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Atendimento no Serviço Público:
O Papel do Profissional de Saúde Mental*
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Gilberto Lucio da Silva**

 

Durante a década passada se iniciou, a partir do Rio de Janeiro, um processo que para muitos representou uma versão renovada do pragmatismo. Este processo buscou repensar a prática de Psicoterapia nos ambulatórios de Saúde Pública em que atuam profissionais de saúde mental.

COSTA (1989), apontou a necessidade de refinar o instrumental de intervenção e descobrir categorias e noções novas na prática psicoterápica adotada nas redes públicas. Procurou desde então, se afastar das posturas essencialistas diante da doença, e do etnocentrismo implícito em noções como a de indivíduo, psicoterapia, atendimento psicológico às classes trabalhadoras, projeto em psicoterapia, entre outras. E buscou investigar o que representava psicológica e psiquiatricamente a doença dos nervos, esta forma do adoecer mental, disseminada nas classes populares que freqüentam os ambulatórios públicos.

Sua pesquisa o levou a assumir a noção de doença dos nervos como uma estratégia de sobrevivência, a partir de um esquema cognitivo-representacional, típico das populações de baixa renda, às voltas com problemas de sobrevivência física, psíquica e social. Verifica, a partir daí, que: não existe doença independente de seu modo de expressão; a idéia de causalidade faz parte da maneira como a doença se constrói; e a representação da causalidade é indissociável da subjetividade que a produz.

O psicoterapêuta no serviço de atendimento público comumente se desorienta quando se defronta com razões que seriam, a princípio, meras racionalizações que um dia deveriam se evaporar. Mas, à espera da revelação de um trauma infantil, dos pais insuficientemente bons, o profissional vê pouco a pouco seus clientes desistirem. Diante disto, costuma lhes sobrepor o carimbo da resistência, que é sempre do cliente, à situação que julga repetitiva.

Não obstante, queixas do tipo "pancada na cabeça", "convulsão quando criança", "menstruação que não veio na hora certa", são afetos e representações de uma tonalidade cultural diferente, mas nem por isso menos profunda que a expressão dos afetos pelo casal parental esperada invariavelmente pelo psicólogo.

Para COSTA (idem), o próprio enquadramento, na sua análise um dispositivo social, pode não entrar em sintonia com a experiência cultural de muitos clientes. Sobre isto, ele diz: "Desde o início o cliente do serviço público, além da consciência de sua doença, tem bem clara a consciência de seu estatuto de cidadão doente e da diferença cultural que o separa do terapeuta: ele vai ao consultório para falar de seus problemas a alguém que usufrui de mais diretos civis que ele; que pertence a uma classe social superior a sua; que se veste, fala e se porta de um modo que não é o seu; que ele não escolheu para ser seu médico e vice-versa; (...) a quem ele vê como lhe prestando um favor, quando é bem atendido; (...)".

Geralmente, as alegações de "falta de dinheiro para a passagem", "ocupações domésticas" e imprevistos de toda ordem são fenômenos entendidos pelo psicólogo como resistência ao tratamento. Mas por que não questionar a necessidade do vínculo obrigatório entre o tratamento e tal tipo de freqüência? A este respeito, diz COSTA: "O espaço psicoterápico pode funcionar como um lugar de referência que pode ser alcançado quando o cliente dele tem necessidade", e conclui: "se o terapeuta e o cliente fossem julgados pela teoria, esta diria: o cliente tem razão, inconsciente não bate ponto".

Pois o fundamento último da psicoterapia não pode ser as técnicas, mas a criação da possibilidade de que o inconsciente se manifeste e produza seus efeitos.

Ao final, ele aponta a necessidade de optar por outro modelo de comunicação, uma outra fala, que supõe, talvez seja atingida mais adequadamente na abordagem realizada no trabalho com grupos.

Para BEZERRA JÚNIOR (1989), o sujeito que sofre da "doença dos nervos" padece na sua singularidade. "É a sua vida", diz, "que está em questão: as zonzeiras, as dores que sobem e descem, os nervos que pulam, a vontade de quebrar tudo e todo o discurso da chamada doença dos nervos remete ao sentimento de fracasso do sujeito em lidar consigo próprio e com suas circunstâncias".

O sujeito sabe, ao nosso ver, que aquilo que o aflige não é uma doença propriamente física, e ele não procura nem o padre nem o médico clínico para destinar esta sua demanda. Ele quer ser ouvido na sua especificidade: seu problema é o "nervo", algo a meio caminho entre o corpo e o espírito. O mesmo autor afirma que, no ambulatório onde atuava, os clientes que durante anos repetiram sem cessar estas queixas, mudaram seu discurso quando lhes foi oferecida uma escuta diferente. Esta escuta não esperava a priori por um vocabulário psicologizado e intimista, mas procurava estar atenta àquilo que na superfície do "nervoso" revelava a trama pulsional oculta.

Se, por um lado, devemos defender o acesso universal aos melhores recursos terapêuticos de que dispomos, por outro, corremos o risco de nos tornarmos agentes de um processo de psicologização do cotidiano. Não podemos, isto sim, é deixar de tentar produzir novos horizontes para a prática que realizamos. Seguindo a trilha mesma dos primórdios da Psicanálise, onde, nas palavras de JOEL BIRMAN (1978), "se devolveu à loucura o poder de falar, e um discurso teórico que articula a compreensão de sua insensatez".

REGINA HERZOG (1988), observa que à "ordem do organismo" na Psiquiatria, a partir do século XX, acrescentou-se uma outra ordem, a "da biografia". Ou seja: "A enfermidade tem um sentido além de uma causa, para quem a sofre, que se insere na trama de uma história, marcada nos seus vários registros libidinais".

Nos defrontamos agora com o como fazer para que esta história seja captada e expressa, em seus próprios limites, na dinâmica do atendimento oferecido às classes trabalhadoras. Grande parte dos autores consultados afirmam que só a modalidade de intervenção grupal permitiria "uma forma de estender os serviços psicológicos a um número maior de pessoas que procuram a saúde pública" (CARVALHO & SILVA, 1990).

Esta clientela traz, aliada às dificuldades emocionais, problemas que remetem ä sua condição material de vida, tais como falta de trabalho, moradia, más condições de alimentação, exposição à violência, entre outros. Ao profissional de saúde mental é destinada a tarefa de, muitas vezes, "adaptar" os conhecimentos psicológicos ao aspecto educativo. O seu objetivo invariavelmente é a "conscientização" da clientela acerca de suas condições de vida.

Sobre estes pontos temos a observar que nos parece claro que o atendimento em grupo deve, sim, ser realizado quando ele for a melhor indicação técnica para o caso e não ser usado, apenas, para dar conta da grande demanda. E a melhoria da saúde mental da população em decorrência da educação psicológica recebida na rede pública, não está ainda objetivamente constatada.

Pois não é, grande novidade, o conhecimento – entendido em nível consciente – que possibilita mudanças nos processos afetivos do indivíduo. Uma experiência realmente corretiva tem de ser vivida na dimensão emocional e relacional. O paciente não sofre por suas recordações, que podem ser recuperadas num insight meramente cognitivo, mas pela incapacidade de confrontar-se e resolver problemas atuais, conforme nos salientou FRANZ ALEXANDER (cf. LEMGRUBER, 1984, p. 14).

Sem deixar de reconhecer os inegáveis méritos da prática das psicoterapias grupais, quando respaldadas na ciência e não em aspectos circunstanciais, queremos afirmar uma opção pelo atendimento psicoterápico individual que tente observar justamente as condições que nos traz este cliente.

Visamos um atendimento que busca questionar suas noções de doença, expectativas em relação aos resultados do tratamento e ao próprio Modus operandi da terapêutica. Isto implica em ouvir nosso cliente, que localiza sua doença em partes do corpo, que explica com múltiplas determinações (organicista, hereditária, educativa, sobrenatural) a causa do adoecer, e que exige a apreciação da idéia de saúde em uma dimensão mais imediata.

Para este atendimento se faz necessário que cliente e terapeuta compartilhem alguns elementos básicos para o processo. Ambos devem perceber um problema no conjunto de sintomas que afligem o cliente; que existe um sentido oculto, a ser procurado no processo, por trás da aparência imediata do quadro sintomático; que esta procura de sentido e o possível reordenamento simbólico daí advindo, está centrada na biografia do sujeito, que pode reconstruir suas experiências vitais; e que o terapeuta pode ver um campo de possibilidades como resultado do processo, deixando ao cliente a escolha e o momento da escolha.

Mesmo concordando nestes pontos, terapeuta e cliente podem esbarrar no problema da comunicação entre a linguagem da intimidade do psicólogo e a percepção do caráter emocional de seus conflitos por um cliente que o traduz de modo genérico (nervoso, zonzeiras, agonia) e localiza no corpo os sintomas.

Ao longo destes sete anos trabalhando no Serviço de Psicologia em unidades ambulatoriais no Setor Público, temos notado uma constante na apercepção que os clientes têm de nossa tarefa na sua busca pela saúde física e mental.

Para boa parte, somos o "doutor de conversar", diferenciado da maioria dos médicos pelo maior tempo dedicado a escuta, no ato terapêutico, ao invés de protagonizar nas palavras de BEZERRA JÚNIOR (idem): "Um mecânico e interminável ritual de prescrição de remédios".

Este "doutor" olha no olho do seu paciente, instaurando uma aliança que o transporta da condição de espectador para a de co-autor do projeto de sua saúde, ou seja, se põe a atuar com um cliente a quem presta um serviço, e não o consulta, entrevista.

Este "doutor" não coloca a medicação como intermediário, o fator da cura, que é objetiva e sempre está correta. Este viés faz crer que o paciente é que faz errado, não tomando direito, na hora e quantidade prescritas. Este "doutor" convida ä reconstrução dos significados, do que o indivíduo acha que causou o problema, como fica quando adoece, como acredita que vai melhorar, que ganhos tem em ficar doente, o que é a cura para ele.

Para outra grande parte, somos alguém religioso, paciente até o extremo – que eles vivem testando para ver onde é. Acreditam que devemos viver alheios às coisas mundanas, frios, distantes, inacessíveis, mas somos alguém que tem as respostas, ou pelo menos um certo saber.

Para os clientes temos uma memória prodigiosa. Devemos ter, imaginam, centenas de clientes – a julgar pelos outros médicos que atendem às vezes, 20, 30 pessoas em seu horário. E para eles, espantosamente, lembramos de suas queixas que nos contaram há uma semana, um mês, um ano, de suas histórias de vida, de quantos filhos têm. Lembramos, em princípio – que espetáculo, este doutor! – de seus nomes.

Crendo-nos ligados a religião, é interessante notar que nunca pertencemos a igreja de que fazem parte. Se o cliente é evangélico, diz que somos da Igreja Católica, se é católico, acredita que somos uma espécie de rabino. Somos sempre o outro que partilha de seu bem maior, que para ele é a crença em Deus, seja em que religião for.

Certa vez uma cliente perguntou de pronto: "o senhor acredita em Deus?", e respondemos sem hesitar que acreditávamos muito que as pessoas podiam ajudar umas as outras. Esta cliente pareceu ficar satisfeita com a nossa resposta, pois nunca mais voltou a tocar no assunto, mesmo tendo ficado no processo por muito mais tempo.

Seria oportuno lembrar com PETER FRY que são múltiplas as respostas à aflição buscadas pelo ser humano, e nas camadas populares, maior parte da demanda que nos procura, são permanentes as esperanças depositadas na fé. Nos parece vital que aprendamos a respeitar as crenças de cada paciente, embora às vezes vejamos claramente as conseqüências danosas de um excesso de dogmas e preceitos religiosos na apercepção que o indivíduo tem de si mesmo. Tentamos, é claro, sempre que possível, relativizar e flexibilizar o que causa dano à auto-imagem do sujeito, até pela elaboração do que ele percebe de positivo na nossa atitude que julga partilhar aquilo que lhe parece ser o bem maior, às vezes o único significado que o sustenta.

E já que falamos em dogmatismos, recordemos com LEMGRUBER (1984) que a Psicologia Científica desde seus primórdios, no final do século dezenove, trilhou o caminho da substituição do apelo à autoridade do dogma, no conhecimento, por um apelo à observação.

No que tange ao conceito de Psicoterapia, instaurado por FREUD, este preceito científico e ético da observação norteia uma relação em que um dos participantes deve estar empenhado em ajudar a um outro na sua saída do sofrimento. O que é o sofrimento e qual a saída são parte de um movimento que é único a cada pessoa em cada relação.

Nos termos da Psicoterapia de Base Existencial, podemos definir a patologia mental como ameaça a liberdade enquanto função da humanidade da pessoa. E até os mais ortodoxos lacanianos, concordariam que o "delírio da autonomia", presente em qualquer neurótico a partir da repressão da função paterna, é fundador do "eu", da sujeitividade, instaurador da troca e da possibilidade da Cultura.

O nosso cliente, no Serviço Público, já não tem o mesmo espectro de escolhas disponíveis a uma classe mais favorecida economicamente. É algo de difícil aceitação, mas é corriqueiro percebê-lo na prática clínica no ambulatório. Às vezes, realmente, lhe falta a passagem para vir.

Outras dificuldades de acesso podem surgir, como por exemplo, as listas de espera que podem demorar para muito além de uma crise e o reduzido número de profissionais disponíveis e aptos a lidar com o seu problema. Em especial, se interpõe à ele a falta de uma perspectiva mais global, que possa percebê-lo enquanto totalidade biopsicosocial, que o observe antes de colocar sobre ele a grade de correção diagnóstica, que, em suma, interaja com ele.

Em outro artigo, COSTA (1989b) aponta a divisão burocrática do saber entre os trabalhadores de Saúde Mental que parece incapacitá-los para conviverem de modo mais produtivo no sentido de auxiliarem as pessoas. Tal divisão como que retalha o psiquismo ideal conforme áreas de competência e atribuições técnicas. Para este autor, dever-se-ía pensar na possibilidade de criar um saber que possa ser exercido por todos os membros da equipe, conforme o momento do cliente, da instituição, e da necessidade da história dele.

Posto que, independente da abordagem teórica da personalidade que utilize o profissional de saúde mental, o que o caracteriza ante o cliente é sua atitude de escuta diferenciada, de ênfase nas particularidades da história de vida do indivíduo, de sua postura ante a expressão de sentimentos e percepções pelo cliente.

Conforme já apontado anteriormente, é grande o número de desistências no atendimento a população de baixa renda. Esta evasão talvez deva ser atribuída , insistamos, menos a uma resistência ao exercício da introspecção que ao fato de que o nosso programa de saúde mental pode não ser adaptado a características psicossociais da população. WINNICOTT (cf. MELLO FILHO, 1989, p.175) já preconizava que se devia fazer análise quando a demanda era por análise, se o cliente dela não necessitava ele se punha a ensinar, ao invés de interpretar.

E como é necessário colocar seriamente para si mesmo a possibilidade de agir psicopedagogicamente no atendimento a população que busca o serviço de um psicólogo na Saúde Pública. Muitas vezes encontramos clientes sem noções básicas de cuidados relativos a saúde e higiene pessoal. Devemos calar e esperar que outro profissional o faça? Talvez a Assistente Social deva ser mais psicoprofilática, e dizer a uma mãe de primeira gesta que deve insistir na amamentação de seu filho, a um homem com queixa evidente de problemas na qualidade de sua ereção, que procure também um especialista na área, que oriente a uma jovem de dezesseis anos que está em prantos por ter engravidado sem saber como.

O cliente já nos chega imobilizado em uma auto-imagem rígida e que não experiência o que vive no momento. Acreditamos que sem obter informações adequadas ser-lhe-á mais difícil dar o salto para sua liberdade, para sua escolha.

Avaliamos que o espaço do profissional de saúde mental, deva ser no hospital, no centro ou unidade de saúde, um lugar de afetividade, onde se fala e se é ouvido, onde é possível se emocionar e não há pressa na prescrição de algo para calar o medo e a dor. E pode ser igualmente um local para exercitar a criatividade, onde o cliente pode testar suas crenças e suas atitudes diante de si e do outro.

Pois é sabido que o pensamento estruturante da instituição hospitalar, em geral, é o modelo médico. Para o psicólogo isto pode representar uma "camisa de força" esterilizante. BELKISS LAMOSA (1987) afirma que mesmo interagindo freqüentemente com o médico na equipe assistencial, pela natureza comum de seu objeto, o continuum saúde-doença mental, o psicólogo ainda não nomeou a que veio. Na maioria dos casos, nem mesmo é inequivocamente reconhecido como indispensável membro da equipe.

Geralmente encontramos profissionais de saúde mental, lado a lado, no ambulatório, sem coordenar a contento suas atividades. Há sim, uma multi e até uma pluridisciplinariedade, mas os objetivos são divergentes. Existe certa cooperação, mas esta é tolhida pela ausência de uma axiomática mais geral que norteasse os limites e o objetivo final do tratamento. Não há, de fato, a tão aclamada interdisciplinaridade.

Na nossa escuta percebemos o quão faz falta ao cliente uma observação mais acolhedora de parte de seu médico. "Ele nem olhou para mim", dizem alguns clientes que passam pelo psiquiatra.

Gostaríamos de alertar, entretanto, para que não se pense que buscamos idealizar o nosso fazer. E é tão fácil achar que fazemos muito, deixando de olhar para nossas próprias limitações. Para cada cliente é de regra dispormos de um tempo de entrevista máximo de trinta minutos na rede pública, e temos além disso uma cota de produção à atingir, em média oito clientes por dia. Para atingi-la, em todos os sentidos, havemos de experimentar, também em nós, mudanças.

Não nos serve a técnica clássica associada a uma maior neutralidade, associação livre e o trabalho na transferência. A instituição tem pressa, o paciente desta instituição, a princípio, também a tem. O tempo médio de permanência de oito meses, pode ser assim interpretado.

Isto quer dizer que devemos aceitar o estabelecido? Talvez em parte. Acomodar-se jamais, pois seria o fim do lugar do psicólogo enquanto um possível espaço de afetividade e criatividade.

A Psicoterapia Breve nos acena com uma abordagem mais pragmática: o terapeuta é mais ativo, não se abstém em uma pretensa neutralidade, focaliza, isto é, delimita o problema a ser trabalhado no processo, através de avaliação e planejamento prévios, e busca estabelecer uma aliança com o cliente. Estes são elementos que, sabidamente, facilitam o trabalho nas classes populares. Isto não quer dizer que a todo cliente devamos oferecer o mesmo procedimento técnico. Se faz necessário sempre a avaliação caso a caso.

Observamos que nossa clientela no ambulatório nos é encaminhada por várias especialidades médicas, em especial pelas clínicas psiquiátrica, dermatológica e ginecológica. Outro grupo provem da clínica médica e da psicologia infantil, pois é grande o número de casos em que, se abordando a problemática da criança se descobre ser dos pais a maior demanda por uma escuta adequada.

O diagnóstico dos casos de patologia mental mais graves (psicoses), é feito pelo próprio médico psiquiatra. Porém, a grande maioria dos clientes nos chega com uma hipótese diagnóstica à esclarecer. Procuramos fazê-lo observando qual a posição em que este cliente nos coloca, revelando na situação de entrevista o seu modo de interatuar, suas atitudes básicas no contato com o outro.

Em muito facilita o trabalho de verificar o modo como está organizada a personalidade do cliente, a participação em Grupo de Intercontrole, no qual ocorre, semanalmente, a apresentação e discussão dos casos atendidos. Este grupo se revelou um modo eficaz de avaliação do processo de cada cliente e de como este processo se desenvolve também no terapeuta que o acompanha.

Muitas vezes nos fica claro, logo nas primeiras entrevistas, que o cliente seria melhor favorecido se participasse paralelamente de processo de psicoterapia grupal, ou de oficina terapêutica, realizada na própria Unidade onde o atendemos. Buscamos então, trabalhar com ele esta possibilidade.

No momento atual, estamos acompanhando 36 casos, sendo 13 (36,1%) do sexo masculino, e 23 (63,9%) do sexo feminino. É uma população predominantemente mais jovem, estando em sua maioria abaixo dos trinta e cinco anos (69,4%). Quase a metade (47,2%) se encontra em atendimento há menos de seis meses.

Desde 1993, ano em que começamos a atender no atual ambulatório de saúde mental do Centro de Saúde Albert Sabin, mais de trezentos pacientes procuraram pelo atendimento em nosso turno.

No modelo atual de aprazamento, contratamos um período de um ano com o cliente (em torno de cinqüenta sessões), que é avaliado periodicamente e, quando necessário, é renovado por mais um ano após seu término. Poucos são os casos em que o cliente mantém um processo terapêutico por mais de dois anos no ambulatório. O tempo médio de permanência fica em torno de oito meses, ou seja, mais de quarenta sessões, conforme demostra nossa prática.

Com respeito a nossa marcação, temos, em princípio, de objetivar para todos os profissionais da Unidade o método peculiar de contratualizar nosso trabalho. Para começar, controlamos nossa agenda, fazendo as marcações. Junto ao cliente havemos de clarificar os objetivos, os métodos e o material com que trabalhamos. Para ele, quase sempre, tudo que propomos é novidade. A utilização do ambiente, a periodicidade semanal, a exigência do sigilo são elementos totalmente diferenciados da prática clínica que ele geralmente vivencia. Porém, é importante frisar que o cliente tenta se adequar a esta configuração peculiar, pois ali ele encontra a possibilidade de um lugar que faz eco à algumas de suas necessidades e motivações.

Lembramos, por exemplo, que, logo no início de nosso trabalho na Unidade, eram muito freqüentes as interrupções nas entrevistas, devido a total falta de informação de toda a equipe de apoio quanto ao caráter privado do atendimento. Agora, os recados são deixados com a atendente ou colocados por escrito por baixo da porta do consultório.

Clientes novos são orientados e solicitados a deixar algum telefone para contato, a fim de podermos contatá-los assim que houver possibilidade de realizar a entrevista inicial para avaliação.

Tem-se contratualizado com os clientes a questão da periodicidade semanal, e se colocado um limite de três faltas consecutivas, sem qualquer comunicação por parte do cliente, para que ele seja considerado desistente. É importante frisar aqui, que devemos observar até onde o cliente deseja ir, e não impor nossa demanda.

Os atendimentos realizados são devidamente registrados no prontuário geral da Unidade, onde são colocados o número de sessões mensais com aquele cliente, as respectivas datas de cada uma das entrevistas, a queixa inicial do cliente e o encaminhamento tomado. Evita-se colocar dados sobre o processo, alertando para a existência do caráter sigiloso dos conteúdos trabalhados, que só sob a explícita concordância do cliente podem ser acessados. Existe para tanto, um arquivo privativo do psicólogo, onde se encontram todos os casos devidamente fichados.

Apenas nos casos em que está envolvido o risco de suicídio do cliente, se procura trabalhar junto a ele a necessidade de contatar alguém de sua família e o médico que o acompanha. Coloca-se para ele que o nosso contrato visa sua saúde: é um contrato de vida. Todavia, não é feita uma valorização moral da vida, mas evitamos compartilhar com ele da erotização da morte.

O registro no prontuário se justifica por este ser o veículo primordial para troca de informações entre os profissionais, indicando o percurso do paciente dentro da instituição.

Outro dado característico de nosso atendimento é que em torno de cinqüenta por cento de nossa clientela no momento fazem uso de psicofármacos, sob orientação médica. Estes são administrados com maior freqüência nos casos em que a hipótese diagnóstica com que trabalhamos, junto à psiquiatria, é de Esquizofrenia. Estes clientes fazem uso constante de anti-psicóticos, havendo redução em alguns casos após o ingresso no acompanhamento psicoterápico. Atualmente, quatro clientes estão sendo atendidos neste regime, três só conseguem controlar melhor suas alucinações (predominantemente auditivas), quando utilizando regularmente a medicação prescrita.

Nas Distimias (44,4% do total), o uso de anti-depressivos é verificado em 56,2% dos casos, ou seja, em nove dos dezesseis clientes. Temos ainda, seis casos (16,7%) em que trabalhamos com Distúrbios de Personalidade, cinco casos (13,9%) de Distúrbio de Ansiedade Generalizada, quatro casos (11,1%) de Disfunção Sexual, e um caso caracterizado como Distúrbio Obsessivo-Compulssivo (2,8%). Os clientes com Disfunção Sexual (impotência, ejaculação precoce e frigidez) e Distúrbio de Personalidade não se apresentam usando psicofármacos.

Se a nova compreensão da plasticidade do cérebro humano permite a intervenção através de potentes e eficazes medicações modernas, é extremamente relevante frisar que não tratemos somente o órgão, mas sim a pessoa como um todo. A divisão das Clínicas, ainda que, a pouco metros umas das outras, não contribui para a organização de um Setor de Psicoterapia, que atuaria de modo global e integrado. O modo de funcionamento atual coloca nas mãos de cada profissional a responsabilidade de fazer as pontes em proveito do cliente.

A utilização do diagnóstico psiquiátrico, que se estabelece a partir do conjunto de sintomas, não deve ser automaticamente adotado pelo psicólogo. Há muito se busca, dentro da própria Psiquiatria, substituir esta abordagem pela efetiva apreciação do paciente em termos psicodinâmicos, existenciais e estruturais.

A queixa principal de nossa clientela há de ser cotejada com o modo dela nos expor seu problema e a relação que estabelece com ele, conforme apontamos anteriormente. Sintomas podem ser máscaras que escondem a verdadeira face da problemática do cliente. Atuar sobre eles pode significar uma luta mais exaustiva que a "análise interminável" de FREUD.

Para encerrar, procuramos estabelecer alguns critérios de alta, a ser avaliados em conjunto com o cliente, que podem ser resumidos em:

  • mudança de atitude do cliente com relação aos sintomas psicológicos e/ou físicos;
  • relações interpessoais mais adaptadas com pessoas chave no ambiente do cliente;
  • melhora na auto-estima;
  • desenvolvimento de novas atitudes;
  • aumento da auto-compreensão;
  • melhora no desempenho na escola e/ou no trabalho.

Se é verdade que, como já foi dito certa ocasião, todo recurso técnico é, antes de tudo, recurso pessoal, humano, o lugar do psicólogo no atendimento realizado no Serviço Público talvez possa criar certos momentos que possibilitem a emergência de outros modelos de identificação e de relacionamento. Modelos que são até mesmo anteriores aqueles comumente utilizados na Área de Saúde Pública, em nome da produtividade e do pragmatismo. Talvez somente assim, possamos atingir as bases mesmas da interação propriamente humana: a comunicação e a afetividade.

BIBLIOGRAFIA

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BIRMAN, J – “Demanda psiquiátrica e saber psiquiátrico”, In: Sociedade e Doença Mental, Campus, Rio de Janeiro, 1978, p. 58.

CARVALHO, C.V. & SILVA, L.C. – “Atuação de Psicólogos na Saúde Pública: dificuldades e possibilidades de trabalhos com grupos”, In: Psicologia, Ciência e Profissão, no.2-3-4/90, p. 20.

COSTA, Jurandir Freire – Psicanálise e Contexto Cultural, Campus, Rio de Janeiro, 1989.

COSTA, J.F.(1989b) – “Como se constrói a subjetividade das classes populares?”, In: Psicologia, Ciência e Profissão, no. 2/89, p.07.

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LAMOSA, Belkiss – O Psicólogo Clínico no Hospital, Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade de São Paulo, 1987.

LEMGRUBER, Vera – Psicoterapia Breve: a Técnica Focal, Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.

MELLO FILHO, Júlio de – O Ser e o Viver: uma visão da obra de Winnicott, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.

*Trabalho apresentado na Jornada Hospitalar: Realidade Interdisciplinar, Olinda, PE, 16 e 17 de agosto de 1997.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar