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Poemas

"A poesia deve-nos surpreender pelo seu delicado excesso e não porque é diferente. Os versos devem tocar o nosso irmão como se fossem as suas próprias palavras, como se ele se estivesse a lembrar de algo que, na noite dos tempos, já conhecia no seu coração. A beleza de um poema não está na capacidade que ele tem de deixar o leitor contente. A poesia é sempre uma surpresa, capaz de nos tirar a respiração por alguns momentos. Ela deve permanecer nas nossas vidas como o pôr do sol: algo de milagroso e natural ao mesmo tempo."

-John Keats (1795 - 1821)

Poemas

Noite de Saudade

A noite vem pousando devagar

Sobre a terra, que inunda a amargura...

E nem sequer a benção do luar

A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar

A sua dor que é cheia de tortura...

E eu oiço a noite imensa soluçar!

E eu oiço soluçar a noite escura!

Porque és assim tão escura, assim tão triste?!

É que, talvez, ó noite em ti existe

Uma saudade igual à que contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...

Talvez de ti, ó noite!...Ou de ninguém!...

Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!

-Florbela Espanca, in 'Sonetos'

Dizem que se leva um minuto na vida

Para reparar numa pessoa especial,

Uma hora para aprecia-la,

Um dia para amá-la,

Mas é necessária uma vida inteira para esquece-la.

- anónimo

"Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida.

Tão concreta e definida

como outra coisa qualquer.

Como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso.

Como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos.

Como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam.

Como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul."

-- António Gedeão

“Senhor: é mais que tempo. O verão foi muito intenso.

Lança a tua sombra sobre os relógios de sol

E por sobre as pradarias desata os teus ventos.

Ordena às últimas frutas que fiquem maduras;

Dá-lhes ainda mais uns dois dias de calor,

Leva-as à completude e não deixes de pôr

No vinho pesado sua última doçura.

Quem não tem casa, não a irá mais construir.

Quem está sozinho, vai ficá-lo ainda mais.

Insone, há-de ler, escrever cartas torrenciais

E correr as aléias num inquieto ir-e-vir

Enquanto o vento carrega as folhas outonais”

--Rainer Maria Rilke, Poemas (tradução de Paulo Paes, Companhia das Letras, 1996)

(Gentilmente cedido por Susana Cardoso)

“Caminante, no hay camino

Se hace camino al andar

Al andar se hace camino

Y al volver la vista atrás

Se ve la senda que nunca

Se ha de volver a pisar

Caminante, no hay camino

Sino estelas en la mar”

-Antonio Machado

“Há um fogo enorme no jardim da guerra

E os homens semeiam faúlhas na terra.

Os homens passeiam com os pés no carvão

E os deuses acendem luzindo um tição.

Para apagar o fogo vêm embaixadores

Trazendo no peito água e extintores.

Extinguem as vidas dos que caem na rede

E dão águas aos mortos que já não têm sede.

Ao circo da guerra chegam piromagos,

Abrem grande a boca quando são bem pagos.

Soltam labaredas pela boca careada.

Fogo que não arde, nem queima nem nada.

Senhores importantes fazem piqueniques.

Churrascam o frango no ardor dos despiques.

Engolem sangria dos sangues fanados

E enxugam os beiços na pele dos queimados.

A guerra de trapos do que pulmão que cessa.

Do óleo cansado que arde depressa.

Os homens maciços cagam-se por dentro

E fogo penetra, vai directo ao centro.

Há um fogo enorme no jardim da guerra.”

-José Mário Branco

Confia...

Confia na palavra serena do amigo:

Palavra dura, palavra terna,

Palavra esteio, palavra franca...

Confia no coração que te ama,

Mesmo que o amor não crepite

Em labareda ardente.

Pois o teu amigo – ou o teu Amor –

Estão partilhando, tristes, dia a dia,

Das tuas angústias, das tuas mágoas,

Da tua dor,

Como da taça refulgente das tuas alegrias.

Confia na mão invisível e potente,

Que te ampara quando tropeças,

Te levanta quando cais,

E te abraça eternamente...

-Mário Salgueirinho

Cântico Negro

"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom se eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui"!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: "vem por aqui"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis machados, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

--- Sei que não vou por aí.

-José Régio

O amor

MOTE

Amor é chama que mata,

Sorriso que desfalece,

Madeixa que desata,

Perfume que esvaece.

(popular) GLOSAS

Amor é chama que mata,

Dizem todos com razão,

É mal do coração

E com ele se endoidece.

O amor é um sorriso

Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata

Denominam-no também.

O amor não é um bem:

Quem ama sempre padece.

O amor é um perfume

Perfume que se esvaece.

- Mário de Sá-Carneiro

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa.

Um pouco mais de azul - eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

- Mário de Sá-Carneiro

Fim

Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes,

Façam estalar no ar chicotes,

Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza...

A um morto nada se recusa,

Eu quero por força ir de burro.

- Mário de Sá-Carneiro

Original é o poeta

que se origina a si mesmo

que numa sílaba é seta

noutro pasmo ou cataclismo

o que se atira ao poema

como se fosse um abismo

e faz um filho às palavras

na cama do romantismo.

Original é o poeta

capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta

de origem clara e comum

que sendo de toda a parte

não é de lugar algum.

O que gera a própria arte

na força de ser só um

por todos a quem a sorte faz

devorar um jejum.

Original é o poeta

que de todos for só um.

Original é o poeta

expulso do paraíso

por saber compreender

o que é o choro e o riso;

aquele que desce á rua

bebe copos quebra nozes

e ferra em quem tem juízo

versos brancos e ferozes.

Original é o poeta

que é gato de sete vozes.

Original é o poeta

que chegar ao despudor

de escrever todos os dias

como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia

como se fosse uma mulher

e nela emprenha a alegria

de ser um homem qualquer.

- Ary dos Santos

A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra de uma luz que não há.

- Ary dos Santos

Desespero

Não eram meus os olhos que te olharam

Nem este corpo exausto que despi

Nem os lábios sedentos que poisaram

No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram

Tua falsa beleza, em que não vi

Mais que os vícios que um dia me geraram

E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu

Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,

Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.

A voz com que te chamo é o desencanto

E o espermen que te dou, o desespero.

- Ary dos Santos

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem

por inveja ou negação:

cabeçudo dromedário

fogueira de exibição

teorema corolário

poema de mão em mão

lãzudo publicitário

malabarista cabrão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

Os que entendem como eu

as linhas com que me escrevo

reconhecem o que é meu

em tudo quanto lhes devo:

ternura como já disse

sempre que faço um poema;

saudade que se partisse

me alagaria de pena;

e também uma alegria

uma coragem serena

em renegada poesia

quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu

a força que tem um verso

reconhecem o que é seu

quando lhes mostro o reverso:

De fome já não se fala

- é tão vulgar que nos cansa -

mas que dizer de uma bala

num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história

- a morte é branda e letal -

mas que dizer da memória

de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser

o poema dia a dia?

- um bisturi a crescer

nas coxas de uma judia;

um filho que vai nascer

parido por asfixia?!

- Ah não me venham dizer

que é fonética a poesia !

Serei tudo o que disserem

por temor ou negação:

Demagogo mau profeta

falso médico ladrão

prostituta proxeneta

espoleta televisão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado, não!

-in SANTOS, Ary dos. - Resumo. Lisboa, 1973.