Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

Um Jogo de Espelhos Vazios:
Análise Psicológica de Superfície e Realidade do Consenso Midiático*
.

Gilberto Lucio da Silva**

"Um self independente é aquele que é suficientemente esperto
para encontrar um bom sistema de apoio por parte dos objetos do self
e permanecer sintonizado com as necessidades dele
e com a mudança das gerações. A um sistema como esse
deve-se estar disposto a conceder muito"

Heinz Kohut

Em trabalho anterior pudemos identificar alguns elementos de um discurso ideológico sobre a subjetividade contemporânea no Brasil (SILVA, 1991). Este nos parecia guardar semelhanças e diferenciações de um perfil apresentado por outros autores, como por exemplo SENNETT (1988) e LASCH (1983), que estudaram sociedades diversas. Num outro momento, tivemos oportunidade de investigar características do perfil profissional dos psicólogos clínicos em nossa região, onde se evidenciou uma situação contrastante entre o discurso homogeneizador sobre a prática e a heterogeneidade das situações de atendimento encontradas (SILVA, 1993a).

No presente estudo desenvolvemos aspectos anteriormente investigados (SILVA, 2001), procurando integrar nossos interesses anteriores num locus, onde o discurso ideológico da intimidade se apresenta em um campo de aplicação cada vez mais relacionado aos profissionais da "área psi". Campo para o qual despertamos recentemente, ao notar a presença constante de determinados profissionais, cujo discurso coloca ênfase na dimensão psicológica do sujeito, ao abordar diversos assuntos nos meios de comunicação de massa. Podemos chamá-los, para efeito de simplificação, de "especialistas psi". E embora sua formação e/ou identidade profissional possa ter sido adquirida em cursos universitários de Psicologia, ela também pode ser relacionada a uma denominação mais ampla, que engloba uma multiplicidade de especialidades sob o nome de "Sexologia".

Em suas participações na mídia, estes "especialistas" podem se apresentar de duas formas básicas. Ser do tipo "técnico", cuja abordagem das situações é mais pragmática, enfatizando a ação, ou se aproximar de um tipo "comunicativo", que se acerca dos problemas de um modo mais prudente, menos taxativo e com ênfase num "convite ao diálogo". Ambos partem, no entanto, de uma compreensão muito similar dos problemas que se lhe apresentam, seja como assunto em pauta no programa, seja expresso nas perguntas que os ouvintes fazem durante a transmissão da entrevista. Eles parecem falar em nome de "valores-ápice", no sentido que lhes atribui KOHUT (1988): um valor aplicado de modo tão integrado à personalidade, que perde sua definição ética como valor. Ao tipo que chamamos de "técnico", dedicamos um estudo a parte. Aqui trataremos daqueles profissionais, geralmente psicólogos e psicanalistas, que mantém uma atitude aparentemente mais reflexiva sobre os temas trabalhados na mídia.

Um Estranhamento Inicial

Nossa atenção foi despertada para este fato, a partir de um convite, feito por uma colega de profissão, no sentido de participarmos de uma destas entrevistas, realizadas nas emissoras de rádio e televisão locais. As mesmas atingem um vasto público, pertencente a todas as camadas sociais, e os temas ali tratados geralmente passam a ser objeto de discussão pública.

Por curiosidade e necessidade de avaliar o que seria dito naquela ocasião, a primeira vez que participaríamos de um debate ao vivo, resolvemos gravar a entrevista quando de sua retransmissão no horário noturno. Esta gravação foi fundamental para os questionamentos que tiveram lugar posteriormente, pois, a partir dela, o estranhamento que nos causou a situação vivida pode ser melhor apreciado e objetivado.

Uma segunda entrevista-debate, realizada em outra estação de rádio local, um mês depois, confirmaria nossas impressões iniciais de que algo não estava certo naquele projeto de participação especializada na mídia. Esta segunda entrevista consolidou uma determinação que apenas fora esboçada em um primeiro momento, e que nos levava a recusar e manter um distanciamento crítico desta proposta de aplicação prática dos nossos conhecimentos. Os convites foram repetidos em mais de uma ocasião, mas deles sempre declinávamos, alegando compromissos profissionais ou apontando a necessidade de uma maior seletividade quanto à correlação entre o tema a ser tratado e a formação de quem se buscava a participação.

Logo, conforme era de se esperar, os convites deixaram de ser feitos, fato que nos causou alívio e desconforto. Alívio, por não ter mais de "dar palpite" em qualquer tema selecionado pela agenda jornalística, e desconforto, por temer estar "perdendo terreno" e deixando espaço para um outro discurso, que certamente seria convocado a fazer parte da abordagem dos assuntos veiculados pela mídia.

Durante os meses seguintes, percebemos que a presença dos "especialistas psi" e suas explicações para quaisquer temáticas se tornou um padrão de captação de audiência, levando a convocação semanal dos mesmos profissionais para os mesmos programas, num paroxismo de auto-reforçamento. Quando mais o discurso "explicativo" é veiculado, mais necessária se faz a participação destes "especialistas" para cultivar o recorte da realidade que é oferecido ao debate.

Recorte da realidade que é feito quando, no sentido apontado por SODRÉ (1990, p. 58), o mundo social é descrito e prescrito e ganha existência social e política sob a arbitragem dos meios de comunicação em geral, que criam a "realidade do reflexo".

Sobre o nosso "estranhamento" inicial, podemos dizer que ele foi "causado" pelas próprias condições de comunicação presentes no ambiente da entrevista. Condições que são previamente estabelecidas e características estruturais do Campo Midiático que, conforme BOURDIEU (1997) e BOURDIEU & CHABOREDON (1972), partindo da delimitação dos espaços próprios a cada discurso, age como um microcosmo que tem leis próprias, um espaço social estruturado, e é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre da parte de outros microcosmos.

A mais evidente delas, a limitação do tempo, reduz o discurso ao tempo de uma urgência, onde tudo deve ser dito do modo mais rápido e simples que for possível. Esta se revela particularmente pela utilização de figuras de linguagem no lugar de argumentos, de metáforas e "historietas" onde se faria imprescindível um aprofundamento do tema, de tiradas de humor onde uma problematização seria oportuna.

Limitação imposta, sobretudo, pela onipresença das mensagens dos patrocinadores, o discurso da propaganda, que se imiscui e se mistura ao discurso dos debatedores. No ambiente midiático "tempo é dinheiro", e as demandas de quem sustem economicamente a produção têm de ser levadas em consideração. Sabemos, entretanto, que uma análise aprofundada e sistemática requer um certo tempo para desenvolver argumentos e demonstrações. Um discurso que se pretenda analítico, crítico e articulado não é compatível com o tempo da urgência que é encontrado com facilidade nos debates e entrevistas realizados nestes meios, onde simplesmente não se pode parar para pensar.

Sobre este aspecto, um dos pressupostos da mídia é o de que a velocidade é mais importante que o conteúdo, determinando a colocação das palavras no mesmo nível das imagens, que costumam "valer mais que mil palavras". Assim sendo, os pensadores que supostamente podem pensar em velocidade acelerada são privilegiados no campo da comunicação midiática.

Estreitamente vinculada a esta característica encontramos a prerrogativa da aceitação ampla do tema em debate por uma audiência que tem de se reconhecer nele, exigindo assuntos/fatos que interessem a todos os ouvintes. São os assuntos que BOURDIEU (ibid., p. 23) chama de omnibus - fatos-ônibus -, aqueles "que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante".

Devido a isto, o profissional convidado nunca opina sobre o tema a ser debatido. Não o escolhe, nem tem suas propostas acolhidas, e sob nenhuma circunstância pode questionar a importância do assunto que lhe é proposto. Quase sempre o "especialista" só fica sabendo do tema que será objeto de suas considerações minutos antes do programa iniciar. Muitas vezes, ironicamente, sintonizado na rádio onde será realizado o debate, por ocasião de sua ida ao estúdio.

Estas características estruturais criam uma espécie de "efeito de barreira", relacionado a seleção de um assunto único, a "bola da vez", que passa a ser abordado por todas as emissoras num mesmo momento, impedindo a apreciação de outros temas correlatos, tão ou mais importantes que o tema em evidência.

Além disso, no Campo Midiático a compreensão do que é dito por todos se faz necessária, cabendo ao profissional adequar o seu discurso "especializado" ao conjunto da audiência, permitindo a todos uma apreensão unívoca do que é dito.

Como o problema maior da comunicação é o de saber se as condições de recepção são preenchidas, se aquele que escuta tem o código para decodificar o que estou dizendo, teríamos que constatar que a limitação do tempo anteriormente apontada é complementada por esta necessidade de compreensão ampla. Além de falar no tempo que lhe é atribuído, o "especialista" ainda deve fazê-lo de uma maneira que possa ser compreendido por todos os ouvintes. De modo geral, a audiência decide em última análise o que deve ser dito e como deve ser proferido, reforçando uma "mentalidade índice de audiência", onde o que importa é conseguir captar e manter a atenção do público.

Somente com a aceitação destas condições é que o "especialista psi" pode se propor a falar na mídia. Tendo o tempo limitado, sem poder opinar sobre o assunto proposto ao debate, e devendo adaptar o seu discurso a uma ampla audiência, caberia perguntar, como o fez oportunamente um ouvinte, na primeira entrevista de que participamos: Estas pessoas que estão falando tudo isso sobre este assunto, são "doutoras" em que mesmo? Ou seja, qual a origem de seu discurso, em que são especialistas, afinal? Tentaremos, a seguir, responder a este questionamento, buscando expor parte do que poderia ser entendido como um "culto especializado à personalidade".

Pressupostos de uma Especialização

A forma de apresentação já revela toda uma proposta de reconhecimento, de inserção num universo de condições previamente estabelecidas. Ao ser nomeado "sexólogo", o "especialista" é incluído numa profissão polissêmica, que aglutina diversas categorias profissionais - psicólogos, médicos, psicanalistas, fisioterapeutas, educadores e preparadores físicos, massagistas, entre outras.

Todavia, este tema do sexo, ou dos problemas de ordem sexual, se encontra associado ou mesmo subordinado a um outro grupo temático, que remete a uma concepção da "personalidade" entendida como a identidade singular do sujeito, aquilo que o diferencia perante a comunidade em que vive e que pode determinar a compreensão do assunto em pauta. Segundo SENNETT (op. cit., p. 412), os "próprios termos da natureza humana foram transformados num fenômeno individual, instável e auto-absorvido, que chamamos 'personalidade'".

O enfoque se efetiva menos na ação dos sujeitos do que na sua intenção, seu sentimento, sua visão subjetiva. Fato que é reforçado pelas perguntas típicas do jornalismo contemporâneo que se baseiam no sentimento do entrevistado, funcionando como uma deixa para o "especialista" supostamente fazer sua "análise" rápida.

Entendemos ser "suposta" a realização desta análise rápida, por notar que ela em verdade não é conseguida, e que os "especialistas psi" convidados pela mídia "pensam", em condições que ninguém mais consegue, por pensarem por "idéias feitas" ou idéias do senso comum. E dentre os diversos lugares-comuns utilizados, encontramos o lugar privilegiado que a Ideologia da Intimidade, conforme a definiu SENNETT (ibid.), detém sobre a vida social.

Nesta ideologia, o romântico culto da sinceridade e da autenticidade rasgou as máscaras que as pessoas usavam em público e destruiu os limites entre vida pública e privada. A mesma pressupõe existir na atualidade, mais que em qualquer época da história da sociedade ocidental, uma perspectiva onde o que o sujeito sente, o que reconhece na sua anima, é o elemento mais importante da sua participação em sociedade, se tornando o padrão de verdade para se medir as complexidades da realidade social.

Esta sociedade intimista inverteu inteiramente a máxima, segundo a qual, a aprovação ou a censura se dirigem a ações mais que a atores. Neste sentido, o que importa não é tanto o que a pessoa fez, mas como a pessoa se sente a respeito, e elementos como a espontaneidade e a singularidade de cada sujeito conquistaram o espaço da vida pública, onde o sujeito vale o que traz de diverso, e não mais o que o aproxima de uma norma ou forma estabelecida socialmente. Os indivíduos ficaram mais aparentes, mais exteriores, mais narcisistas, no sentido de estarem paradoxalmente definidos e reduzidos a sua própria imagem e/ou semelhança.

Se esta "realidade" do indivíduo narcisista pode ser vista como sendo o real da sociedade contemporânea, ela traz algumas conseqüências inevitáveis. De início, observamos que as pessoas que vivem em grandes centros urbanos, onde a influência da mídia se faz mais evidente, desenvolveram, na segunda metade do século XX, um progressivo enfraquecimento do Sentido de Tempo Histórico (LASCH, p. 23). A norma parece ser o viver para o momento, viver para si, e não para as gerações seguintes, ou para a posteridade, perdendo, desta forma, o senso de pertencer a um contínuo histórico, numa sucessão geracional, onde existe a importância da herança cultural que se recebe e que se passa adiante.

De igual modo, as pessoas vivem em busca da sensação momentânea de bem estar pessoal, saúde e segurança psíquica, no sentido de estabelecer uma identidade. O clima social contemporâneo pode ser visto como terapêutico (ibid., p. 27), e, neste clima, a atitude política social é substituída pela atitude introspectiva, onde o indivíduo tudo experimenta a fim de atingir um estado em que se "ama" bastante para não sentir a necessidade de outras pessoas para atingir sua felicidade.

Paradoxalmente, cada vez mais narcisista e menos intimista, a vida social parece ter se tornado mais hostil e bárbara, criando condições para um culto da "personalidade", que não tem origem na afirmação da personalidade, mas no seu colapso. Longe de glorificar o eu, este "culto" torna crônica sua desintegração. Nele o mundo social não se torna um mundo de confidências íntimas propícias ao desenvolvimento da intimidade verdadeira, mas se ancora no vazio interior proporcionado pelo culto da celebridade e do evento, intensificando os sonhos narcisistas de fama e glória e sancionando a gratificação de todos os impulsos, através da propaganda de mercadorias e da "vida boa".

Uma Profundidade Muito Rasa

RACAMIER (cf.: DESSUANT, 1992) nos recorda que a morte de Narciso não se deveu a sua contemplação de si mesmo no espelho das águas de um lago, mas ao fato de ter justamente esquecido de que aquilo era um "espelho" e não um corpo igual ao seu. De modo semelhante, ao reduzir a totalidade do corpo social ao "eu" de cada indivíduo se inicia uma dialética da realização, onde o meio é apenas uma faceta da personalidade individual, e todos os motivos sociais passam a ter fundamento no apetite dos indivíduos.

A presença midiática dos "especialistas psi" parece ser convocada para tentar organizar as conseqüências resultantes desta busca pela realização de todos os apetites individuais. Eles talvez desempenhem a mesma função dos oráculos na Grécia Antiga: apresentando uma tentativa de predizer um possível futuro. Sendo assim, passam a disputar um mesmo "mercado de previsões" com profissionais ligados as práticas místicas e esotéricas, se especializando, de certo modo, na previsão do "tempo psíquico".

Em situações que envolvem crise ou conflito, estes profissionais propõem a um sujeito, cuja identidade moral e social se encontra fragmentada, uma perspectiva de consenso. Esta mesma perspectiva, se permite atenuar a crise individual, subentende uma estabilidade social, não sujeita a variações bruscas. A saúde mental passa a ser tomada como espelho e corpo da saúde social, num discurso retórico que veicula uma visão reducionista: se o mundo é constituído de indivíduos, e se os indivíduos vão bem, logo o meio social também está bem. Esta parece ser a lógica interna do sistema de entrevistas especializadas, onde a ênfase se coloca sobre os aspectos psicológicos das questões em pauta.

Todavia, mais que psicológica, psicologizada, ou intimista, toda questão e todo o sujeito que a pronuncia termina por ser narcisista, voltado sobre si mesmo, o que resulta em um corpus social anti-natural, onde tentamos viver o paradoxo insolúvel de uma sociedade sem grupo. Daí a dificuldade evidente destes profissionais ao tentar "explicar" fenômenos como a violência urbana, o aumento no tráfico de entorpecentes, a propagação das seitas evangélicas, as variações da moda, os problemas de delinqüência juvenil ou o consumo de literatura com temas esotéricos na atualidade (cf.: SILVA, 1993b).

E quando convocados, os mesmos tem sempre um comentário oportuno a fazer. É impensável ficar em silêncio, prova de sua incapacidade em articular algo. Ele se coloca, de fato, como um "articulista" dos fatos e explicações tidas como mais sensatas. Não pode dizer simplesmente que nada sabe do que lhe é perguntado. Sempre que é inquirido, algo deve ser estipulado como "razão" do fenômeno em apreciação, pois ele é um "profissional da palavra".Este horror ao silêncio nos faz recordar a perspectiva de FREUD (1913), que percebeu e relacionou a mudez a uma representação da morte em diversos mitos.

Deste modo, um outro saber não pode ser buscado na tentativa de entender o que está em pauta. Ao dizer que sabem o que na verdade desconhecem, e sua palavra é conclamada e aclamada como sendo a mais eficaz, deixam para o ouvinte a sensação de ter entendido (ainda que minimamente) o que se passa. E tendo em vista que o conhecimento jornalístico, de modo recorrente, busca mais o evento que a verdade, o público padrão da mídia, que nada mais procura do que aquilo que vê na televisiva intimidade de seu lar, recebe o que é dito numa entrevista - presumivelmente por um especialista - como algo que deve merecer total credibilidade.

Os ritmos e ritos do mundo contemporâneo parecem tornar os indivíduos propensos a aceitar este saber fragmentado. Pois com pouco tempo para "digerir" as informações que lhe são oferecidas, sua apreciação se dá nos termos de uma anima mínima (LYOTARD, 1996), onde somente o superficial os atinge. O empobrecimento cultural daí resultante é inevitável, pois onde tudo é "engolido", nada ou quase nada é assimilado verdadeiramente. A parcialidade de cada discurso "ingerido" cria uma ilusão de totalidade enciclopédica explicativa, ao estilo das revistas "científicas" do público jovem.

A Adolescência emerge, inclusive, como a época da liberdade e da criatividade, caracterizando um ideal fartamente divulgado pela mídia em associação com os "especialistas" de plantão. A juventude passa a ser vista como a fase de quem tem as respostas, dos que sabem viver, porque estão "ligados", "antenados", informa(tiza)dos, globalizados. Nesta visão idealizada, não se valoriza o esforço ao longo do tempo, e tudo tem de ser muito rápido, novo e imediato. Isto é patente, por exemplo, no último comercial produzido por uma das maiores operadoras de telefonia do país, onde toda a genialidade e todo o esforço criativo das obras de juventude de Isaac Newton, Ludwig Van Beethoven, William Shakespeare e Castro Alves, não é nada perto das facilidades que a telefonia móvel oferece ao jovem. Dono de um excesso de tempo livre, ele, segundo a operadora, não precisa mesmo fazer nada, pois o telefone promete fazer tudo por ele e para ele.

Este modo de relação mais com objetos/coisas que com pessoas, revela um valor oculto, uma moral oculta, que preconiza a independência total do indivíduo diante do mundo social vivido. Valor que é falso, pois não existe sujeito sem um objeto que o espelhe e o reconheça (DOIN, 1989).

Diante destes elementos, os "especialistas psi" perdem, sobretudo, a oportunidade de fazer o ouvinte compreender que toda questão social é inevitavelmente também pessoal, tendo em vista que "o mundo real é refratado em experiências familiares e pessoais, que dão cor ao modo como o percebemos" (LASCH, p. 49), mas elas não são redutíveis umas as outras. Poderiam, a par deste fato, relacionar as experiências de sofrimento trazidas ao debate enquanto experiências de vazio interior, de solidão e de inautenticidade, como sendo originadas das condições hostis que invadem a sociedade, dos perigos e incertezas que nos cercam (violência, corrupção, falta de recursos energéticos) e criam condições para uma perda de confiança no futuro. Mas isso tiraria o brilho da festa que é o encontro para "debates" na mídia. And The Show Must Go On!

A Perícia em Jogar e Ensinar o Jogo da Sobrevivência

A leitura do social realizada de modo rápido, ao sabor das novidades e sem esforço, costuma gerar a relativização de tudo em uma nova Cultura do Narcisismo, que promove a ilusão de que todas as possibilidades sociais podem coexistir. A "pedagogia" moderna apresentada em cada nova entrevista dos "especialistas psi", termina por refletir a autoconcepção mutante desta cultura, onde tudo está sempre mudando. Nela tudo é diversidade e singularidade, e o sujeito social, guiado certamente pelas boas intenções dos profissionais que lhe indicam o caminho, começa a tentar "desenvolver um respeito informado (isto é, saudável) pelas contradições básicas soberanas e sem solução, que fazem dele o ser humano singularmente complicado que é" (RIEFF, p. 69).

O discurso veiculado pelos "especialistas psi" parece constituir uma tentativa de apresentar uma outra racionalidade, que possa "sobreviver" à descentração provocada pela descoberta do Inconsciente. A contínua ambivalência entre as forças do desejo e da realidade origina uma tomada de posição que pode ser entendida como a assunção de um caráter estável numa época instável.

Se postula que um sujeito tolerante a respeito de suas próprias ambivalências pode tolerar também as ambigüidades de uma época turbulenta e confusa. Atitude que pode, obviamente, capacitá-lo a melhor se conduzir neste meio, mas que pode originar uma atitude de aquiescência deliberada e generalizada, onde tudo que surge, que é novo, que é instável, tem importância e razão de ser. Não existindo verdadeiro ou falso, nada pode ser imputado e nada deve gerar culpa, pois a clareza a respeito de si mesmo e de suas ambivalências é mais valorizada que a devoção a um ideal como modelo de conduta correta.

Um indivíduo sem culpa passa a cultivar o desapego, sendo mais espontâneo e autônomo na busca de uma vida boa, relacionada ao bem estar pessoal, não se preocupando com os problemas e privações da boa vida, onde se exige a preocupação com questões éticas, com o que é melhor para todos os indivíduos.

Percebe-se claramente que o discurso dos "especialistas psi" enaltece a capacidade da prudência e não preconiza quaisquer princípios. A diversidade de pontos de vista é aceita como estando acima e além da arbitragem de qualquer meio intelectualmente válido, seja ele de ordem doutrinária moral ou filosófica analítica. O pressuposto subjacente ao seu discurso parece resumido nas palavras de RIEFF (ibid., p. 72): "sobreviva, resigne-se a viver dentro de seus meios morais, não sofra fracassos gratuitos numa busca fútil de alturas éticas que não existem mais - se é que alguma vez existiram".

Não se municiando de princípios, e estando sempre disponível, sempre disposto a participar, a jogar o jogo, aceitando responder a todas as perguntas, mesmo as mais absurdas e chocantes, o "especialista psi" revela-se capaz de fazer todas as concessões sobre o assunto, o tempo de resposta e o nível de abordagem do tema imposto, aceitando todos os compromissos e comprometimentos para granjear os benefícios da notoriedade narcísica que a mídia lhe oferece, o prestígio no seio dos órgãos de impressa e convites para conferências lucrativas.

Formulando tomadas de posição simples em termos claros e brilhantes (como fogos de artifício) e evitando se embaraçar com saberes complexos, ele revela sua competência em jogar e seu interesse pelos jogadores, enquanto permanece sendo indiferente multiplicador da indiferença por aquilo que está em jogo.

A fuga para o contato virtual, na derradeira faceta do desenvolvimento tecnológico midiático, é apenas um dos fatores sociais mais evidentes do abandono da sociabilidade real por um arremedo de relação, um simulacro, bem ao gosto dos filhos de uma geração criada diante da "Máquina de Narciso", de que nos fala SODRÉ (op. cit.). Talvez constitua mesmo um sintoma que faz parte do universo cultural do indivíduo, conforme a cultura possa ser entendida como a matéria bruta dos sintomas (DEVEREUX, 1978), numa desordem, não apenas psíquica, que manipula o material cultural de acordo com a sua natureza.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre (1997), Sobre a Televisão, Rio de Janeiro, Zahar.

BOURDIEU, P. & CHABOREDON, J. (1972), Le Métier du Sociologuie, Mouton, Paris.

DESSUANT, Pierre (1992), O Narcisismo, Rio de Janeiro, Imago.

DEVEREUX, George (1978), "Culture and Symptomatology", in Ethnopsychiatica, 1.2, La pensée sauvage éditions, France.

DOIN, Carlos (1989), "Espelho e Pessoa", in MELLO FILHO, J. de, O Ser e o Viver, uma visão da obra de Winnicott, Porto Alegre, Artes Médicas, pp. 147-173.

FREUD, S. (1913), "O Tema dos Três Escrínios", in Edições Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XII.

KOHUT, Heinz (1988), A Psicologia do Self e a Cultura Humana, Porto Alegre, Artes Médicas.

LASCH, C. (1983),A Cultura do Narcisismo, Rio de Janeiro, Imago.

LYOTARD, Jean-François (1996), Moralidades Pós-Modernas, São Paulo, Papirus.

RIEFF, Philip (1987), O Triunfo da Terapêutica, São Paulo, Brasiliense.

SENNETT, Richard (1988), O Declínio do Homem Público: as Tiranias da Intimidade, São Paulo, Companhia das Letras.

SILVA, Gilberto Lucio (1991), "A Ideologia da Intimidade no Brasil", Anais do V Encontro de Ciências Sociais do Nordeste, Vol. I, Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco, Recife, pp. 269-278.

SILVA, Gilberto L. (1993a), "Um Perfil dos Psicólogos da Segunda Região", Anais da 45a. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, UFPE, Recife, p. 886.

SILVA, Gilberto L. (1993b), "A Onda Mística: o Surgimento dos Magos Modernos", Anais da III Reunião Regional de Antropólogos do Norte e Nordeste, Belém, PA.

SILVA, Gilberto L. (2001), "A Psicologia do Senso Comum e o Discurso no Campo Jornalístico", Anais do X Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste, UFBA, Salvador.

SODRÉ, Muniz (1990), A Máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil, São Paulo, Cortez.

*Trabalho apresentado na VIII Jornada de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica do Recife, 27 a 29 de setembro de 2001.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar