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Abordagem Centrada na Pessoa:
Uma Perspectiva Existencial.*
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Gilberto Lucio da Silva**

 

Thomas Giles (1989), através do seu excelente estudo dos principais filósofos existencialistas e fenomenólogos, entre eles Sören Aabye Kierkegaard, nos coloca na posição mais elementar para apreender a essência da Abordagem Psicoterápica desenvolvida por Carl R. Rogers e seus colaboradores, nas últimas seis décadas. Segundo a perspectiva do autor, aquele filósofo argumentava que “os dados puramente empíricos são insuficientes para constituir a História, porque apresentam apenas o fluxo da experiência sem incluir a presença criativa do Indivíduo, que é indispensável para que haja História” (p.14) (grifo nosso).

Se colocarmos, numa perspectiva psicológica, a história individual em lugar da “História”, guardando as devidas proporções, teremos exatamente a postura filosófica de um terapeuta centrado no cliente. Nada mais correto, portanto, que identificar o trabalho desenvolvido pelo psicólogo americano entre as chamadas Psicoterapias de Base Humanista. Estas correntes da ciência psicológica de caráter humanista em muito são devedoras, enquanto um fator de elucidação, ao pensamento dos filósofos existencialistas.

De igual modo, Franz Victor Rudio (1975), aponta em Rogers um crítico feroz, na medida em que um autêntico “rogeriano” pode sê-lo, do “computador” humano, o homem racionalista. O psicólogo centrado na pessoa, do mesmo modo que o filósofo existencialista, percebe que “há entre o pensamento e a existência uma luta até a morte, visto que o ser histórico, a existência, não se deixa pensar” (p.14), e que “o mundo está repleto de homens que conseguiram êxito utilizando seu potencial em função de referenciais externos, “só que não conseguiram ser eles próprios”, objetivo último – e contínuo – do processo psicoterápico rogeriano.

Em diversos aspectos, as questões colocadas pela filosofia existencial kierkegaardiana se aproxima da essência do trabalho de Rogers, em especial sua análise do desespero humano – que podemos perceber no conceito de função organísmica para o psicólogo americano – em suas formas fundamentais do não querer ser si próprio e do querer ser si próprio. Mantém, igualmente, pontos de confluência com aquilo que se pode chamar “as fronteiras interiores”, ou seja, o conceito de imagem-de-si utilizado na abordagem centrada na pessoa.

O que leva alguém a busca de ajuda psicológica pode ser entrevisto na obra kierkegaardiana que trata da questão da angústia e da liberdade: “O indivíduo vê intercalar-se entre ele e o mundo um vácuo que o faz perder todo o sentimento de segurança. Sente-se arrebatado, entregue exclusivamente a si mesmo. Só na medida em que for capaz de sofrer a provar desse abandono será existencialmente livre” (p. 14).

O processo psicoterápico também nos parece ser perfeitamente definido, em uma abordagem psicoterápica rogeriana, nestas palavras de Giles: “A tarefa que confiada a todo homem é optar pró ou contra a própria existência, opção que se faz num processo dialético-paradoxal, pois a própria existência é constituída de paradoxos (...)” (p. 21). Em termos rogerianos, isto eqüivale a dizer que o processo se conclui quando o indivíduo consegue aceitar a si próprio, para além ou com todas as contradições, fluindo junto a mudança experiencial, evoluindo junto com o meio, percebendo que: “A única explicação para o paradoxo consiste em entender que o paradoxo é paradoxo” (p.22), abstendo-se de tentar apreender apenas cognitivamente a experiência.

Se diante do “Espírito Absoluto” de Hegel, a filosofia kierkegaardiana “insiste na necessidade da apropriação subjetiva da verdade, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o Indivíduo” (p.06), Rogers, por sua vez, diante dos “sistemas psicológicos absolutos” que explicavam o indivíduo sempre em função de determinações externas a ele, como por exemplo, as contingências de reforçamento ou as pulsões inconscientes, enfatiza o crescimento dos seres – sejam batatas no porão que buscam a luz do sol ou homens que sobrevivem às instituições opressoras – como tendência fundamental de todo o existir.

A “contínua crença nas responsabilidades do cliente”, característica da Abordagem Centrada no Cliente, que se refere a sua capacidade de prever que passos o levarão a um confronto mais decisivo com sua realidade, encontra respaldo nos conceitos filosóficos do Existencialismo de Vontade, Liberdade e Intencionalidade. Faz parte de uma legítima postura existencialista a assunção de que “o ser humano só pode, de fato, ser compreendido por ele mesmo através de uma experiência direta do seu ser no mundo, e, embora a pessoa possa, momentaneamente, ter perdido esta aptidão, continua sendo a mais fiel intérprete de si mesma” (Ribeiro, 1985:34).

Outra característica desta abordagem, a “contínua atenção ao mundo dos fenômenos do cliente”, que permite ao terapeuta ver o mundo do cliente como este o vê, diz da percepção de que “o objeto é sempre um objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto-percebido” (idem, p.43). O fenômeno não pode e não deve ser considerado independentemente das experiências concretas de cada sujeito. Rogers, neste sentido, realiza uma “redução fenomenológica” ao encontrar-se com o cliente nele, com ele, através dele, intuindo tudo que ele é em si.

Pouco importam os “rótulos” diante desta atitude. Dizem quando muito da rigidez do processo atuante no terapeuta, que não se abre à experiência, tentando barrar o fluir organísmico – um rio que nunca passa duas vezes no mesmo lugar. A relação terapêutica e suas atitudes características, dizem da essência de uma postura existencial: o que importa é o momento dialogal, onde o face a face sempre supera em muito os construtos hipotéticos que por ventura forem criados.

Piccino (1988), por exemplo, lembra que a “a psicoterapia, numa abordagem existencial, objetiva a maneira singular de o indivíduo estar no mundo, interagir com ele, ser afetado por ele e afetá-lo”. Nada mais próximo disso que a “imediaticidade” da presença do terapeuta à experiência do cliente, à “mudança na maneira de experimentar do cliente”, a preocupação com o “como”.

A mesma autora, enfatiza ainda que Rogers pressupõe a psicoterapia como uma ontologia, na medida em que é um processo pelo qual se busca o Ser da pessoa, que nada mais é que sua identidade definida a partir das relações com os diversos objetos e seres do mundo. “A psicoterapia é uma tentativa de realizar um processo através do qual o cliente caminha em direção a um conhecimento cada vez maior e mais profundo da sua real e verdadeira maneira de ser” (idem).

As especulações teóricas – intelectuais – sempre estarão submetidas ao experienciar contínuo e mutável de nossas vivências. Esta também é uma postura existencial. Buscamos que o indivíduo vá além dos códigos externos adversos ao seu ser, portanto não poderíamos seguir aprioristicamente “códigos teóricos” externos ao momento imediato.

Quando colocamos, anteriormente, a questão do pensamento versus a existência, não deixamos claro o quanto é crucial para o bom desenvolvimento do trabalho psicoterápico centrado no cliente a clareza neste ponto. O pensamento e/ou sua expressão formal – as palavras, a linguagem estruturada – jamais captará a existência em sua infinitude. A relação terapêutica enquanto “encontro” – termo muito caro à Rogers – tem sua objetividade na própria intersubjetividade.

Nas palavras de Augras (1981): “a significação da situação transparece no encontro de minhas vivências com as do outro”, isto ocorrendo não somente em uma relação psicoterapeutica, que não se encontra “fora” do mundo, mas em qualquer evento de comunicação entre dois sujeitos”.

Diríamos, no entanto, que tal significação é tanto melhor apreendida, quanto mais próxima estiver a relação das características apontadas por Rogers como indispensáveis ao bom contato entre as pessoas. As atitudes terapêuticas são “condições necessárias e suficientes” para a real percepção da significação, ou seja, o reconhecimento e a compreensão “do ponto de existência do cliente” e de “sua forma de expressão de si no mundo”.

Tendo em conta essas aproximações, apontamos Kierkegaard como uma das bases epistemológicas do pensamento de Carl Ransom Rogers. Pois ambos realizaram, em diferentes níveis, “o estudo profundo, impiedoso, cruel até, das diversas formas de luta do homem consigo próprio para a conquista da existência, que é a conquista do próprio ‘eu’ em sua individualidade” (p.22).

Bibliografia

AUGRAS, Monique, O Ser da Compreensão, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1981.

GILES, Thomas R., História do Existencialismo e da Fenomenologia, São Paulo, Editora Pedagógica e Universitária Ltda., 1989, pp. 05-22.

LEITÃO, Virgínia M., "O Enfoque Centrado na Pessoa no Tratamento de um Caso de Esquizofrenia", in Revista Psicologia, Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, 1987, pp. 262-281.

PICCINO, Josefina D., "Valores Humanos e Psicoterapia", in Revista Antropos, Psicologia e Vida, Sobrapsum, São Paulo, n°. 2, 1988, p. 19-24.

RIBEIRO, Jorge Ponciano, Gestalt-Terapia: Refazendo um Caminho, São Paulo, Summus Editorial, 1985.

RUDIO, Franz Victor, Orientação Não-diretiva na Educação, no Aconselhamento e na Psicoterapia, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1975.

*Este artigo é uma versão resumida de capítulo do Relatório de Conclusão de Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, UFPE, 1989.Voltar

**Pesquisador, Psicólogo Clínico e Hospitalar, Pós-Graduação/Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar