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Justiça e Terapêutica: uma aproximação possível.*.

Gilberto Lucio da Silva **

 

Há poucos dias, recebemos o documento elaborado pelo Sistema Conselhos de Psicologia a propósito do projeto de Justiça Terapêutica no Brasil, intitulado “Justiça Terapêutica: tratamento não pode ser punição”. O texto, subscrito por um grupo de instituições que deveriam seguir todos os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional dos Psicólogos, e não apenas aqueles que fossem de encontro ao interesse imediato de suas pretensões, hostilizava ponto por ponto as propostas de acompanhamento ora desenvolvidas por equipe multiprofissional atuando junto ao Poder Judiciário, nos casos de abuso de substâncias ilícitas.

Não nos sentindo representados em tais declarações, proferidas por um grupo de entidades que deveriam, em princípio, expressar a opinião da maioria dos profissionais a elas vinculados, e não o ideário de uns poucos, que terminam por publica-lo com a verba recolhida de todos através de suas contribuições anuais, resolvemos apresentar ao menos uma segunda opinião sobre os fatos ali abordados.

Em princípio, nota-se ter o documento claro posicionamento ideológico, de vez que não respalda as sumárias proposições ali contidas em quaisquer estudos comprovadamente científicos. Falar em nome da “tendência atual” e “nas práticas de saúde no âmbito da dependência química” é muito fácil, qualquer leitor de revistas mensais de banalização do conhecimento pode fazê-lo. Mas, que estudos são estes que, ao que parece, dizem simplesmente que o usuário deve se drogar, destruir sua vida e de todos os que o cercam, até que ele decida parar por conta própria com o abuso da droga?

De modo completamente diverso, os estudos demonstram que incentivar, apoiar e orientar são pré-requisitos e condições propiciadoras dos chamados fatores de proteção, seja na família, na escola, ou no trabalho. Além disso, é fato fartamente documentado, em qualquer Centro ou Instituto que recebe usuários de drogas, que quase nunca parte do próprio indivíduo a demanda pelo atendimento especializado. A comunidade, a família, os amigos, são responsáveis pelo estímulo inicial nesta busca por um controle sobre os próprios atos.

Neste texto procuramos expor algumas considerações sobre a perspectiva de trabalho no acompanhamento dos consumidores de drogas, que vem sendo pensada e implementada como parte integrante do Programa de Penas Alternativas desenvolvido pelo I Juizado Especial Criminal do Recife. Neste sentido, consideramos aspectos legais contidos na Justiça Criminal e no próprio Código de Ética Profissional dos Psicólogos, e algumas informações científicas colhidas em fóruns e publicações dedicados ao assunto.

Ética e autonomia: alguns limites do individual.

Uma apreciação mais detida do Código de Ética Profissional dos Psicólogos, em sua Exposição de Motivos, deixa claro que “na realidade, ninguém pode viver ao sabor de suas paixões e desejos momentâneos de onipotência” e que “a satisfação das aspirações morais faz parte integrante do conjunto de desejos humanos, pois nenhuma sociedade ou grupo pode viver fora de qualquer regra ou lei”. E conclui: “A vida é uma contínua determinação, uma contínua seleção e criação, não é apenas um deixar-se viver”.

Este Código, como todos os códigos, quando bem utilizado, deve servir ao profissional para permitir um real encontro entre a norma e o homem, heteronomia e autonomia. Entendemos que é isto que significa a proposta de uma terapêutica sob determinação da Justiça, na medida em que existam condições do sujeito em exercer a autonomia da vontade em compasso com a adaptação à vida grupal.

Controle sempre imperfeito, uma vez que a perfeição humana é algo inatingível, mas que faz falta à maioria dos usuários, que procura fora de si, em algo (a droga) ou alguém (grupo de convivência), a coragem para salvaguardar a auto-estima que quase sempre, nos casos de abuso de substância psicoativa, se encontra em baixa. Incapazes eles não são, mas a droga, sem dúvida, os torna menos do que poderiam ser sem ela. Alguém que os respeite e seja respeitado por eles funciona sim, como elemento norteador e facilitador, para viverem a “dor” de crescer, sem apaziguar ansiedades e inseguranças com a “paz” de algumas tragadas.

Os estudos científicos demonstram, por exemplo, que setenta por cento dos usuários de cocaína padece de alguma patologia mental. Luis Caballero Martínez, psiquiatra do Hospital Doce de Octubre, de Madrid, expôs suas conclusões acerca do estado atual deste tipo de adicção, durante um curso da Universidad Internacional Menéndez y Pelayo (UIMP), de Santander. A psicose cocaínica começa a ser cada vez mais freqüente nas consultas de psiquiatria, porque existe una relação muito estreita, segundo o médico e pesquisador, entre a utilização da cocaína e muitas enfermidades psiquiátricas.

É muito fácil falar de fora, julgando a partir de pressuposições (ou prevenções) sobre algo que é novo, mas que é feito com atenção e cuidado por uns poucos. Os mesmos que saltam em brados, afirmando defenderem o cidadão, a liberdade, a Constituição, entre outras belas e grandiosas palavras, se abstém de tomar uma atitude concreta de reflexão sobre os cada vez mais numerosos casos de drogadicção neste país, de participar de atividades concretas de acolhimento, apoio e orientação dos familiares ou usuários, e de avaliar as relações concretas existentes entre a idéia de liberdade a qualquer custo e a escalada do abuso de substâncias lícitas e ilícitas no Brasil.

Gritar: “isto é falta de ética” é muito simples. PRATICAR a Ética – enquanto a preocupação genuína com o seu semelhante, a que o psicanalista Donald Winnicott chamava “capacidade de concernimento” - e mais ainda neste caso, com aqueles que estão do nosso lado, imersos no sofrimento, é coisa bem diversa.

A adicção a drogas, seja para o uso, abuso ou dependência, tende a ser uma doença crônica e o adicto deve ser tratado como um paciente susceptível a tratamento e que, conforme sucede com outras patologias, o êxito ou fracasso vai depender da adequação dos tratamentos em uma abordagem multidisciplinar.

O programa televisivo “Conversando com o CREMEPE”, levado ao ar em 14 de agosto de 2002, pela TV Universitária da UFPE, ao tratar do consumo de drogas e as possibilidades de tratamento, demonstrou que todos os profissionais entrevistados, diretamente envolvidos com o tratamento das adicções no Estado de Pernambuco, concordam que quanto mais precoce a intervenção, mais chances tem o indivíduo de evitar a dependência química.

Aqueles que lidam com esta realidade sabem que, para avaliar o uso ou abuso da substância, não basta detectar sintomas de dependência física ou psíquica. De acordo com o psiquiatra Geraldo Ballone, editor do site PSIQWEB', onde estão disponibilizadas diversas páginas sobre o assunto, já foi o tempo em que se acreditava que quanto mais graves e exuberantes os sintomas físicos da síndrome da abstinência, mais séria deveria ser a dependência da droga em questão. Atualmente a ocorrência dos sintomas de abstinência, quando existe, não mais constitui uma questão clinicamente relevante para a psiquiatria moderna, que procura saber na verdade se a droga causa ou não sua busca e uso compulsivo, mesmo diante de conseqüências sociais negativas e de saúde.

Pois a drogadicção não é apenas uma doença a nível cerebral, mas uma doença cerebral onde os contextos sociais em que se desenvolveu e se manifestou têm importância crítica. E dentre os elementos sociais envolvidos na drogadicção, a exposição a estímulos condicionantes é um importante fator na vontade de consumir drogas e mesmo nas recaídas que acontecem depois de tratamentos que tiveram êxito.

Nas instituições grupais (Narcóticos Anônimos, Alcoólicos Anônimos) que lidam com esse problema, a base para a recuperação está na aceitação da adicção como uma doença, sobre a qual somos impotentes. Os programas de ajuda mútua, como é o caso dos Doze Passos, partem desta aceitação. Para esses grupos de auto-ajuda, a pessoa com Drogadicção, usando a droga ou não, está na condição de adicto.

A tarefa assumida pelos profissionais de saúde mental que trabalham em equipe multiprofissional com membros do Poder Judiciário nos parece totalmente legítima, uma vez que o sofrimento em espiral vivido pelos usuários e familiares, pode e dever ser interrompido através da intervenção efetiva no ciclo de falhas repetidas de autocontrole, onde cada falha traz mais sentimentos negativos à pessoa, como, por exemplo, sentimentos de culpa.

Além disso, discordamos da posição do Sistema Conselhos de Psicologia, por não percebermos que haja quebra de sigilo profissional. Ao avaliar e apresentar parte dos resultados de seu trabalho à equipe multiprofissional com quem trabalha o psicólogo cumpre normas do próprio Código, que dizem de suas responsabilidades junto ao trabalho em equipe multiprofissional e às relações com a instituição empregadora.

O enfoque jurídico como apoio à saúde.

Observamos que o texto do Sistema Conselhos de Psicologia inicia com uma interpretação equivocada da relação entre a Constituição Federal de 1988 e o conjuntos de leis específicas que lidam com a tipicidade de delitos, tal como a Lei de tóxicos. Leis específicas são criadas no sentido de complementar a Constituição Federal, uma vez que a sociedade têm a necessidade de regulamentar casos e procedimentos especiais.

O fato delituoso, e não apenas um mero fato “em confronto” com a Carta Magna, conforme foi colocado no texto, caracteriza ato infracional previsto na Lei 6368/76, em seu artigo 16 – “uso de substâncias psicoativas”, que seguindo os procedimentos da Justiça Criminal resultaria em pena restritiva de liberdade de até dois anos e meio para o autor.

Todavia, desde o advento da Lei n° 10.259/01, que ampliou a competência dos juizados especiais criminais, no sentido de incluir todos os crimes a que a norma da sanção imponha, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, as pessoas envolvidas nesta infração podem ser beneficiadas pela Lei 9099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, e foi inspirada no modelo consensual brasileiro de Justiça Criminal.

Esta lei, brilhantemente apresentada pelo Prof. Dr. Luiz Flávio Gomes, em sua “Introdução às Bases Criminológicas da Lei 9099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais”, partiu da necessidade de modernizar a Justiça Criminal para se conseguir um controle razoável da criminalidade. Permitiria, segundo o autor, sobretudo, viabilizar uma resposta “justa e útil” para condutas desviadas, objetivando resolvê-las em um “espaço de consenso”, onde se visa a ressocialização do autor do fato, e a efetiva “resolução” dos conflitos penais menores, e o faria com o apoio de equipe multiprofissional, a fim de alcançar não só a reparação dos danos à vítima (no caso dos usuários de drogas, a própria sociedade), bem como a verdadeira pacificação social dos conflitos.

É inegável que o usuário de drogas traz danos não somente para si, utilizando substâncias que afetam a estrutura e função de seus processos físicos ou psíquicos, mas para o todo social, na medida em que, o simples consumo de qualquer uma das substâncias psicoativas ilícitas fornece condições para a permanência do narcotráfico como força paralela ao direito constituído. Cada grama comprado de Cannabis sativa(conhecida popularmente como maconha) representa mais dinheiro no caixa dos traficantes de drogas, e provavelmente maior quantidade de armas adquiridas com a finalidade de realizar crimes mais graves contra a pessoa e a liberdade. Ninguém pode ser ingênuo a este respeito, ao tratar da questão da drogadicção.

A aplicação da lei 9099/95 a estes casos permite a aplicação de algumas medidas despenalizadoras, como por exemplo, a composição civil extintiva da punibilidade e a transação penal em lugar da forma processual tradicional, evitando todos os procedimentos que resultam do enfrentamento do infrator com o Estado.

Não se pode afirmar como indiscutível verdade que o tratamento seja percebido como punição pelos autores do fato. Nos casos em acompanhamento no I Juizado Especial Criminal do Recife, podemos verificar o empenho da equipe para que todos os usuários, abusadores e dependentes de substâncias psicoativas sejam tratados como problema social e comunitário, e a ação da Justiça tem sido percebida positivamente como mais comunicativa e resolutiva do que meramente punitiva pelos infratores.

Podemos estimar que em torno de noventa por cento dos casos apresenta boa receptividade para com o encaminhamento dado ao processo, não se sentindo “marginalizados” ou “oprimidos”, conforme chega a supor o texto do Sistema Conselhos de Psicologia. Existem problemas sim, mas estes são verificados justamente com aqueles indivíduos que apresentam maior comprometimento de sua autonomia diante da substância e do seu grupo de convivência, os “colegas de uso”, e um perfil psicopatológico fronteiriço, com evidente dificuldade de estabelecer e seguir regras de conduta social boas para si e para os demais.

Fatores como a quebra de abstinência são previstos desde o início no acompanhamento realizado, e são tratados pela equipe de saúde da unidade receptora do usuário. Estas unidades são instituições reconhecidamente vinculadas à prevenção, tratamento e recuperação do abuso de substâncias, que realizaram convênio com o Juizado, e que recebem doações ou prestação de serviços de autores que efetivaram transação penal com a Justiça. De sua parte é solicitado apenas o envio mensal – pelo próprio usuário - do comprovante dos atendimentos clínicos, e não a garantia de que o usuário está totalmente abstêmio.

Por outro lado, audiências de advertência são indispensáveis em certos casos, quando o autor simplesmente desconsidera o acordo feito com o Juiz, e deixa de comparecer ao Juizado nas datas pactuadas e estipuladas em audiência. Não há como liberar o infrator de toda coerção, afinal ele cometeu um delito previsto em Lei. Há um consenso, mas não uma consensualidade absoluta, pois a reparação de danos à vítima norteia o processo desde o início. E porque sendo a vítima o Estado, representante do todo social, este deveria ser mais benevolente que um cidadão que sofresse danos pela ação de outrem?

Conclusões possíveis

Observamos que os princípios fundamentais da Lei 9099/95, permitem ao autor do fato a oportunidade regrada de evitar o processo, as cerimônias degradantes, a sentença, o rol dos culpados, a reincidência, os antecedentes criminais e a prisão. Enfim, evita-se justamente a sua estigmatização, seja a derivada do processo em si, seja a da condenação. Isto posto que, a via da obrigatoriedade, do princípio da legalidade processual, tradicionalmente seguida pelo Ministério Público, é substituída por uma “legalidade mitigada”, nas hipóteses taxativamente previstas em Lei, em que se abre mão da via processual clássica, mas nunca ao extremo de deixar de dar uma resposta estatal. E esta é dada efetivamente pela proposta de uma medida alternativa à prisão.

Ao invés de vê-lo como doente, incapaz, ou inimputável, a Justiça do consenso deita suas raízes justamente no “princípio da autonomia da vontade”, uma vez que a intervenção realizada pela equipe do judiciário propõe uma sanção ao autor, e este, ao se conformar com ela, inicia uma transação com o Estado. O faz consciente de que evita os problemas decorrentes da via processual clássica, e de modo esclarecido reconhece nesta oportunidade um desafio e uma decisão, que pode assumir ou não.

Uma oportunidade que o faz refletir, sobretudo, em sua conduta ética, fazendo-o se posicionar entre a Lei, o que está estabelecido pelo todo social, e a Liberdade, o seu arbítrio, pois a relação dialética entre sua autonomia e a heteronomia assim o exige, na procura do melhor para si e para a sua sociedade.

Ao final, seria bom recordar, conforme nos formulou Adilson Coelho, Presidente da Câmara de Ética do CRP 04, que “a autonomia não é conseguida de uma hora para outra” e que “existe um processo de desenvolvimento e amadurecimento desses sujeitos que não pode ser desconhecido”. Pensamos que o termo de audiência firmado com a Justiça pode e deve ser um momento decisivo para este processo, pois junto com a liberdade individual temos que ponderar até que ponto a comunidade será atingida e prejudicada com a atitude do sujeito de desconsiderar as normas.

Desde o surgimento da psicanálise, há pouco mais de cem anos, o “trabalho amoroso” em saúde mental, de que nos fala Max Pagés, têm sido o de enfatizar que a determinação por si mesmo só pode ser pensada em referência ao que é enfatizado, inscrito e legislado pelo outro. A tensão inerente a relação entre a sua autodeterminação e as determinações que lhe vêm de fora pode estimular ou amedrontar o usuário de drogas, a depender da capacidade de se responsabilizar pelo outro que cada profissional que lide com esta realidade desenvolva no trabalho que realiza.

Recife, 08 de fevereiro de 2003.

Referências Bibliográficas

Coelho, Adilson Rodrigues. (2001). A saída do sujeito sem alta médica. A discussão sobre a autonomia e a postura do profissional psicólogo. Psicologia Ciência e Profissão, 22, n.º 3 38-45.

Gomes, Luiz Flávio. (2000)Introdução às bases criminológicas da Lei 9099/95, lei dos juizados especiais criminais. Em Antonio García-Pablos de Molina, Luiz Flávio Gomes. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos (pp. 467-525). São Paulo. Editora Revista dos Tribunais.

Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia. “Justiça Terapêutica: Tratamento não pode ser punição”. Em Jornal do Federal, ano XVIII, n°. 74, janeiro de 2003 (p. 11).

Conselho Federal de Psicologia. Código de Ética Profissional dos Psicólogos, Resolução CPF N2 0002/87, 15 de agosto de 1987.

Laboratório de Ensino à Distância. (2002). Formação de Multiplicadores de Informações Preventivas sobre Drogas. 2ª edição. Universidade de Santa Catarina/SENAD.

*Trabalho apresentado no III Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, João Pessoa, 27 a 31 de maio de 2003. Solicitado para inclusão na Intranet do Ministério Público do Rio de Janeiro, pelo Promotor Coordenador da Justiça Terapêutica, Dr. Márcio Mothé.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico, Hospitalar e Jurídico, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar