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A Ideologia da Intimidade no Brasil *.

Gilberto Lucio da Silva **

 

Richard SENNETT, em recente trabalho, intitulado "O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade", analisa a existência de uma ideologia da intimidade no contexto social moderno. Esta ideologia confere à realidade subjetiva dos indivíduos (seu sentir) a capacidade de servir como padrão de verdade para se medir as complexidades da realidade social, reduzindo-as as relações humanas diretas em escala intimista. Partindo deste trabalho, objetivamos mostrar, utilizando a obra de Gilberto VELHO ("Individualismo e Cultura" e "Subjetividade e Sociedade"), porque sua análise parece não se aplicar ao contexto social brasileiro, devendo mesmo ser relativizada nos contextos por ele apontados.

Tentamos, para tornar mais claros nossos argumentos, expor sucintamente os pontos principais dos textos utilizados, contrapondo em seguida suas propostas em função do objetivo acima colocado.

Embora se possa objetar o caráter ensaístico da obra de Richard SENNETT como sendo impeditivo à uma comparação crítica com o trabalho teórico-prático de Gilberto VELHO, acreditamos ser útil tal projeto. Talvez ele nos possibilite elucidar pontos polêmicos nas generalizações do primeiro, e contribuir para a elaboração de novas hipóteses no campo científico trilhado pelo segundo autor.

Percebemos ainda uma possibilidade crítica entre estes trabalhos, mesmo que eles estejam vinculados à áreas historicamente distintas em termos de projeto, como parece ser o caso da arte e da ciência. Acreditamos ser frutífera esta intersecção, visando criar condições de plausibilidade aos "vôos" teórico-filosóficos de uma perspectiva e fornecer material para reflexão ao método utilizado por outra.

O problema central: a consolidação da sociedade intimista

SENNETT divide sua obra em quatro partes, com a expressa intenção de fazer conhecer o longo processo histórico – cerca de três séculos (XVIII à XX) – de consolidação da chamada ideologia da intimidade. A tese central de seu livro, segundo ele próprio, "é a de que esses sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada ficaram por muito tempo incubados" (p. 30), sendo resultantes de uma mudança começada coma queda do Antigo Regime (século XVIII), época em que a burocracia comercial e administrativa desenvolve-se nas nações estudadas – Inglaterra e França –, paralelamente a persistência de privilégios feudais. Formava-se a partir daí, uma nova cultura urbana, secular e capitalista.

Na primeira parte de seu trabalho, denominada "O problema Público", encontramos as razões (ou desrazões) para o recrudescimento da noção de privado enquanto expressão de um "eu" íntimo, a "medida de todas as coisas". Tenta mostrar como "o eu de cada pessoa tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo" (p.16). Defende, consequentemente, a idéia de que "ao nos rebelarmos contra a repressão sexual, rebelamo-nos contra a idéia de que a sexualidade tem uma dimensão social", diríamos mesmo moral. Passamos do erotismo à sexualidade, tornando o sexo uma extensão de cada indivíduos, mais que um encontro socialmente normatizado.

Nesta perspectiva moderna, tudo só tem sentido quando pode ser relacionado significativamente coma auto-percepção narcísica dos indivíduos. Surge então, o fenômeno da troca mercantil de intimidades, a permuta de auto-revelações, enquanto desejo de se autenticar enquanto ator social por meio de suas qualidades pessoais. Trata-se de uma forma de resgatar, segundo o autor, o puritanismo sem a religiosidade. Todos intentam agir o mais adequadamente possível, segundo padrões internos de avaliação. Esvazia-se o caráter objetivo subjetivo das ações sociais e se dilata a importância dos estados emocionais subjetivos dos agentes. Isto trará repercussões para o universo político, em especial, as quais serão tratadas posteriormente no seu livro (capítulo XII).

Este processo de "intimização" das relações cria condições para o surgimento do espaço público vazio de sentido nos grandes centros urbanos. Estas áreas públicas mortas se tornaram uma derivação do movimento, lugares de passagem, onde o aglomerado e a visibilidade geram, paradoxalmente, o isolamento. Segundo o autor, o homem moderno "deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção" (p. 29), mesmo porque os humanos "precisam manter uma certa distância da observação íntima por parte do outro para poderem sentir-se sociáveis" (idem). E quando todos estão se vigiando mutuamente, diminui a sociabilidade, e o silêncio é a única forma de proteção.

No século XVIII, o homem enquanto ser social, ou seja, capaz de comportar-se como estranhos de um modo emocionalmente satisfatório, e no entanto, permanecer a parte deles, se fazia em público, era representado como um produto das relações sociais. Gradualmente, contudo, a ordem pública foi se desgastando, e as pessoas passaram à enfatizar mais o aspecto de se protegerem contra ela. A família constitui-se num destes escudos.

É assim que surge, para o autor, uma das maiores e mais enriquecedoras contradições do século XX, através, sobretudo, do aparecimento do "secularismo imanente". Mesmo quando as pessoas queriam se refugiar num domínio privado, moralmente superior, temiam que classificar arbitrariamente sua experiência em dimensões públicas e privadas poderia ser uma forma de cegueira auto-infligida. Esta impediria que qualquer fenômeno (e aqui é importante a indistinção) que despertasse atenção, perplexidade ou simples sensação pudesse ser incluído a priori no campo da vida privada de uma pessoa, onde certamente estaria ligado à uma qualidade psicológica importante à ser descoberta.

Este dilema se prolonga, para SENNETT, até nossos dias, onde a experiência pública continua sendo ligada à formação da personalidade individual. Vivemos num grande sistema psíquico, onde a linha divisória entre sentimento particular e demonstração pública deste sentimento pode ser apagada. O sistema de expressão pública se tornou um sistema de representação pessoal, onde os artistas ocupam um status peculiar de figuras públicas. Este tema será estudado em capítulo à parte (capítulo XIV).

Enfim, o autor conclui que as obsessões modernas com a individualidade são tentativas para se solucionar os enigmas do século passado pela negação: "A intimidade é uma tentativa de se resolver o problema público negando que o problema público exista" (p. 44).

Propõe ainda a recuperação das mudanças ocorridas nos papéis públicos como o método por excelência de sua análise, investigando o desgaste historicamente determinado destes papéis.

Na segunda parte, intitulada "O Mundo Público do ‘Antigo Regime’", discorre sobre as características do século XVII que o tornam estruturalmente diverso do período seguinte. Mostra, principalmente, como surgiram e se consolidaram as noções de espaço público e privado, demarcando nas cidades cosmopolitas, objetos de sua análise (Paris e Londres), o limite entre a criação humana e a condição humana, ligadas intrinsecamente aos espaços da vida em sociedade e da vida íntima, em família.

Na terceira parte, "O Tumulto da Vida Pública no Século XIX", analisa sobretudo como o crescimento das grandes cidades, concentradoras de elementos da burocracia e do comércio, mais que dos industriais, gerou a mistificação dos fenômenos (a ascensão social, por exemplo) e possibilitou o aparecimento da impessoalidade como característica da vida pública. Deu-se daí, a divisão do homem público em duas identidades: ator e espectador, onde a primeira se encontra marcada pela perspectiva do intérprete, mais do que do texto, e a segunda se revela imersa na contenção da emoção, julgada "primitiva". Tornamo-nos todos, segundo o autor, espectadores passivos, "voyeurs". Surgem então, condições para a percepção da sociedade enquanto personalidade coletiva, onde o narcisismo e o etnocentrismo se instauram.

Na quarta parte, "A Sociedade Intimista", nos deparamos com o fim da cultura pública dos séculos precedentes, posto que a personalidade pública, baseada mais no primado da autenticidade que no jogo e no ritual, destrói o próprio sentido da coisa pública, mesmo sendo, paradoxalmente, incapaz de se expressar, como todo dilema narcísico. A sociedade moderna se tornou, para SENNETT, sem regras de sociabilidade mínima. Sem o jogo, que requer um "ambiente à distância para ser realizado", fazendo do indivíduo um ator privado de sua arte. Tornando o carisma uma forma de neutralização dos conflitos, posto que desvia a atenção dos atos para as intenções do ator, inclusive usando a distância e impessoalidade das informações veiculadas pela mídia eletrônica.

Está consolidada a incivilidade moderna, a qual visa a criação da identidade entre as pessoas apesar do urbano, ou seja, a comunidade vai na direção oposta ao urbano, no sentido de que o bairrismo se contrapõe a dinâmica agregativa e cosmopolita própria da urbanidade.

Com o risco de ter passado muito rapidamente por estas colocações, resgatando apenas os pontos que nos interessam, pensamos, todavia, ter sido possível apreender os principais temas tratados pelo autor, o qual parece, inclusive, repetir certas idéias, tentando aplicá-las à diversos objetos em cada um dos capítulos.

O mesmo conclui, em capítulo a parte, "As Tiranias da Intimidade", que é pela dupla denegação narcísica da realidade e do valor da vida impessoal, que se impede a convivência civilizada entre iguais, individualidades modernas, tendo em vista o momentâneo adormecimento da possibilidade de vivência civilizada em nosso tempo. A renovação do espaço público, a rejeição das cadeias do bairrismo, enfim, a renovação de um princípio de comportamento político é nossa única saída.

Após esta breve exposição do trabalho de Richard SENNETT, passaremos a tratar da obra de Gilberto VELHO em apreço.

Individualismo plural nos sistemas sociais complexos

Conforme exposto no início, trataremos aqui dos textos de Gilberto VELHO, onde ele aborda a problemática dumontiana das relações complexas entre as formas de sistema social hierárquicas e igualitárias e suas respectivas ideologias, o holismo e o individualismo. Os textos utilizados nos parecem transmitir, correndo aqui o risco de simplificar demasiado suas argumentações, a idéia básica do sistema social brasileiro como sendo um lugar propício à investigação desta problemática, já que funciona como palco para o enfrentamento destas duas concepções de realidade social.

Na primeira parte do livro "Individualismo e Cultura", editado em 1981, o autor, partindo da noção de complexidade social, quer defender a idéia de uma heterogeneidade cultural que, segundo ele, "deve ser entendida como a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.", a qual delimita a existência de "fronteiras culturais" ou "simbólicas" para além de totalizações apressadas que vinculam um sistema social a uma determinada ideologia (holista ou individualista) e a um ethos específico.

Tendo como referência as obras de Marcel MAUSS e Louis DUMONT, o autor adverte que mesmo nas culturas mais organizadas em termos de hierarquia/igualitarismo ou holismo/individualismo, existe sempre a possibilidade de haver desvios, os quais dão forma a microsistemas ou a um "campo de possibilidades", circunscritos histórica e culturalmente, "tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes" (p. 27).

Nunca, segundo o autor, houve homogeneidade absoluta que nos permitisse atribuir ao sistema social brasileiro uma designação formal de um ou de outro tipo (hierárquico ou igualitário). Sobre isto, diz: "Por mais que se fala do arcaísmo português, o fato é que a colonização do Brasil já se dá em um período em que o Renascimento, a Reforma e seus diferentes correlatos já definem um sistema cultural em que o individualismo, enquanto ideologia inovadora em relação a uma Idade Média paradigmática, já se infiltrou nos sistemas mais holistas" (p. 145).

O próprio processo de colonização constrói situações muito diversificadas. De um lado, a plantantion clássica girava em torno de princípios ordenadores hierárquicos, de outro, as entradas e bandeiras, os ciclos do ouro e do gado e a contínua expansão das fronteiras internas abrem literal e metaforicamente um espaço para uma ideologia e uma escala de valores em que o indivíduo pode ser a unidade social significativa.

Porém, embora não seja exclusivo, o modelo hierarquizante "atua de forma decisiva na sociedade brasileira" (p. 146), associado a onipresença do Estado para limitar o indivíduo valorizado enquanto sujeito moral e político. O exercício da cidadania, por exemplo, é constantemente associado à idéia de subversão.

Sobre isto, afirma: "A ambigüidade hierarquia/individualismo e o autoritarismo do Estado combinam-se para impedir o florescimento da noção de cidadão. Na prática internalizamos valores hierarquizantes mesmo quando membros de setores ditos mais progressistas e liberais. Na prática ainda remetemos ao Estado o controle de nossas vidas e aceitamos sua tutela e eventuais arbitrariedades" (p. 148).

Em "Subjetividade e Sociedade", VELHO coloca a sua preocupação central com o "sujeito no mundo" lidando com uma determinada rede de relações sociais básicas, qual seja, as camadas médias altas da Zona Sul do Rio de Janeiro, tomadas em uma faixa geracional compreendida entre 30 e 40 anos.

Através de entrevistas, de onde procurou resgatar as histórias de vida de cada um dos informantes, ele encontrou, nos depoimentos, um tensão básica entre valorizar a experiência particular que sublinha o indivíduo e a tendência de nivelar as experiências individuais dentro de um processo histórico e social mais amplo. Conclui que, sem nunca acabar esta tensão, predomina, no universo pesquisado, a valorização do indivíduo-sujeito e de suas potencialidades.

Este universo, camadas de classe média alta do Rio de Janeiro, parece ser predominantemente portador de uma ideologia individualista, mas a auto-percepção de seus integrantes é igualmente, e muito acentuadamente, filtrada pelo olhar do grupo, tomado enquanto rede social básica.

Para o autor, "fica patente que a identidade dos indivíduos passa, quase sempre, por uma forte vinculação a um grupo de pares que, de diversas formas, reforça certas crenças e valores" (p. 88). Há, todavia, uma "tendência à centralização em torno de um conjunto de valores em que a sociabilidade de caráter mais intimista vinculada a um grupo particular, é o valor chave" (grifo nosso) (p. 89).

Esta tendência é continuamente atritada com mecanismos socioculturais em que a reciprocidade entre grupos, particularmente de parentesco, ocupa posição central na construção e elaboração das identidades sociais dos indivíduos. É neste conflito, entre particularização e universalização das experiências grupais e individuais que vive o ator social brasileiro. Este, em busca do que VELHO chamou de "coerência", constrói sua identidade dentro de um contexto em que diferentes mundos ou esferas da vida social se interpenetram, se misturam e muitas vezes entram em conflito.

Em seu trabalho anterior, aqui também apreciado, o autor já alertava para a existência de diferenciação entre o lugar do indivíduo na construção social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista, vinculada a tipos particulares de experiência e história.

Daí ele concluir que: "Não há um único individualismo. É perigoso confundir a ideologia individualista analisada por DUMONT, com toda e qualquer possibilidade de o indivíduo-agente empírico encontrar espaços e manipular situações" (p. 50). Ao nosso ver, trata-se da mesma distinção postulada entre estrutura e estratégias na análise de MAYBURY-LEWIS (1986).

Estes pontos resumem a contribuição de Gilberto VELHO à análise que pretendemos realizar a seguir, embora já tenhamos, de certa forma, começado a fazê-lo.

Dos limites do individualismo intimista

Partilhando da perspectiva de Louis DUMONT, pensamos ser possível distinguir entre sistemas modernos e não-modernos ou tradicionais, fazendo uso da noção de indivíduo como unidade empírica versus indivíduo como valor, respectivamente pertinentes ao ideário holista e individualista (mesmo aqui, trata-se de uma simplificação grosseira).

No entanto, o próprio DUMONT adverte (1985: p. 37 e segs.), ao analisar o problema das origens do individualismo a partir das sociedades holistas – no caso, a Índia, por ele estudada – , que existem pontos de indistinção ou de contato entre os dois sistemas e mesmo configurações (combinações) particulares de determinados épocas e situações.

Ora, o que queremos é justamente isto, ou seja, que o sistema social brasileiro é constituído de diversas configurações (ethos e visões de mundo), as quais se comunicam pelas "fronteiras culturais" investigadas por VELHO (1981 e 1986). Isto tem algumas conseqüências para as generalizações de Richard SENNETT, se tomamos como válida a associação entre seu conceito de "ideologia da intimidade" e o de "ideologia individualista" utilizado por Gilberto VELHO.

Nos quer parecer afinal, que ambos tratam do mesmo processo, qual seja, a ascensão da noção do indivíduo como valor, "a medida de todas as coisas", nas sociedades modernas.

Mesmo que SENNETT estivesse certo em seu argumento principal, de que convivemos hoje em uma cultura urbana, secular e capitalista, teríamos que rever a abrangência de sua generalização, tendo em vista a possibilidade de coexistirem num mesmo contexto ethos e projetos individualistas diversos, ora mais, ora menos próximos de uma visão holista sobre a qual se constituíram.

No espaço público de SENNETT só existem o anonimato, e, consequentemente, o paradoxo isolamento/visibilidade. Em VELHO, vemos que não é bem assim, pois mesmo nos grupos mais estreitamente ligados a uma ideologia individualista há fortes traços de uma tendência holista, que toma o grupo enquanto valor. O "vazio de sentido" percebido pelo primeiro como atribuível a todos os espaços públicos modernos, pode muito bem ser plenamente "preenchido" pela vivência nas e pelas redes sociais básicas.

Em relação a sexualidade, por exemplo, os grupos portadores de um ideologia individualista estudados por VELHO vivem durante toda a vida um dilema entre: tomar a paixão como um sentimento idiossincrático, ou sujeito ao controle social, "domesticável". Não existe a percepção do sexo-paixão como, e tão somente, uma mera extensão de si próprio, nos indivíduos destes grupos. Eles andam sempre as voltas com as normatizações (sistemas de acusações) instituídas.

A própria idéia de um "narcisismo" é questionável. Como se construíram as noções de pessoa dos indivíduos deste país? Verifica-se uma acentuada diferença entre estratos sociais não só em termos de padrões de renda, mas em termos culturais. Privacidade e intimidade não são pertinentes, ao nosso ver, à uma população em que a maioria vive em casas de um ou dois cômodos. Como apontamos anteriormente, existe um "campo de possibilidades" para o desenvolvimento de diferentes "noções de indivíduo" e de temas, prioridades e paradigmas culturais no contexto social brasileiro.

Por outro lado, existe confluência entre a argumentação de SENNETT sobre o político enquanto um "carismático neutralizador" e os achados de VELHO com respeito ao grupo geracional em estudo. De fato, se verifica uma forte descrença diante de projetos mais politizados, da parte dos informantes entrevistados. E mesmo que isto signifique uma valorização da esfera privada em detrimento da pública, não podemos supor que este "privado" esteja, automaticamente, ligado ao processo de "intimização" das relações sociais.

Se intimidade for entendida como um individualismo que se elabora através da interação permanente com certos parceiros escolhidos e valorizados dentro do ethos, então o universo pesquisado por VELHO poderia ser associado a visão sennettiana. Isto consolidaria sua argumentação quanto a esfera política neste grupo pesquisado, não o fazendo, todavia, para todos os indivíduos urbanos.

O próprio VELHO, ademais, conforme mencionado anteriormente, explica esta desvalorização da esfera pública como uma conseqüência da ambigüidade hierarquia-individualismo e do autoritarismo estatal, os quais se combinam para impedir o florescimento da noção de cidadão no universo pesquisado. Não a liga portanto, tão somente ao predomínio, como o faz SENNETT, de uma ideologia individualista.

Poder-se-ía objetar que nossa argumentação não leva em consideração o fato de que VELHO retrata uma realidade "pré-moderna", o Brasil Novo e seus arcaísmos (ver CHAUÍ, 1990), e SENNETT, uma realidade pós-moderna, onde o indivíduo como valor, anteriormente consolidado, passa a ser questionado enquanto tal. Todavia, há de se verificar em que consistem suas respectivas propostas.

De um lado, é o sociólogo "igualitarista" que observa as peculiaridades de um universo social ambíguo, apontando as influências do individualismo em contextos holistas, e vice-versa, de outro, é o ensaísta que estipula um processo de "intimização" das relações sociais, defendendo o retorno à "soluções modernas". Ambos os críticos nos parecem defender afinal o espaço da modernidade e a distinção, para eles "saudável", entre os domínios privado e público da vida social, dando a cada um o necessário peso na determinação do convívio humano.

Percebemos, inclusive, que, se a distinção entre público e privado apenas pode ser remetida a um ideário individualista (moderno), o modo específico deste ideário, e sua maior ou menor proximidade de um holismo anterior ou concomitante, poderia resignificar conceitos modernos como o de "cidadão", tornando-os apreensíveis em termos hierárquicos.

Temos afinal no Brasil, momentos em que indivíduos empíricos atuam em público participando de um ideário holista, onde há cidadãos de primeira, segunda e terceira classe, e momentos em que o isolamento, enquanto conseqüência paradoxal da visibilidade extrema do espaço moderno cosmopolita e expressão de um ideário individualista, se apresenta, inquestionavelmente. Há porém, que se complexificar estes momentos, mostrando que eles coabitam os mesmos espaços e também os mesmos tempos, impedindo a completa apropriação de um momento por um sistema ou pelo outro.

Estes contra-argumentos podem igualmente ser remetidos aos contextos analisados por SENNETT (Londres e Paris), demonstrando que, afinal, não é possível separar nitidamente os dois sistemas na prática, posto que eles são pólos de um contínuo que trocam suas respectivas características na própria diferenciação mútua.

Deveríamos então, falar de um individualismo francês, um britânico, um indiano, um brasileiro, entre outros, os quais guardam maior ou menor distância do momento holista anterior. Se deveria, mais que nunca, diferenciar os possíveis desenvolvimentos de ideologias individualistas, vinculadas a tipos particulares de experiência e história, para não incorrer em sociocentrismos e generalizações apressadas de um individualismo regionalista (ver a respeito, DUMONT, 1985: 244 e 248, sobre o trabalho de C. KLUCKHOHN).

Esta apreciação é importante, tendo em vista a possibilidade, nem um pouco remota, de, ao analisar e criticar o processo de "intimização" moderno, tornar este objeto mais uma forma de totalização apressada, dando origem à possíveis totalitarismos científicos ou mesmo político-científicos que solapem alternativas críticas e argumentações contrárias. Vivemos afinal, num mundo onde o poder do dito e o dito do poder estão muito próximos.

Bibliografia

CHAUÍ, Marilena. 1990, "Política e Cultura Democrática: o público e o privado entram em questão", in Folha de São Paulo, Letras, pp. 4 e 5, sábado, 16 de junho de 1990.

DUMONT, Louis. 1985, O Individualismo, uma perspectiva antropológica da Ideologia Moderna, Editora Rocco, Rio de Janeiro, RJ.

MAYBURY-LEWIS. David, 1986, "Estruturas e Estratégias", in Anuário Antropológico, Editora Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro.

SENNETT, Richard. 1988, O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade, Companhia das Letras, São Paulo, SP.

VELHO, Gilberto. 1981, Individualismo e Cultura, notas para uma antropologia da sociedade contemporânea, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, RJ.

VELHO, Gilberto. 1986, Subjetividade e Sociedade, uma experiência de geração, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, RJ.

*Trabalho publicado nos Anais do V Encontro de Ciências Sociais do Nordeste, realizado no Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 1991.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar