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O primeiro conto de Jorge Luís Borges que li foi a pedido por um professor de Literatura Comparada, Karl Erik, de uma conhecida universidade do Rio de Janeiro cujo nome não é importante. No dia seguinte em que o conto nos foi pedido um amigo meu, Jonas Bittencourt, que freqüentava naquele semestre a mesma aula que eu me confidenciou que aquele conto não mais se encontrava no xerox, e que teríamos que nós mesmos procurar na biblioteca da universidade por um livro que contivesse o conto ou, em último caso, qualquer impressão que fosse um cópia idêntica da história que Karl Erik havia requisitado para a próxima aula. Achei muito estranho que o conto não se encontrava no xerox, já que isso era um contradição do próprio professor. Como poderia ele ter dito para toda uma classe que o conto se encontrava no xerox quando o mesmo, na realidade, não estava lá? Foi pensando nisso que falei para Jonas que o professor poderia estar dissociando idéias que por si só já eram desconexas, e que, na minha opinião esse conto não existia, deveria ser uma invenção dele e de outros intelectuais da Universidade, como o professor de latim, um senhor conhecido por contar histórias suspeitas em sala de aula. Alguns diziam que esse professor de latim havia chegado ao ponto de misturar o latim antigo com variações dialetais do português moderno e criado um idioma novo que só ele e correspondentes seus na Europa e na Ásia conheciam.

Assim, no dia seguinte fui com Jonas à biblioteca. Achamos vários livros de Jorge Luís Borges, mas nenhum continha um conto com o título idêntico àquele que o professor havia mencionado. Pedimos auxílio ao bibliotecário, que nos falou que já havia lido esse conto, e que inclusive era uma obra-prima da literatura do século XX, porém também o bibliotecário ficou surpreso ao constatar o mesmo que nós: era impossível achar qualquer conto com um título que contivesse aquelas palavras que tínhamos anotado em nossas agendas. Por fim, muito intrigado, o bibliotecário nos levou ao acervo de livros raros para que pudéssemos procurar pelo conto, tudo no mais completo sigilo já que apenas os professores e pessoal autorizado tinham acesso físico àqueles compartimentos. Lá, em meio a publicações antiquíssimas (o bibliotecário nos mostrou até mesmo um exemplar da primeira edição de uma coleção de folhetins de José de Alencar), achamos um livro cuja publicação era contemporânea dos anos em que Borges escrevia para o jornal Crítica, de Buenos Aires. O título do livro era indecifrável devido à ação do tempo sobre a matéria, porém era possível destinguir o nome do autor; era Jorge Luís Borges, de fato. No entanto, frustrados, eu, Jonas e o bibliotecário constatamos que o conto pedido não havia sido reproduzido naquele livro em particular. Desanimados mas esperançosos, fomos em direção à biblioteca pública do Rio de Janeiro. Pensei que se não achássemos lá o conto, então realmente o professor estava querendo apenas testar nossa habilidade e persistência. Jonas não concordava comigo, achava que na verdade a possibilidade de o professor ter requisitado a leitura de um conto que não existe só existia dentro de minha própria mente, sendo que para qualquer outra pessoa essa hipótese provaria ser, no futuro, uma falácia, um disparate total. Jonas não tinha a menor dúvida que acharíamos na biblioteca pública o conto, visto que esta era conhecida pela enorme extensão de seu acervo. Procuramos durante algumas horas, esgotamos todas as possibilidades de pesquisa, pensamos em todas as alternativas, vasculhamos todas as coletâneas de contos latino americanos, porém a biblioteca pública provou-se inútil para nosso objetivo.

Na aula seguinte de Literatura Comparada, minutos antes do horário preciso de começo da aula, eu, Jonas e mais alguns alunos comentávamos sobre a impossibilidade de se encontrar em qualquer parte o conto de Borges. Walter Vianna, um estudante de Literatura de Língua inglesa aficionado por Ezra Pound, nos falou que pensava ser melhor lermos outro conto, já que a literatura latino americana era de qualidade muito inferior à inglesa e Norte Americana. Poucos concordaram com ele, alguns preferiram não manifestar opinião. Eu comentei que talvez Erik tivesse nos informado um nome errado, talvez o conto não existisse, ou tivesse sido inventado pelo professor. Apenas Rubens Nemitz, que havia morado muitos anos na China e dava aulas de cantonês concordou comigo e disse que talvez isso fosse realmente possível. Rubens também fez outro comentário muito intrigante sobre esse assunto: falou que não só Karl Erik era muito amigo do professor de Latim, como também ambos estavam coordenando um projeto de pesquisa na área da criação literária onde o assunto mais abordado dizia respeito a temas relacionados à filosofia de religiões obscuras como a de gnósticos palestinos e cristãos egípcios. Rubens não sabia informar quem eram os alunos que trabalhavam no projeto, visto que eram da pós graduação. Zélia Dantas, estudante de filosofia que estava cursando a matéria de Literatura Comparada por gosto pelas letras, questionou se realmente o estudo da filosofia dessas religiões pelo professor poderia ter alguma relação com o fato de o conto não ter sido encontrado. Ao menos nesse ponto, todos, menos ela concordaram que sim. Para nossa surpresa, Karl Erik não compareceu à classe nesse dia. Fomos ao departamento nos informar sobre o motivo da falta e a possível reposição da aula e a secretária (uma moça muito prestativa, de cabelos pintados de ruivo), nos informou que Karl Erik não havia telefonado para dar satisfações à classe sobre a aula daquele dia. Olhei para Jonas e vi que talvez ele agora pudesse estar concordando comigo com relação à possível inexistência do conto. Jonas, por fim, sugeriu que fôssemos ao encontro do professor de Latim já que era a hora em que ele estava à disposição dos alunos em sua sala.

Ao entrar na sala do professor, nos sentamos e fizemos, primeiramente, perguntas triviais como se ele tinha planos de horário de aulas para o próximo semestre e assuntos afins. Observando que ele tinha tempo para nós, comentei com uma dose de falso desinteresse o caso do conto de Borges pedido por Karl Erik. O professor disse que nunca havia lido o conto, mas que se Erik havia prescrito a leitura para a classe, tudo era uma questão de procurarmos com cuidado, sem pressa, que haveríamos de encontrá-lo. Fiquei imaginando que talvez, se tivéssemos gastado uma hora de nosso dia na biblioteca pública com calma e sem pressa talvez nossa busca realmente fosse mais eficiente do que a que fizemos naquele dia, quando passamos cerca de seis horas vasculhando as prateleiras da enorme biblioteca preocupados com o horário das últimas conduções que nos levariam para casa. No entanto, nossa visita ao professor de latim nos rendeu o endereço de um livreiro no centro da cidade que, segundo o mestre, haveria de ter todos os livros de Borges. Este livreiro, nos disse o professor, era dono de um enorme sebo de livros, talvez tão grande quanto o da biblioteca pública, se descontarmos as enciclopédias, dicionários, periódicos, livros em línguas estrangeiras e publicações do gênero. Jonas comentou que era inacreditável que esse livreiro não fosse conhecido pelas pessoas da faculdade de letras. O professor confessou que realmente, o velho livreiro trabalhava com um certo resguardo, tinha muito apreço pelo o que vendia e não tinha grandes ambições na vida. Nos recomendou que falasse ao velho que fomos lá por indicação do professor de latim da Universidade. Agradecemos a ajuda ao professor e saímos.

Jonas e eu decidimos que iríamos visitar o livreiro. Já nem mais procurávamos o conto por preocupação com o nosso desempenho acadêmico. A procura agora era motivada pela curiosidade ou orgulho. Eu, por um lado, achava que não íamos encontrar tal título (talvez não quisesse de fato encontrá-lo). Já me parecia a cada instante mais claro que o conto era provavelmente um lapso de consciência de Karl Erik, ou que não havia conto algum. Jonas, por outro lado, entusiasmava-se com a fantasia de mostrar-me o conto e provar-me que ele estava certo ao dizer que minhas idéias a esse respeito eram totalmente incoerentes.

Dois dias depois eu e meu amigo nos encontrávamos à porta de uma casa antiga no centro do Rio de Janeiro. Ela tinha a fachada conservada como patrimônio histórico, e também seu interior ainda ostentava muitos materiais e formas originais do início do século vinte. Era muito empoeirada, como o são muitos lugares onde se vende livros usados. O livreiro nos recebeu em silêncio. Não nos perguntou como poderia nos ajudar então tomamos a iniciativa de perguntar-lhe sobre seu conhecimento do conto de Jorge Luís Borges. Comentamos sobre a nossa pesquisa na universidade e na biblioteca pública e o livreiro olhou para nós com ar de perplexidade - disse ser um conto muito popular de Borges, um dos mais conhecidos do autor. Achou estranho termos tanta dificuldade em encontra-lo. Pediu-nos que aguardássemos por ele no compartimento da casa que provavelmente havia sido no passado uma sala de visitas. Eu e Jonas ficamos lendo trechos de livros enquanto o livreiro não retornava. Realmente, havia coisas inacreditáveis lá. Alguns estavam em estado lastimável, talvez até pior do que muitos livros antiquíssimos do acervo de livros raros da biblioteca da Universidade. Encontramos traduções antigas de Sheakespeare, edições vindas de Portugal e da África. Achei até mesmo um livro de contos fantásticos muito interessante de um autor de Macau. Falava sobre o desaparecimento de crianças em uma vila daquelas terras da Ásia. Li com muita rapidez, mas pelo que entendi as crianças não estavam sendo seqüestradas, elas fugiam de casa e nunca mais eram encontradas. O livreiro já demorava mais de meia hora quando voltei a comentar com Jonas que pensava que ele provavelmente voltaria a nosso encontro de mãos vazias. Jonas sorriu incrédulo, pois o velho garantia que tinha o conto. Eu já não acreditava que alguém pudesse encontrar a obra. Eu realmente não confiava no bom senso de Karl Erik e do professor de Latim.

Depois de muito se demorar o livreiro voltou com um livro nas mãos. Nos mostrou algumas páginas dele e afirmou categoricamente que eram páginas do conto de Jorge Luís Borges pedidos por Karl Erik para ser lido pelos alunos de Literatura Comparada. O livro era velho e fora tratado com pouco cuidado, de forma que duas páginas estavam faltando, a primeira e a segunda. Justamente, não podíamos ter certeza se era mesmo o conto sem antes lermos todo o pedaço que tínhamos e encontrar nele alguma relação com o título que havíamos anotado. Lemos o conto rapidamente enquanto o livreiro organizava alguns volumes na sala que provavelmente havia sido uma sala de visitas. Eu e Jonas analisamos o conteúdo do conto e discutimos a possibilidade de aquele ser o conto de Borges que procurávamos. Jonas chegou a conclusão que havia grandes chances de ser o conto, porém não podíamos ter certeza. Eu já achava que as chances não eram tão grandes assim e que também não podíamos afirmar ser aquele de fato o conto que procurávamos. Compramos o livro, agradecemos a atenção do livreiro e tomamos a condução de volta para a universidade. No caminho, ainda comentamos partes do conto, relacionando-as com o suposto título e expomos nossas opiniões sobre ele um para o outro. Descemos do ônibus pensando onde poderíamos encontrar Karl Erik naquele horário e dia. Tememos que talvez ele mais uma vez não tivesse vindo à universidade. Após muito procurá-lo acabamos por encontrá-lo na biblioteca. Fomos ao seu encontro e expomos todo o caso do conto desaparecido da sua pasta do xerox. Erik nos contou que alguém havia agido de má fé e levado o conto do xerox , sendo que aquela era a única cópia daquele específico conto que ele possuía. Por esse motivo, agora estava ele lá na biblioteca procurando pelo conto sem nenhum sucesso, assim como eu e Jonas, alguns dias antes. Falamos então para Erik que havia chances de termos encontrado o conto no estabelecimento de um velho livreiro no centro da cidade mas que não tínhamos certeza porque faltavam as duas primeiras páginas do conto, de forma que não podíamos constatar se seu título era aquele mesmo. Erik não demonstrou muito entusiasmo ao ouvir de nosso achado, provavelmente, pensei, porque não havia com utilizar em aula uma cópia de um conto cujas duas primeiras páginas estavam faltando. O professor pediu para ver o exemplar de Borges e Jonas começou a procurar pelo livro em sua mochila mas não o encontrou. Eu vasculhei minhas coisas e também não encontrei. O banco de um ônibus. O precioso livro estava agora no banco de um ônibus sabe-se lá nas mãos de quem. Erik nos olhou com seriedade e preocupação. Parecia não acreditar no que havia ocorrido conosco durante a tarde. Parecia não acreditar que o livro havia estado em nossas mãos e que havíamos lido o conto de Borges. Nos perguntou sobre o tema e plot do conto, constatou que havia grande semelhança com o conto que ele havia pedido para aula de Literatura Comparada, mas que não podia ter certeza absoluta sem antes ler o conto. Ao ser questionado sobre o que seria feito caso não fosse encontrado algum livro que contivesse a leitura em questão (ou cópia idêntica a ela), Karl Erik afirmou que haveria de requisitar outro conto para a classe. De Borges? Talvez.

 

 

 

 

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