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A lei e a droga:
o poder e sua articulação com a morte e o amor*
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Gilberto Lucio da Silva**

 

Em trabalho intitulado “Justiça e Terapêutica: uma aproximação possível”, apresentado no III Congresso Norte e Nordeste, tratamos do tema da lei e sua relação com a tendência humana universal ao uso de substâncias entorpecentes, ao analisar a (o)posição do Sistema Conselhos de Psicologia ao acompanhamento psicossocial dos usuários de drogas que respondem a processo jurídico. Naquele momento, procuramos demonstrar que o Programa de Penas Alternativas pode se constituir em um momento justo e útil para os indivíduos em conflito com a Lei, uma vez que os estudos demonstram que incentivar, apoiar e orientar são pré-requisitos e condições propiciadoras dos chamados fatores de proteção, seja na família, na escola, ou no trabalho.

Gostaríamos aqui de tratar, ainda que resumidamente, como um convite ao diálogo, das relações estruturantes entre poder, morte e amor, na própria formação do vínculo social, de acordo com a perspectiva sociológica de ENRIQUEZ (1990).

Poder é discurso, palavra inaugural, criador de um mundo. O objetivo do mundo criado pelo poder é a uniformidade, a produção, o tempo medido do universo do trabalho, a alienação e exploração, ou, em termos freudianos, a compulsão à repetição, primeiro aspecto da pulsão de morte. Desde o início articulado com a morte, e ancorado no Estado, o poder é exercido de modos diversos, e se reveste de formas específicas para adquirir sua potência mortífera e produtora de leis.

Pode assumir, por exemplo, um modelo que chamaríamos “paranóico”, quando se toma como o portador da verdadeira lei que lhe foi transmitida por uma instância mítica. O discurso do poder paranóico é exercido de modo dogmático, pois entende ser o revelador da verdade oculta das coisas e dos seres, verdade que argumenta de modo obsessivo, fechado em si mesmo, imutável, profético e que é o anúncio de uma sociedade futura idealizada. Nenhuma palavra dissonante pode ser proferida. Sua estratégia é a do fascínio. O aparelho repressivo deste poder só entra em jogo quando esta palavra falha, pois o discurso do pleno, da harmonia e do consenso implica na exclusão dos “impuros”. Sua principal característica é a sua incapacidade de discernir entre a lei encarnada e a lei simbólica, acreditando ser dono de um saber absoluto que a todos penetra e domina.

Na sociedade contemporânea, muitas vezes tida como caótica, continuamente transtornada pela ciência e tecnologia e pelas lutas de classe, onde cada um é envolvido em um turbilhão e se sente vacilar diante da violência e da ausência de valores, o discurso fascinante de líderes paranóicos encontra guarida. O mundo que se desestrutura aceita o discurso da onipotência, pois toda sociedade, em sua vontade de representação unificada, possui também tendências paranóicas e produz discursos desta ordem, onde o Estado é visto como vítima do ataque de “cabeças irresponsáveis”. É o mundo das utopias totalitárias de toda ordem.

Uma segunda modalidade de poder, que podemos chamar de modelo perverso, coloca toda a lei como lei do desejo, situando-a acima de todas as leis humanas que são a própria origem do vínculo social, como a proibição do incesto e a aceitação da filiação paterna. Os governantes deste modelo não são apenas porta-vozes do discurso mítico, como aqueles que vivem o modelo paranóico, mas se colocam no lugar mesmo do Criador. Nesta posição, o poder perverso desafia continuamente a lei, transgredindo as normas que estabeleceu anteriormente. Sua forma de ação acalenta a ilusão de ser senhor do sentido, estipulando um discurso da razão, do contrato e do cerimonial, que visa a convencer o outro a se dobrar frente à sua lei. É o discurso que tudo explica, o discurso do saber que aparenta ser melhor que os outros.

É um modelo que prega uma atitude metódica, fria, de lógica inversa, onde o crime existe para criar leis. Leis que são apenas uma multiplicidade de procedimentos, pois este é o mundo da burocracia e da tecnocracia, que busca apenas arranjar/organizar as coisas, e se possível anular a morte, ou pelo menos transforma-la em algo de menor importância. Nenhum interesse verdadeiro pelo outro anima os líderes do modelo perverso, pois o afeto é colocado a serviço do poder e da morte, através da reificação das relações humanas. Mais que tudo, neste modelo cada indivíduo tudo pode, e se for competitivo e brilhante, tudo alcança. É o mundo das sociedades liberais, capitalistas, mas também o mundo do terrorismo.

Em geral, a aplicação da lei diante do uso de drogas costuma assumir inconscientemente uma destas duas modalidades, posto que nem todos os métodos e técnicas podem ser, em todos os casos, manejados pela razão, ainda que os grupos e indivíduos assim o desejem.

Pode funcionar como um superego arcaico paranóico, cuja máxima, “Nem uma palavra!”, nega ao sujeito a possibilidade de produzir uma fala. Ao fazê-lo, não pode contar com a aquiescência consentida, pois é o efeito de uma impossibilidade de dizer “não”. Sua tendência é a exclusão dos “impuros” para longe dos olhos, banidos para a cadeia, o reformatório, o asilo de loucos ou a Sibéria.

Em constraste, seguindo o modelo perverso, pode fingir que o cerimonial, o contrato e um discurso do saber resolveram a questão. O que é dito pelo sujeito é censurado de modo a seguir outra máxima: “Não insista; você disse uma palavra, não dirá duas!”. Faz de conta que nada aconteceu, ou, se aconteceu, não tem a importância que o sujeito quer lhe dar. A audiência, o ritual, os procedimentos são mais importantes que os resultados e as conseqüências.

Em nenhum dos modelos o sujeito é escutado. Não se procura a encarnação de um poder fraterno, baseado no amor – sempre almejado, ainda que ilusório e impossível, onde a lei faça sentido, inserida em um processo de simbolização – sempre individual, ainda que cultural. E não podemos negar, a partir de GREEN (1988), que se narcisismo demais leva a morte, um pouco de narcisismo é necessário para o aparecimento do desejo e à elaboração de fantasias. O sujeito precisa se implicar, se identificar perante este olhar que lhe vem enquanto lei.

Mas como o sujeito pode ir além do silêncio excludente e da censura, lidando com procedimentos no mais das vezes inconscientes que determinam os atos processuais? Como pode ele escapar do fascínio e da burocracia, fazendo, como disse DIDIER-WEILL (1997), algo mais da palavra que o fez um ser falante? Pode ele encontrar a terceira palavra capaz de transmutar sua insistência em perseverança, e responder afinal o que deseja?

Recordamos que é costume afirmar, no meio especializado no tratamento de usuários de drogas psicoativas (DPA), que a droga está indissoluvelmente vinculada ao prazer. Todavia, as coisas não são tão simples assim. O fato é que a droga também está, enquanto objeto de fascínio, igualmente ligada ao que no sujeito diz “sim”, ainda que a vontade se determine para dizer não. Um usuário de “crack” relatou em entrevista como gastou todo o arrecadado do final de semana, trabalhando como guardador de carros, cerca de duzentos reais, nas “pedras”. Ele sempre enfatiza que o seu uso se restringe a um dia na semana, mas é justo neste dia que ele ganha mais, e... perde tudo: a feira, o aluguel e as despesas do filho pequeno. Para ele, o poder paranóico é representado pelo “crack”, que o persegue por toda parte, levando-o inclusive a desejar o internamento (a exclusão) para escapar das juras de morte que recebeu. Apesar dos inegáveis prejuízos e perdas que o abuso da droga lhe causa, este fascínio continua a desejar em seu lugar, retirando seus limites organizadores, enrijecendo suas respostas e possibilidades, paralisando e emudecendo a palavra e a própria vida. Ele não precisa de um censor e perseguidor externo, pois já o traz em seu íntimo.

Como já tivemos oportunidade de colocar em momento anterior, nos grupos que lidam com esse problema a base para a recuperação está na aceitação da adicção como uma doença, sobre a qual o sujeito é impotente. Os programas de ajuda mútua, como é o caso dos Doze Passos, partem desta aceitação de que a pessoa com drogadicção, usando a droga ou não, está na condição de adicto. Assumindo esta condição o sujeito procura criar e manter um sentido para o mundo, através do duplo movimento de desvelar um real inominável, guardado no inconsciente, e velar, através da simbolização, garantindo a pertença ao grupo dos adictos abstinentes ou não. E descobre afinal, que todo desejo têm conseqüências.

No âmbito do judiciário, os problemas são verificados justamente com aqueles indivíduos que apresentam maior comprometimento de sua autonomia diante da substância e do seu grupo de convivência, os “colegas de uso”, e com evidente dificuldade de estabelecer e seguir regras de conduta social boas para si e para os demais. Afinal, os modelos paranóico e perverso podem ser introjetados e vividos por indivíduos concretos, de modo rígido, como resposta a um poder absoluto que os fascina e no qual se espelham, ainda que em contextos sociais em que a morte e o poder não têm relações tão estruturantes.

Dissemos em outra oportunidade, que o “trabalho amoroso” (PAGÉS, 1985) em saúde mental revela que a determinação por si mesmo só pode ser pensada em referência ao que é enfatizado, inscrito e legislado pelo outro. Acrescentaríamos que a autodeterminação do sujeito só pode ser imaginada a partir da aquiescência consentida ao olhar imperativo da justiça e da lei instituída. Desde modo e apenas assim, é permitido o alcance da posição de sujeito “falante”, e não apenas “falado”, ao qual é exigido dizer como deseja seu desejo.

BIBLIOGRAFIA

DIDIER-WEIL, Alain. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.

ENRIQUEZ, Enriquez. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo, Editora Escuta, 1988.

PAGÉS, Max. O Trabalho Amoroso. Lisboa, Portugal, Editora Veja, 1985.

*Uma versão deste trabalho compõe a obra Compromissos e comprometimentos , do Conselho Regional de Psicologia da 2a. Região, como parte dos trabalhos apresentados no II Seminário Psicologia e Direitos Humanos.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Jurídico, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar