Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

O Brasil exótico e o folclore estilizado.*.

Gilberto Lucio da Silva**

 

Em recente entrevista, o professor de teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Marcos Bulhões, afirma que não quer saber de releituras do folclore. Nada de quadrilhas estilizadas ou pastoras de pernas de fora para atrair turistas. Para ele, ser contemporâneo é promover um saudável encontro entre o que pertence à tradição e o que é moderno, mantendo o respeito às diferenças e sem falsos moralismos.

Partindo do que se pode nomear o "tragicômico involuntário" do brasileiro, Bulhões aponta para o fato de que as manifestações populares no Brasil sempre são muito expressivas cenicamente. Na perfomance da baiana que vende o acarajé, seu vestuário, o jeito de falar, o ritual que é a compra, percebe o mesmo elemento teatral que emerge em toda dança das festas importantes deste país, como por exemplo, nos personagens do Mateus do Boi; o velho, o palhaço e a Diana do Pastoril; a noiva e o padre da Quadrilha; o papangu, as virgens do Carnaval; o rei e a rainha do Maracatu e do Congo. E arremata: "quanto mais gostoso é o acarajé mais teatral é a vendedora".

Segundo ele, no brasileiro existe uma mistura única da alegria da dança negra, da vontade cabocla de se pintar, beber e fumar o cachimbo da paz, acrescidas do tom operístico da nossa latinidade portuguesa. Isto lhe permite festejar mesmo nas piores situações, como numa "tragédia carnavalizada", que pode gerar a farsa de um povo bacana e hospitaleiro, ao ignorar a própria capacidade para conviver com a intolerância. Aponta para os inúmeros exemplos de figuras históricas que realizaram em sua época massacres e vilezas, e hoje são enaltecidas e homenageadas, tendo seus nomes em praças e avenidas.

Uma de suas propostas para tentar resolver a dicotomia entre tradição e modernidade, é a abolição da categoria do "folclórico". Adotando a visão de uma disciplina científica recente, a Etnocenologia, se coloca a favor de uma não divisão entre teatro ocidental e oriental, folclore e erudito. Neste sentido, o teatro de palco estaria no mesmo nível do Boi de Reis, sem graduações, pois que todos representam a cena deste país.

Um aprendizado mútuo entre artistas "de teatro" e "populares" é visto como um antídoto ao uso de uma forma tradicional de teatralidade de modo repetitivo ou "reciclado". Assumir o que é próprio de cada artista e aprender formas de trabalhar juntos, desde a convivência na escola, em vez de fabricar, por exemplo, um pastiche modernoso do Pastoril, lhe parece a melhor maneira de valorizar as diferenças.

Para tanto, não se pode ser submisso aos modismos que nos vem de fora, ou à arrogância da preservação interesseira. Deve-se partir da capacidade do folclore de canibalizar, devorar o que vem do estrangeiro e transformar em outra qualidade. Como exemplos de artistas que têm algo a dizer e que pensam sua prática, ele cita Chico Daniel, o maior mamulengueiro potiguar, que mantém uma atitude anárquica em seu trabalho, o diretor e autor Zé Celso Martinez, com o seu Teatro da Vertigem.

Em contraponto, nos fala de seu desagrado com o parafolclore de festival, de gabinete, e com o parafolclórico que mama nas tetas do estado branco culpado. Estado que vende a ilusão de uma valorização da cultura, quando esta mesma cultura estilizada serve apenas para ilustrar solenidades de nossa elite burocrática e lusitanamente cafona.

Podemos dizer, inclusive, que aqui em Pernambuco nada nos parece diferir do estado de coisas que ele encontra no Rio Grande do Norte. Segundo Bulhões, as manifestações populares da tradição são substituídas por atores e bailarinos parafolclóricos que ganham cachê, enquanto os grupos folclóricos de verdade ficam a mingua, sumindo por falta de apoio e reconhecimento.

Aqui também temos o show para turista, para inglês ver, cuja "releitura" e pseudo "resgate" da tradição mantém o fluxo do turismo sexual, dos "gringos" que querem mesmo é ver as pernas das pastoras modernizadas no palco.

Aqui também se educa, na base da decoreba para vestibular, toda uma elite que desde criança vê os valores culturais da tradição pela ótica do exótico, do folclórico. E haja índio apache americano, fazendo U-U-U, na Semana do Índio e nos festivais globais de Quadrilhas Juninas. As formas pré-fabricadas, adequadas para a representação, tudo tentam absorver, para mostrar o quanto somos exóticos.

Também aqui encontramos o discurso que defende nossa ascendência ibérica. Discurso que é adotado por muitos ilustres, este enfatiza a herança portuguesa e espanhola, e omite as raízes negras e caboclas de nossa cultura. Queria, de igual modo, ver o senhor de engenho, na sua cadeira de balanço da casa-grande, cair no batuque do terreiro, ao invés de ficar só falando de cordel e de rabequa armorial.

Pois, afinal, preservar não é manipular, transmutando em parafolclorismo a pulsação ancestral que fortalece a cultura de uma nação. Quem brinca, e o artista é um eterno brincante, deve poder mudar a brincadeira sempre que quiser, e não ficar preocupado se tem de preservar ou não o folguedo. Mas, deixar o tradicional para adotar as roupas do rodeio americano ou a estética da Xuxa, só para a quadrilha ficar mais bonita e ganhar o prêmio, pago com dinheiro do contribuinte, é uma atitude de prostituição cultural, não é festa, nem de João nem de Pedro.

Ao final, recordamos com ele que a festa existe para propiciar a convivência da comunidade, comemorando os feitos do passado e celebrando a existência. Transformar tudo isso, tão belo e tão vivo, em algo meramente para ser vendido, é trair tudo que faz a gente se sentir melhor, apesar dos pesares.

*Resumo da entrevista feita pela revista Continente Multicultural, com o professor Marcos Bulhões, e publicada em fevereiro de 2002. Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-Graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar