com a evolução dos conhecimentos e novidades da ciência, a literatura de massa, colocando de lado a reflexão sobre a técnica romanesca, visa a maximização da importância dos conteúdos fabulativos. Enfatizava-se a intriga, com sua estrutura clássica de princípio-tensão, clímax, desfecho e catarse, elementos destinados mobilizar a consciência do leitor, exasperando a sua sensibilidade.

A informação passa a valer mais que a dúvida, e o texto refletirá isso. No ápice da racionalidade, a intuição preenche lacunas onde faltam documentos ao etnó1ogo, e conhecimento das Letras ao grande público.

Além de proporcionar a exploração sistemática da curiosidade do público, pelo conteúdo informativo presente na obra, os textos mantém uma estruturação característica pela presença de personagens fortemente caracterizados (o herói), e pela abundância de diálogos, os quais permitiriam uma adesão mais intensa do leitor à trama.

Acima de tudo, as imagens suscitadas pelo emprego do mito, serão o caminho perfeito para a captação do público sedento de novidades e de sentido para as agruras do cotidiano. Neste momento o mito deixa de ser apenas histórias acerca dos deuses, para se tornar uma forma de pensar e de consciência.

A partir destes fenômenos, com efeito, a literatura, que se serviu abundantemente de materiais míticos, integrando-os aos diferentes corpus literários, torna-se o mito valorizado culturalmente em nossa sociedade. Já não se questiona a integração do mito, mas se observa a literatura, enquanto fato social, que torna-se sagrada ou profana, dependendo do corpus em apreço.

Pelos próprios elementos míticos contidos no discurso literário, de um tipo ou de outro, a natureza histórica da literatura enquanto fato social é esvaziada. Passa a vigorar uma essencialização da mesma, que passa a ser vista como mito cultural de um grupo social determinado.

Certos tipos de mensagem, em consonância com a época em que são expostas, passam a ter status de autoridade cultural e um valor simbólico de prestígio. As próprias críticas dirigidas a tais mensagens devem ser reconhecidas como legitimas. O mito da literatura passa a ser a única simbólica autônoma de decifração do universo.

O tempo mítico e a narrativa sincrônica

As literaturas moderna e pós-moderna parecem ter como característica essencial a apresentação da vida de homens e mulheres comuns, que buscam construir um sentido para suas vidas e um lugar em um meio social extremamente mutável.

Tendo início com a expansão e democratização da experiência literária que ganhou força a partir do século XVI, com os progressos da alfabetização por parte do maior número de pessoas, a circulação mais densa da palavra escrita por meio de manuscritos ou impressos, e, principalmente, com a difusão da leitura silenciosa, que cria uma relação mais íntima do leitor com o texto, as obras literárias de ficção, do grande romance realista ao folhetim, indicam o desenvolvimento e o apogeu, ainda no século XIX, de uma visão desacralizada do mundo.

De certo modo, a literatura passou a cumprir um papel cultural, antes restrito ao poder simbólico das religiões, na constituição da subjetividade. Se até o término da Idade Média a produção de sentido para a existência humana e sua relação com o universo era realizada predominantemente pelas formações simbólicas da religião, por suas práticas, rituais ou não, após o Renascimento a relação do sujeito com a verdade de sua vida se alterou drasticamente.

A crise nas relações dos indivíduos com a tradição, além de ser paralela a experiência de apropriação solitária e íntima dos textos, pode ser igualmente relacionada no desenvolvimento do Estado moderno e de uma religião mais individual após a Reforma Protestante, que atribuíam maior importância a experiência pessoal de leitura que a revelação ou interpretação oriunda do clero.

A apropriação particular e solitária do texto substitui a visão unificada do mundo, própria das leituras coletivas ou da leitura em voz alta para todo um grupo. Indivíduos únicos vivendo suas próprias experiências em situações singulares, permitem entrever uma história sem enteléquia, isto é, sem uma finalidade imanente, que a defina e a dirija para uma meta onde se realizará plenamente.

Em termos literários, esta história sem destino, este tempo sem história, é característica de uma certa literatura contemporânea, onde os personagens, além de serem pessoas comuns, são pessoas que simplesmente não se ajustam. Esta literatura parece autorizar a diferença, afirmando a prerrogativa da consciência individual sobre a consciência tutelada, o pensar por si mesmo.

Daí a profusão de narrativas, de personagens, de momentos descritos, onde cada leitor pode se identificar com uma parcela da narrativa. Narrativa que jamais é épica, histórica, mas sim sincrônica, onde várias e diferentes experiências são expostas ao mesmo tempo, e todas são igualmente importantes. Afinal, em um tempo mítico, sem história, todas as “versões” são importantes.

Analisando a evolução dos gêneros literários, CONNOR (1993: 98) assinala que “uma das mais notáveis preocupações da estética modernista e pós-modernista é a questão do tempo”. O desafio modernista ao tempo cronológico burguês, para este autor, se traduziu no estreitamento do tempo em espaço, consolidando uma perspectiva que visava realizar a estase, o congelamento do tempo, que permitiria a imutabilidade e permanência da obra de arte.

Com o advento da pós-modernidade na literatura, a obra atemporal, e a crítica que a colocava acima de quaisquer imprecisões e parcialidades criadas pelo processo da leitura, é colocada em questão. Se propõe a particularidade das circunstâncias históricas como padrão para a percepção do texto. A obra depende do contexto, do ser-no-mundo hedeggeriano, que vive “após a morte de Deus como Ômega” (SPANOS, cit. CONNOR, idem: 100).

Todavia, conforme observa CHARTIER (1991), sempre houve a convivência de práticas tradicionais de leitura, associadas a estas práticas mais modernas. A leitura em voz alta nunca foi de todo abandonada, e a esfera do sagrado continua sendo uma das modalidades culturais mais utilizadas na re-ligação do homem com o universo.

Afinal, ninguém pensa sozinho. Mesmo na contemplação solitária e silenciosa de um texto, o sujeito pensa sempre com um outro (narrador, personagem) e para um outro (em princípio, o próprio autor). Sua opinião e suas idéias podem não se encontrar aparentemente submetidas a um princípio de autoridade religiosa ou política, mas o indivíduo sempre se reconhece e se diferencia diante de um interlocutor.

Texto mítico: lugar de autoridade e lugar de apoio.

Abordar um corpus que traz a marca de uma temática recorrente, pode nos levar ao extremo de separar o fundo da forma, o significado do significante. Cairíamos no erro de prestigiar os “temas” as expensas dos “procedimentos” (BRUNEL, 1983).

Todavia, da mesma forma que o mito tornou-se mais que uma coletânea de histórias sobre os deuses, passando a consolidar uma forma de pensar e de consciência, o estudo de temas, pode se ater menos aos conteúdos e mais aos processos do fazer literário. Posto que, se os conteúdos míticos variam, e os mitos utilizados na modernidade são outros, os procedimentos de sua utilização são essencialmente os mesmos. Estes atuam, efetivamente, de modo a transformar o texto em mito, distante de sua produção, e a leitura de mitos um ritual, reconhecida dentro de padrões grupais cada vez mais específicos.

Não que a obra literária exprima a ideologia pura. Como diria BAKHTIN (cit. BRUNEL, idem: 109), esta é mais dialógica que monológica. Tanto mais quando se trata do romance moderno. Se a idéia persiste, ela também, se transmuda a cada novo texto produzido sob sua égide.

Temas novos (novos mitos) são acrescidos aos já envelhecidos pelo uso (e abuso) dos séculos. Numa época, ou num autor específico (uma temática pessoal), apresentam-se temas que mesclam temáticas eternas. Tal processo segue, curiosamente, os mitos na sua evolução sociocultural.

E se o mito pode ser definido como “conjunto narrativo consagrado pela tradição e que manifestou, pelo menos na origem, a irrupção do sagrado, ou do sobrenatural, no mundo” (idem: 115), ele pode, em algum momento de sua história, tomar uma significação abstrata, tornando-se prisioneiro de um tema que tende a captá-lo irrevogavelmente. Dessacralizado, o mito é conforme pensa LÉVI-STRAUSS (1989), uma massa de significados virtuais, uma fonte de variantes ou de prolongações narrativas.

Talvez seja possível captar esta fonte de variantes em alguns textos, mais ligados a uma simbólica mítica que agrupa elementos de diversas origens culturais num mesmo corpus. Percebe-la enquanto processo se fazendo num determinado número de obras pertinentes ao mesmo universo de discurso, pode se impor como uma forma de comprovar algumas de nossas apreciações.

Poderíamos tomar para análise, por exemplo, os livros do autor Paulo Coelho, entre eles, o “Diário de Um Mago”, “Brida” , “As Valquirias” e “O Alquimista”, todos consagrados em termos de vendagem. Ao fazê-lo, poderíamos talvez demonstrar o princípio norteador desta literatura best-seller atual, que integra elementos culturais de modo a tornar sagrado o discurso profano, pela inclusão de um processo característico da literatura erudita.

Este processo se refere a utilização dos mitos, oriundos do contato ocidente-oriente, conforme a pesquisa antropológica legou ao homem moderno etnocêntrico. São utilizados de modo a consolidar uma nova modalidade de romance aos já consagrados pelo consumo (cf. SODRÉ, op. cit.), visando um público específico (diríamos, especializado) que busca determinado tipo de informação.

Ao nosso ver, duas conseqüências advém desta utilização. Inicialmente, a mitificação do texto, que passa a funcionar como ritual iniciático para os adeptos da “nova era”. Os consumidores deste tipo de literatura, geralmente oriundos da classe média, apreciam o texto enquanto possibilitador de prazer, com economia de leitura fácil, e ênfase no significado. O texto funciona num contexto propiciador que re-mitifica o real, o cotidiano massificador da metrópole.

Em segundo lugar, há a universalização destes conteúdos, numa leitura etnocêntrica do mundo e da sociedade (melhor dizer, sociedades). Este conteúdo informativo é co-partícipe na sustentação deste tipo de discurso, é um dos quatro elementos que mantém a estrutura de reconhecimento da narrativa de massa. Os demais, a saber, o próprio aspecto mítico, onde são veiculados arquétipos de personagens (tipos modelares), o pedagogismo do texto, onde persiste a intenção de ensinar algo via leitura, e, finalmente, a utilização da retórica consagrada, pouco trabalhando a técnica romanesca.

Antes que mitos orientais, temos presente certos orientalismos, ou seja, visões deturpadas do que seja uma totalidade cultural, tomando partes como o todo, pedaços descontextualizados de um meio cultural específico. E, conforme assinalou DURAND (1984) , não se pode confundir a dimensão mítica com a dimensão utilitária. Para este autor, o mal fundamental da cultura racionalista é haver acreditado na ausência ou simplesmente na minimização das imagens e do mito. No seu entendimento, é justamente a imagem escrita, “literária”, que transformará o imaginário em valor de uso, consolidando a poética moderna.

Esta desvalorização clássica do imaginário, de Aristóteles aos cartesianos, está ligada, para o mesmo autor, a desvalorização da alma ou antes, à sua redução a uma racionalidade permutável que aliena a “unicidade criadora”. As verdadeiras mitologias, ligadas ao sagrado, perdem espaço para as mitologias políticas ou filosóficas, para a idolatria dos cultos de personalidade e para a iconografia publicitária.

Assim sendo, podemos perceber mais que uma “invasão mística” na marcante presença de uma literatura esotérica, ainda que, em conformidade com outras épocas, se proponha favorecer o sentimento de conhecer a esfera do sagrado através da intuição, entrando em comunicação direta com a mesma. O texto, e os seus adeptos, passam a se apoiar mutuamente, não remetendo a outro princípio de autoridade senão o de seus pares.

São estes “perigos” que permitem-nos afirmar a importância de uma abordagem pluri-disciplinar sobre o texto mítico e o mito da literatura. Esta combinação detém o princípio ordenador do ritual num contexto que busca avidamente a re-sacralização do mundo vivido. Autor e leitor transformam-se em pólos de um processo de reconhecimento do texto “sagrado”, de mútuo reconhecimento como membros de um grupo iniciado e vêem no texto o veículo por excelência deste “contrato” simbólico.

De modo semelhante as práticas descritas por LEBRUN (1991), que tiveram lugar na primeira metade do século XVII, na França, a mística sai dos lugares sagrados para o mundo, não mais constituindo um setor à parte, ou um momento privilegiado, devendo fazer parte da vida de todo dia, inclusive, ou principalmente, nas atividades profissionais. Lembremos, a esse propósito, da “apropriação mítica” dos espaços dedicados ao trabalho, em conformidade com os preceitos da filosofia oriental – da qual, a grande profusão de literatura sobre o Feng-Shui parecer ser um indicativo – e da organização do tempo profissional com base em pressupostos místicos, pela consulta, por exemplo, ao horóscopo pessoal.

Mais que tudo, o texto produz universos míticos, nomeando e tornando real o imaginário cambiante das sociedades modernas. Fazendo-o, opera recombinações nos conteúdos originais por ele utilizados e modifica a maneira de pensar o existente.

Longe de um “fechamento” da poética em si mesma, como parte de um protesto radical contra o primado do discurso analítico (cf. CARVALHO, 1996), certas obras da literatura do século XX ganham um tom enigmático, que simula o mistério, a linguagem mágica da primitiva poesia oracular. Não sendo apenas uma expressão individual, sem autoridade pública, estas parecem ganhar, ao contrário, cada vez maior expressão sobre o mundo social.

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*Trabalho apresentado no VII Encontro de Antropólogos Norte-Nordeste (ABANNE) - UFPE, de 28 a 30 de novembro de 2001.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar