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A verdade é sempre a melhor opção?

Gilberto Lucio da Silva **

 

Após o recebimento de algumas questões a respeito do ato de mentir, enviadas pela jornalista Marcela Brum, terminei por desenvolver algumas respostas e percebi que poderia transformá-las em um texto sobre o assunto. Apresento aqui o resultado.

Quando criança, a palavra "mentira" era proibida na vida familiar. Mãe não mente, conta histórias! Dizia minha mãe quando denunciavamos algo que não estava muito de acordo com o prometido. Menino, deixe de contar histórias! Alertavam quando nos surpreendiam no flagrante delito do uso da criatividade.

Apesar de recriminada socialmente, partindo de um ponto de vista ético, a mentira sempre existiu em todos os agrupamentos humanos. É evidente que há um ganho no ato de mentir, tanto maior quanto mais confiável for considerado o autor da mentira. O status social do mentiroso (posição social, nível cultural, econômico, etc) influencia na capacidade avaliativa de quem recebe o discurso do autor da mentira.

A “vítima” do mentiroso pode vir a ser vista como um instrumento usado para atingir um objetivo, que pode ou não coincidir com algo ruim para esta pessoa. A associação a priori da mentira com o mal tem origem nesse “egoísmo” norteador do ato mentiroso.

Entretanto, muitas vezes uma “meia verdade” pode ter um caráter organizador para quem é alvo da mentira. Temos de incluir na avaliação do discurso mentiroso o desejo do autor e o desejo do alvo do discurso mentiroso. Desejo que faz com que muitas vezes a “vítima” queira ouvir um algo a mais no significado das palavras que são proferidas, crendo que o autor pode emitir mais que uma opinião, versão ou posição (uma verdade parcial), sendo, como coloca a moderna linguagem jurídica, um autor do fato. O peso da linguagem e dos jogos intersubjetivos em que fazemos uso desta linguagem determina expectativas e decepções na maior parte das situações em que alguém grita: é mentira!

A mentira saudável

Na atividade comercial, por exemplo, sempre podemos “esperar” que o comerciante tente nos fazer ver a sua mercadoria como a melhor dentre todas as concorrentes. Claro que existem regras, previstas pelo Código do Consumidor, que impedem que a propaganda enganosa se torne o ideal de todo vendedor. Todavia, o “algo a mais” sempre estará presente no discurso comercial, e sempre podemos esperar que o cliente queira receber este “algo a mais”, pois ele visa conseguir desde modo ser o dono de algo especial. A saúde mental da maior parte dos consumidores no mundo ocidental precisa acreditar na possibilidade de vir um dia a receber este “algo a mais”.

Por outro lado, uma criança que esteja hospitalizada em estado terminal, um paciente regredido, que pode vir a se torna gravemente deprimido com a notícia de seu estado de saúde física, não necessita saber necessariamente, do ponto de vista ético, toda a verdade sobre sua situação. Saúde não é apenas a falta de doença, mas um estado de equilíbrio bio-psico-social que pode sim incluir uma “bela mentira” para que o indivíduo tenha tempo para viver o que precisa e o que suporta em cada momento.

A mentira doente

É claro que a mentira pode existir de modo patológico, quando a resposta utilizada em situações diversas na vida do indivíduo seguir um padrão de comportamento profundamente arraigado e permanente, manifestando-se como uma resposta inflexível a uma ampla série de situações pessoais e sociais.

A mentira pode ser parte, por exemplo, de um transtorno de personalidade anti-social, onde se verifica a indiferença pelos sentimentos alheios, com base em uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais. Nestes casos não há, por parte do mentiroso, nenhum sentimento de culpa ou capacidade de aprender com as punições que recebe, buscando o indivíduo sempre culpar aos demais por seus atos.

Quando o mentiroso age de modo recorrente, de modo a trazer prejuízo para si próprio e para os outros, podemos estar diante de um caso de transtorno de hábito ou impulso, com a nítida sensação para o indivíduo de que ele não pode controlar o seu comportamento. Um exemplo é o “jogo patológico”, onde os freqüentes e repetidos episódios de jogo dominam a vida do indivíduo em detrimento de valores e compromissos sociais, ocupacionais, materiais e familiares. O sujeito termina por contrair grandes dívidas e mentir e violar a lei para obter dinheiro ou evitar o pagamento de suas dívidas.

Outro exemplo muito comum, é a cleptomania, ou roubo patológico, onde o impulso para roubar objetos que não tem para aquele indivíduo o benefício do uso pessoal ou um ganho monetário decorrente da obtenção do produto do roubo. O objeto é simplesmente armazenado ou jogado fora em seguida ao furto.

Temos ainda outro exemplo patológico no transtorno factício, quando o indivíduo inventa sintomas repetida e consistentemente, simulando sintomas ou incapacidades tanto físicas quanto psicológicas, e muitas vezes se auto-inflingindo cortes e queimaduras, provocando sangramento ou intoxicação para ser atendido clinicamente.

A crença da própria mentira

Gostaríamos de sublinhar que os casos patológicos citados anteriormente não precisam acreditar nas suas mentiras. Talvez eles sequer ponham em dúvida a veracidade de seus discursos sobre os fatos, pois a simples constatação de que a realidade possa ser diferente do que estão habituados já significa a derrocada de todo um “castelo de cartas”, que constitui uma justificativa para viver um determinado modo de vida onde o mentir compulsivo “dá as cartas”.

Tratando especificamente da capacidade propriamente humana de fantasiar, é certo que, em algum momento da vida, todo mundo já acreditou em Papai Noel, no Bicho Papão e nos contos de fadas, e nem por isso deixou de se tornar um adulto ciente das regras de convívio social, ou seja, da verdade compartilhada. Ao meu ver, toda criança deve poder acreditar na sua capacidade de mentir quando tiver medo das conseqüências da verdade.

Poder acreditar na mentira é algo estruturante para todos os indivíduos, como quando estamos assistindo um filme e acreditamos na veracidade da trama ao ponto de nos emocionarmos com a mesma. Nossas lágrimas, nestes momentos, serão “de mentira”?

Não sendo um caso, como aqueles de que tratamos anteriormente, de comportamento doentio, a mentira faz parte da vida de todos nós. Agora, acreditar nas próprias mentiras pode determinar o aparecimento de muitas frustrações, como por exemplo quando o indivíduo ouve um “eu te amo” e acredita que será para sempre. Será que quando acaba o relacionamento, a declaração deixou de ser verdade, ou como dizia o poeta, “que seja eterno enquanto dure”?

Convivendo com a mentira

Li recentemente um artigo em uma revista nacional que ironizava as “verdades absolutas” de cada período da humanidade. Conclusão: nenhuma verdade é imune ao tempo. Quantas verdades eram tidas como definitivas há 50, 100 anos atrás? Quantas pessoas não pensaram com toda convicção que o mundo iria acabar em 2000? Que o muro de Berlim iria durar para sempre? Que a televisão era uma moda passageira na década de 1950? Que o computador jamais seria acessível em grande escala, na década de 1960? Que os EUA estavam inumes aos ataques de outras nações em seu próprio território?

Isto não impede as pessoas de se aferrarem a estas “certezas” como verdades absolutas, e guiarem suas vidas como se as torres gêmeas do hábito e do desejo fossem estruturas que iriam duram para sempre. Todos nós temos nossas certezas, e a maior parte delas são de domínio público, na forma dos hábitos sociais.

Tornar a mentira um hábito pode ser a base de muitos dos rituais e mitos presentes em nossa sociedade, como quando nos parabenizamos todos uns aos outros ao final de cada dia 31 de dezembro, na esperança de que o ano que vem será melhor. É um desejo sim, mas é também um auto-engano consentido, na medida em que o primeiro dia de um ano em nada difere do último dia de outro ano.

O mentiroso contumaz, o mitômano, por outro lado, pode sempre dizer o que quer, mas em algum momento ele terá de ouvir o que não quer, ou pior, poderá não ser ouvido. Recordo da clássica história da pastora de ovelhas que, por pura diversão, gostava de gritar “É o lobo!”, provocando o tumulto em todos os demais pastores. Um dia, o lobo de fato apareceu, e fez um saboroso banquete. Ninguém acreditava mais no alarme daquela pastora.

A mentira enquanto um "mal necessário"

Poder acreditar na mentira e na possibilidade de mentir é algo indispensável para a capacidade humana de estar só, de possuir um espaço de autonomia, onde o outro não pode entrar sem ser convidado. Imaginem como deve ser terrível pensar na possibilidade de que todos tenham acesso ao nosso pensamento, como ocorre em alguns transtornos psicóticos.

A crença na mentira é a condição prévia para que possamos ser verdadeiros no diálogo com o outro. Se tudo fosse verdade, e ninguém precisasse falar para descobrir o que é falso e verdadeiro em cada situação, todos ficariam calados, o silêncio dominaria a todos nós. A assimetria entre o que se sabe e guarda para si e aquilo que conta para os outros é necessária ao convívio social. Se esta diferença vai funcionar como uma estratégia egoísta para melhorar o próprio status social ou servir ao interesse do grupo é uma questão a ser verificada em cada situação.

Temos um último exemplo, em que fica claro o papel organizador da mentira, no “boato”. Também conhecido como a “voz das ruas”, o boato pode ser entendido como um processo pelo qual os indivíduos tentam definir uma situação ambígua, em que faltam as fontes oficiais. Ele atua tentando revelar o não sabido, o não-dito, as preocupações da sociedade no momento em que circulam. Ele cria histórias onde não existe ainda a versão oficial. E conforme alguém já disse: o ser humano é movido a histórias. Ao que me consta, desde criancinha.

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar