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ENKI E NINHURSAG

como Enki se rendeu à Terra Mãe

Mito sumério, preservado em tábuas de argila datadas de 2.500 Antes da Nossa Era (4.500 anos atrás), do período da Terceira Dinastia de Ur e Antigo Babilônico. Talvez o texto mais complexo e intrigante desta seleção, pois em algumas passagens ele mostra tanto os antecedentes como o oposto do Gênese, conforme descrito no Velho Testamento da Bíblia (Nota 1). Alguns exemplos de oposição: a) o nascimento de deusas que vêm ao mundo e dão à luz sem dor ou trabalho é o contrário da maldição lançada sobre Eva, de que ela iria conceber seus filhos no trabalho e na dor; b) a gula de Enki ao comer as oito plantas sagradas que deram origem ao Mundo Vegetal ilustra a inspiração para o motivo do fruto proibido comido por Adão e Eva. Note-se a inversão dos sexos entre as duas histórias, pois não é Eva, a primeira mulher segundo os hebreus, e sim o deus Enki, o guloso neste mito sumério, e c) a explicação para um dos motivos mais intrigantes do Gênese, ou seja, a passagem descrevendo a criação de Eva a partir da costela de Adão (Nota 2). Naturalmente, a versão suméria não invalida a versão bíblica, mas completa e aumenta o nosso entendimento sobre duas visões do mundo, que sucederam uma a outra, e cujas contradições ainda temos de resolver em nossos tempos.

Depois que o Tempo passou a existir e que a dança das estações ao redor da Roda do Ano passou a ser contada, Dilmun, a terra sagrada, o jardim dos grandes deuses e deusas da Mesopotâmia, situada a leste do Éden, foi o lugar onde Ninhursag-Ki, a Grande Terra Mãe e Senhora de Toda Natureza podia ser encontrada. Dilmun era pois o lar de Ninhursag, principalmente quando no restante do Mundo Físico a terra descansava, esperando o retorno da primavera.

Por que Dilmun? Nem um outro lugar era tão especial. Lá, não havia doenças, morte ou envelhecimento. Pássaros agourentos não voavam nos céus, leões e lobos não matavam e desconhecidos eram o luto por entes queridos ou dos enfermos os gemidos. E foi em Dilmun que Enki, o deus da mágica, das artes e das águas doces, o patrono das artes, encontrou, se apaixonou e fez amor com Ninhursag.

O beijo da Terra Mãe mudou o descuidado, brejeiro e sensual deus: Ninhursag tinha de fato completamente cativado Enki pelo mais profundo de todos os laços, o fio de encantamento, paixão e ousadia chamado amor. Tão profundo era este sentimento que o jovem deus pediu a mão de Ninhursag em casamento com toda o entusiasmo de um coração apaixonado.

Ninhursag olhou a terra ao redor, os campos em flor, as pastagens luxuriantes, e lembrou do toque molhado e carinhoso de Enki no seu corpo. Ela disse-lhe então:

- Escutei teu coração falar, Enki, mas antes de me decidir por ti, algo tenho a te pedir. Sinto que a esta terra morena e linda, faltam, porém, fontes, rios e cascatas para enfeitar tanto os campos quanto as matas. Pois não poderias emprestar um pouco da tua essência, as águas doces, a Dilmun, e assim molhar os campos, fazer rios e canais esta terra atravessar? Afinal, o que é uma cidade sem porto ou docas? E quão triste é uma terra sem lagos e fontes para se banhar?

Tomado de surpresa, Enki deu-se conta que, se de fato ele tinha dado toda a sua essência para Ninhursag, ele realmente havia negligenciado suas funções de guardião das águas doces em Dilmun e em todos os outros mundos. De imediato, o jovem deus disse a Ninhursag:

- Teu desejo é meu comando, adorada! Portanto, para Dilmun, a terra da senhora do meu coração, criarei longos cursos d’água, rios e canais, através dos quais as águas doces irão circular para saciar a sede de todos os seres e trazer abundância a tudo que viver e respirar.

Para auxiliá-lo nesta grande empreitada, Enki chamou seu sobrinho Utu, o deus do sol e radiante luz do dia. Juntos, eles fizeram surgir uma fonte das profundezas da terra, e esta fonte irrigou toda a superfície do solo.

E mais. Ao verem que esta tinha sido uma boa obra, Enki e Utu disciplinaram os cursos d’água para rodear Dilmun e fluir em todas as direções rumo ao Mundo Físico. Ajudado pelo energético deus Sol, Enki projetou bacias e cisternas para armazenar as águas a serem usadas para outras necessidades. E destes reservatórios que fluíam para o Mundo Físico brotaram as águas dos Quatro Rios Sagrados da Antigüidade Clássica, dentre eles o Tigre e o Eufrates. Com as graças e o trabalho de Enki e Utu, Dilmun foi abençoada com superioridade na produção agrícola e no comércio, pois por seus canais, rios e docas, cereais eram vendidos e negociados para o povo de Dilmun e de além de suas fronteiras.

Ninhursag mal coube em si de contente ao ver a terra sendo tocada pelo poder fertilizador das águas e da força de vida do sol:

- Adorado, o toque das tuas doces águas trouxeram mais vida à terra, o meu corpo sólido em todos os mundos. Mais do que nunca, sinto o poder da vida pulsando dentro de mim para se revelar fora, na Natureza que se engalana em todo seu fulgor em Dilmun e além. E ao ver a vida que surge nas terras às margens dos rios e canais, quando meu corpo sólido encontra o teu, fluindo e se desmanchando nos braços meus, sinto uma alegria e paz imensas, de teu amor a maior das recompensas. E para jamais esquecer deste momento como um grandioso acontecimento, adoto o nome de Nintur, a terra e senhora que dá à luz ao que vive e respira às margens dos rios, lagos e canais, e por todos os lugares onde as águas doces da vida circularem!

Enki respondeu:

- Ninhursag, incomparável Nintur, como posso resistir aos teus encanto, querida, mil vezes querida, deusa da Terra, de todas, a mais bela? Vem, deita-te comigo uma vez mais! Vem, não deixa para depois, vem, dar-me mil e uma noites de amor! Doravante, chamar-te-ei Damgalnuna, minha Grande Esposa, a mais amada, para sempre adorada!

Ninhursag riu e abriu os braços para Enki. Por nove dias e nove noites, deusa e deus se amaram, e nunca em todos os mundos tinha sido visto tanto carinho e ardor. Mais nove dias se passaram, e então, sem o menor trabalho ou dor, Ninhursag deu à luz a uma menina, à qual chamou de Ninsar, a deusa das Vegetação dos Campos e Pastagens, o tapete de veludo verde, folhas, ervas e flores que cobre a superfície da terra.

Enki não cabia em si de tão contente pela chegada de sua primeira filha:

- Quão perfeita e linda é nossa Ninsar! Desde já amo com todo carinho e devoção a deusa-menina, a donzela Anunaki e deusa dos campos e pastagens, terra aveludada e faceira, cheia de luz e cor! Os laços que me ligam a Ninsar são fortes e temperados por um amor maior, pois na face da criança vejo também Ninhursag, a primeira a quem vou para sempre amar!

Nihursag, com Ninsar nos braços, beijou os lábios de Enki e lhe disse:

- Muito em breve chegará a minha hora de deixar Dilmun, meu querido, mas voltarei para cá assim que de meu toque de vida tiver sido dado no Mundo Físico. Sem meu retorno, a primavera não pode voltar, os ventos que espantam o inverno não irão soprar e os pássaros calarão suas vozes, deixando de anunciar a nova estação. Mas antes de partir, dou a Ninsar o dom de crescer e se desenvolver em tempo recorde, forte e saudável. Livre de todas as doenças e tristezas, mesmo na minha ausência, minha filha crescerá com as bênçãos de toda Natureza!

Como Ninhursag tinha dito, nove dias mais tarde Ninsar tinha-se tornado numa linda donzela, bela e graciosa, com o encanto luxuriante das pastagens e campos dos quais era a deusa e rainha. Ninhursag, vendo Ninsar crescida e segura, então deixou Dilmun, retornando ao Mundo Físico.

Enki sabia que ia sentir uma falta imensa de sua amada, mas enquanto Ninhursag estivesse ocupada no Mundo Físico dando a sua essência para a terra florescer na abundância, igualmente ocupado Enki estaria em Dilmun. Dele agora era o dever sagrado de administrar a subida e a descida das águas doces que tinham origem em Dilmun, e de lá alimentavam os rios, lagos, poços e fontes no Mundo Físico, preparando a terra para a agricultura. Por mais que Enki sentisse saudades de Ninhursag, partir ele não poderia. Não enquanto todos os cursos d`água não estivessem desobrustruídos e as águas fluindo para irrigar todo pedaço de terra que pudesse ser arado e cultivado.

Foi ao final de um dia em que ele havia passado totalmente absorvido pela tarefa de controlar o fluxo das águas de Dilmun para o Mundo Físico que Enki viu Ninsar passeando sozinha às margens do rio. Tão adorável a jovem deusa havia-se tornado, que quando os olhos de Enki encontraram os da deusa-donzela, o deus das águas doces, das artes e da mágica sentiu um aperto no peito, um desejo, embora não soubesse dizer em palavras o quê ou porquê. Uma coisa, porém, era certa: desde a partida de Ninhursag, nenhuma outra donzela ou deusa havia tocado o coração de Enki, feito seu sangue fluir mais depressa e a cabeça uma série de fantasias criar. A jovem que caminhava às margens do rio, porém, era diferente:

" O que será que ela tem, que encanto ou feitiço, que me faz ter tanta vontade dela me aproximar, conhecê-la e amar?" perguntou-se Enki. " Preciso descobrir o que ela tem, que a mim tanto atrai e faz bem!

Portanto, Enki não perdeu mais tempo e de imediato começou a fazer a corte à jovem deusa, com galanteios, palavras de paixão e promessas de mútuo enlevo.

Curiosa como Ninsar estava para experimentar o poder do amor e a força do desejo em seu corpo, mente, alma e coração, a jovem deusa das pastagens e campos em flor aceitou a corte de Enki, e juntos eles fizeram por uma longa noite apaixonado amor.

Mas quando o dia raiou, Enki olhou para Ninsar, achando-a encantadora, mas um pálido retrato do desejo de seu coração, de alguém muito amado. Mas quem?

"O que será que vi nela, tão atraente na noite passada, mas que agora, à luz do dia, parece ter perdido a substância, o encanto e o vigor? Adorável ela certamente é, mas não é mais por ela que meu corpo ou peito se inflamam ou se enchem de ardor " constatou Enki, intrigado.

Apesar das dúvidas que sentia, Enki permaneceu com Ninsar por mais algum tempo, pois sabia com certeza que seu sêmen tinha-se alojado no útero da donzela. Nove dias mais tarde, sem qualquer trabalho ou gemido de dor, Ninsar deu à luz a outra deusa-menina, a qual chamaram Ninkurra, a futura senhora das pastagens das mais altas montanhas. Como tinha acontecido anteriormente, Enki alegrou-se imensamente com a chegada de Ninkurra, com a graça e beleza da menina.

Mas Ninsar viu que apesar da chegada de Ninkurra ser uma alegria, havia em Enki uma grande reticência. Ele era carinhoso, mas onde estavam a espontaneidade, exuberância e paixão da primeira vez? Com imensa tristeza, Ninsar se deu conta de que havia um segredo no coração do jovem deus, um desejo ao qual ela não era capaz de satisfazer.

"Por um tempo, ele foi meu, mas por espaço tão breve, do qual agora amargamente me arrependo" , pensou Ninsar. " Ah, se ele me quisesse, que alegria, que diferença faria! Sinto, porém, que ele não me quer pelo que sou. De que me adianta então tentar prendê-lo a mim, se não sou o que ele no fundo tão insistentemente procura, sem saber dizer o quê? Meu não é o corpo que ele quer segurar por minutos que irão durar pela eternidade e além. Portanto, deixá-lo ir, eu vou, agora e para sempre. Não importa o preço que tenha de pagar na saudade e solidão, pois muito pior é insistir no que nunca foi e só existiu no desejo do meu coração. Sei que devo ser amada por quem sou, e não como uma mera substituta de um amor maior, por alguém que ele talvez nem saiba quem."

Portanto, quando Enki a deixou e ao bebê Ninkurra, Ninsar chorou, mas achou consolo, esperança e força na solidão, nos seus vastos tesouros interiores e exteriores para se recuperar e crescer com a experiência. Ela também zelou, carinhosa, pelo crescimento de Ninkurra. A deusa-menina, tal qual Ninsar, desenvolveu-se em tempo recorde: ao fim de nove dias, já era uma donzela linda e alegre, demonstrando grande energia em subir nos picos mais altos das montanhas, mas mantendo a sua essência ligada à terra das montanhas. Desta forma, Ninkurra, a jovem deusa da vegetação das montanhas cresceu livre de todas as preocupações e tristezas.

Outros nove dias se passaram, e Ninkurra, graciosa e desenvolta, corria ao longo dos picos das montanhas. Curiosidade levou-a a explorar uma fonte que brotou de repente das entranhas da terra para irrigar as pastagens e flores selvagens que ela recém havia plantado. Para sua surpresa e delícia, a fonte tomou a forma de um atraente deus, que apresentou-se a ela como Enki, o deus das águas doces, das artes e da mágica.

Novamente, Enki viu a face jovem e brejeira da deusa-donzela, e desejou ardentemente mergulhar no abraço dela:

- Ah, Ninkurra, vem deitar-te comigo, ser meu amor, convidou ele, pois há em ti um não-sei-o-quê que me atrai e que sei quero a fundo experimentar!

Ninkurra, que tinha vivido uma vida tão protegida até então no alto das montanhas, rendeu-se facilmente aos encantos e carinhos do deus conquistador. Ela abriu com alegria os braços para ele, dando-lhe as boas vindas ao seu seio e calor. Amor os dois fizeram por uma noite longa e fogosa, mas quando a manhã do dia seguinte chegou, Enki percebeu que, não obstante o quão adorável Ninkurra podia ser, ela era ainda muito criança, um brilho pálido de alguém a quem Enki muito amava, e a qual ninguém se comparava.

"Mas quem é realmente este alguém? " perguntou-se Enki novamente.

Como antes, ele ficou com Ninkurra pelos próximos nove dias, quando a jovem deusa, sem qualquer trabalho ou dor, deu à luz a outra pequena deusa, a quem chamaram Uttu, a Tecelã dos Teares da Existência, símbolo da persistência, determinação e competência. Após nove dias, Enki novamente partiu, sem dizer se e quando voltaria. Ninkurra, porém, sabia que Enki não mais voltaria a ser o seu amor.

Mas Ninhursag havia retornado a Dilmun. A grande deusa franziu a testa ao ver a tristeza refletida nos olhos de Ninsar e Ninkurra, desaprovou com fervor o modo leviano de Enki agir com as deusas-donzelas. E porque Ninhursag sabia quão encantador e irresponsável Enki podia ser, ela fez por bem avisar à jovem Uttu, a diligente Tecelã dos deuses e dos homens:

- Uttu, toma cuidado ao passeares pelas margens dos rios, fontes e lagos, bem como outros lugares, onde Enki, o deus das águas doces, da mágica e das artes, possa vir a encontrar-se, principalmente se estiveres sozinha ou sem companhia. Pois ao te ver, tão linda e brejeira, ele irá certamente te desejar e querer fazer-te dele, apenas para te deixar logo depois. Mantém distância dele: águas doces podem ser profundas e perigosas, e tu, muito ferida e triste mais tarde podes ficar. Enki é sem dúvida encantador, mas também um grande conquistador, foi o conselho de Ninhursag para Uttu.

Por um tempo, a jovem Uttu seguiu à risca o conselho de Ninhursag e manteve-se à distância de Enki. Mas um dia, ao encontrar o sensual deus das águas doces, da mágica e das artes, tão atraente e seguro, a deusa-donzela também por ele se apaixonou. Esquecida do conselho sábio de Ninhursag, a Enki, Uttu com todo entusiasmo desejou.

Enki também não se fez de rogado, e presenteou Uttu com delícias mil de Dilmun: maçãs e cachos de uva, apresentados com elogios e juras de amor. Uttu, cheia de alegria, deu então as boas vindas ao arguto deus, e ele abraçou-a com feliz, por ter encontrado um novo amor. Beijos, abraços, toques carinhosos logo se sucederam, até o sêmen de Enki achar seu caminho para o útero ainda não explorado de Uttu.

Mais tarde, na madrugada daquela noite encantada, ainda nos braços de Enki, a dúvida entrou no coração, mente e corpo de Uttu.

"Esta noite tu me amaste com paixão, esta noite eu fui tua esposa, a única e a mais querida," ela pensou em silêncio, conduzindo um monólogo interior com o deus adormecido. " Mas será que vais me amar quando a manhã chegar? Será que vais nos dias seguintes com o mesmo carinho e paixão me abraçar? E será que irás querer doravante uma vida comigo compartilhar?"

Mas quando o dia raiou e Uttu olhou nos olhos de Enki, ela soube que ainda não era ela a escolhida do coração, da alma, mente e corpo de Enki. Com um beijo terno, o deus partiu, sem dizer quando e se voltaria. Uttu secou as lágrimas que teimavam em lhe escapar dos olhos, mas decidiu não se render à saudade, tristeza ou paixão não correspondidas.

- Eu juro não estar mais ligada a Enki a partir deste momento, Uttu prometeu a ela mesma, com um firme propósito em seu coração. Se ele não me quer por mim mesma, pelo que pudermos construir juntos, eu também dele vou desistir, não carregando nada dele comigo, dentro e fora de mim!

Uttu voltou-se então imediatamente para Ninhursag, pedindo-lhe ajuda. A grande deusa e Terra Mãe aconselhou-a da seguinte forma:

- Cara Uttu, limpa imediatamente o sêmen de Enki de teu corpo, e enterra nas profundezas da terra a promessa de vida que compartilhaste com ele. Deixa a Terra receber e transformar o que antes foi teu e de Enki. Depois que isto fizeres, dá tempo ao tempo, para que teu corpo, coração, mente e alma se recuperem. Quanto a mim, que tenho conhecimento e a experiência do amor e da dor, dou a ti, filha querida, uma bênção muito especial: que a sabedoria da experiência trazida por esta dor seja tua, e que aprendas a pedir tanto quando puderes e quiseres dar no futuro a outro (ou outros) a quem certamente irás amar. Lembre-se, querida, da palavra que faz todos os relacionamentos durarem para sempre: reciprocidade. Somente por ela, a dança de dar e receber, é que o amor nunca envelhece e se faz sempre presente, numa troca igual e constante.

Uttu deu o sêmen de Enki que tirou de seu corpo para Ninhursag. E onde a grande deusa enterrou o sêmen do deus, nove dias mais tarde oito plantas, luxuriantes e viçosas, começaram a crescer. Ninhursag riu de alegria e declarou o destino de todas elas:

- Das profundezas da terra, de meu útero da abundância, oito plantas cresceram para trazer mais bênçãos a todos os mundos! Oito são elas, e deste momento em diante, cada uma será ao mesmo tempo mãe e pai de todos os seres do Reino Vegetal que virão depois delas. Em verdade, em verdade eu afirmo que estas oito plantas serão as Primeiras Sementes de um novo grupo de seres, para crescer e se transformarem em vegetais, legumes, frutas e raízes, de coloração e formatos variados, para nutrir e crescer em Dilmun para a glória de todos os mundos!

E assim, conforme a palavra da Grande Deusa e Rainha de Toda Natureza, foi feito.

 

Depois de algum tempo, Enki retornou a Dilmun, feliz e lampeiro, como sempre. Ele não estava sozinho desta vez, mas em companhia de seu fiel conselheiro e amigo, Isimud. Conselheiro e deus estavam a passear pelos campos de Dilmun quando viram as oito luxuriantes e viçosas plantas.

- Que tipo de seres são estes, Isumud, meu fiel conselheiro e amigo? O que será que eles têm que despertam em mim um desejo tão antigo, uma curiosidade que só quero saciar? Quero provar estes frutos, com eles me deliciar! Disse Enki, apontando para as plantas mais próximas.

- Meu rei, estas são plantas, e a que está mais próxima de nós, é um tipo novo de árvore, respondeu Isimud com a eficiência e presteza de quem estava acostumado a satisfazer todos os desejos do deus das águas doces.

Ato contínuo, ele cortou uma amostra da planta e a estendeu a seu amo, que de imediato devorou o que lhe fora oferecido.

O gosto da primeira planta fez com que Enki quisesse conhecer a natureza das outras também. Ele perguntou a Isimud sobre a natureza das outras sete restantes, suas essências e gosto. Isimud respondeu ao seu senhor e amigo da mesma forma, cortando uma amostra de cada e passando-as a Enki, que as devorou imediatamente com alegria. Desta forma, Enki também passou a conhecer a essência, o coração do Reino das Plantas.

Mais tarde, Ninhursag, ao passar pelas plantas agora depredadas, tudo entendeu.

- Agora basta! Exclamou a deusa suprema da Natureza, furiosa com o desdém de Enki para com todos os seres vivos.

De imediato, ela foi ao encontro de Enki, a quem dirigiu-se com fúria mal contida:

- Enki, foste longe demais ao tentares conquistar todos os corações não apenas de jovens deusas, mas também de plantas que nem conhecias, mas que com gula e ganância ousaste devorar. É’ saudável sentir desejo e experimentar a necessidade de ser um com o amado. Mas há uma profunda responsabilidade implícita em se apaixonar, em cativar o corpo, mente, alma e coração de alguém, seja quem for em todos os mundos. Tu, Enki, apareceste num não de repente nas vidas de donzelas sagradas, como um posseiro, tomaste os corações delas, apenas para deixá-las depois, na saudade e na dor. Mas nem a conquista de inexperientes deusas-meninas te satisfez. Foste então até o recém criado Mundo dos Vegetais e Plantas, devorando com gula e ganância as oito plantas sagradas, sem nada a elas ou a ninguém em troca oferecer. Tu, Enki, nunca pediste permissão, mas tudo tomaste, como um gatuno e ladrão. Nem um sinal de reconhecimento mostraste, uma carícia, uma bênção ou agradecimento proferiste para aqueles que se deram a ti com generosidade e emoção. Para quantos trouxeste um pouco da morte do espírito, o destruir de esperanças e sonhos de uma vida compartilhada contigo? Por tudo isso, mereces uma poderosa lição, e arrogo-me neste momento o direito de dá-la a ti! Que aprendas, Enki, na doença e na tristeza o que não aprendeste na felicidade e alegria: até aprenderes a lição, não mais olharei para ti com os meus olhos que a tudo conferem vida, calor e fulgor. Que todo o sofrimento que causaste retorne a ti, sem dó ou compaixão!

Com estas palavras, a grande deusa Nnhursag desapareceu em poeira de luz, deixando Enki dividido entre a alegria de revê-la e a preocupação com as palavras que tinha proferido como despedida.

Pois de fato a saúde de Enki começou a se deteriorar. Uma estranha doença atacou o jovem deus: oito de seus órgãos começaram a morrer no corpo vivo de Enki. Os Anunaki, irmãos e irmãs de Enki, estavam desconsolados com o sofrimento dele. Anu, o deus do Firmamento, Enlil, o deus do Ar e irmão mais velho de Enki e de todos os deuses, todas as deusas e deuses, fizeram o que puderam para tratar de Enki, mas de nada adiantou. Somente Ninhursag não pôde ser encontrada em lugar algum, enquanto esforços não eram medidos para salvar o lento, mas inexorável progresso da doença de Enki, dia após dia.

Tão grave se tornou o estado do antes tão bem-humorado jovem deus das águas doces, artes e da mágica, que um dia Enlil deixou seu posto ao lado do leito de Enki, imerso em tristeza, preocupação e desespero pela saúde do irmão mais novo predileto. O poderoso deus do Ar sentou-se ao relento, exposto ao calor e ao pó, chorando lágrimas de dor:

- Um mundo sem Enki, que tristeza vai ser! Enlil chorou, sem seu humor, imaginação e energia, como poderemos todos viver?

Foi então que uma raposa, um dos animais sagrados de Ninhursag que estava passando por aquele lugar, veio consolar o poderoso deus do Ar:

- Vi o sofrimento do deus das águas doces, da mágica e das artes, testemunhei o lamento de Enlil, o primogênito dos Anunaki, por Enki, seu irmão predileto. Somente Ninhursag pode curar o deus adoecido, somente a rainha de toda Natureza pode devolver-lhe a saúde e a vida novamente. Farei o meu melhor para trazer minha Senhora e deusa, a grande, sábia e poderosa Ninhursag a quem por juramento eu sirvo, por devoção eu adoro até o final de meus dias. Prometo encontrar a grande deusa e trazê-la para que cure o deus que pena no leito de dor.

A raposa desapareceu, mas cumpriu sua palavra, pois Ninhursag veio de imediato até o leito de Enki. O jovem deus estava deitado em agonia em seus aposentos. Com um aceno de sua mão poderosa, Ninhursag ordenou que todos saíssem do quarto, sem exceção. O trabalho de enfermeiras, médicos e sacerdotes especialistas em preces de cura estava encerrado. O trabalho de Ninhursag, porém, estava apenas começando.

 

Com imensa ternura, a deusa máxima de toda natureza acomodou-se no leito, cuidadosamente colocando a cabeça de Enki na sua vagina. Ela então inclinou-se para frente, cobrindo toda a extensão do corpo de Enki com o seu, enrolando seus braços e pernas ao redor do deus das águas doces, da mágica e das artes. Enki foi carinhosamente abraçado pela grande deusa, tal qual um útero quente, fecundo e nutriz alimenta o ser que está para nascer.

Ninhursag sussurrou suavemente no ouvido de Enki:

- Enki, caro, o que te dói?

- Ah, Ninhursag, todo meu corpo dói, Enki respondeu com visível esforço.

Ninhursag, com grande cuidado, balançou gentilmente o deus doente:

- Eu sei que todo o teu corpo dói, adorado, mas logo irás te sentir melhor, assim que eu começar a receber no meu útero, o ninho da criação, as sementes que com tanta gula devoraste e que tanto mal te fizeram. Uma a uma, eu as receberei no meu corpo para que elas possam trazer cura, e não mal, para ti e todos os seres vivos. Pelas asas do meu desejo, pela vida e felicidade que a todos almejo, que comece a Cura!

Enki sentiu que não mais podia mover um dedo sequer. Ao mesmo tempo, um calor agradável começou a se espalhar ao longo de todo seu corpo, trazendo uma nova vitalidade consigo. Enki ouviu a voz de Ninhursag ressoar em todo seu ser:

- A primeira semente que comeste e te fez doente, eu tomo o poder dela dentro de mim e a transformo numa deusa, numa jovem irmã para ti, Enki. Desta forma, dei à luz à deusa Abu para liberar o teu corpo da dor.

A grande deusa continuou o poderoso ritual de cura, perguntando a Enki o nome dos órgãos que lhe tinham sido afetados:

- Querido, o que te dói?

- Meu queixo me dói.

- `A deusa Nintula, eu dou à luz para livrar o teu queixo da dor. Onde mais dói, meu amor?

- Meu dente dói.

- `A deusa Ninsutu, eu dou à luz para livrar o teu dente da dor. Onde mais sentes dor, Enki adorado?

- Minha boca dói.

Ninhursag beijou a boca de Enki:

- `A deusa Ninkasi, eu dou à luz para livrar tua boca da dor. Que mais te dói, meu amado?

- Minha garganta dói.

Um toque tão leve quanto uma folha ao vento Enki sentiu na sua nuca, atrás da garganta, e Enki ouviu Ninhursag dizer:

- `A deusa Azimua, eu dou à luz para livrar tua garganta da dor. Que mais te dói, meu amor?

- Meus membros doem.

- `Ã deusa Enshag, eu dou à luz para livrar teus membros da dor. E o que mais de dói, querido?

- Minha costela me dói.

- `A deusa Ninti, a Senhora da Costela e Aquela que Faz Viver, eu dou à luz para liberar tua costela de toda dor, mal estar ou dissabor.

No momento em que Ninhursag pronunciou a última palavra, Enki parou de sentir qualquer dor, febre ou tremor, revigorado e mais forte do nunca. De fato, era como se tivesse renascido do abraço apertado, da essência de Ninhursag.

- Eu estou vivo! exclamou Enki muito simplesmente, refletindo porém encanto e maravilha. Mas sinto-me diferente do momento em que saí dos mares de mãe Namu, ou quando encontrei Ereshkigal no Mundo Subterrâneo. Há definitivamente algo novo em mim, uma nova Sabedoria, e esta, sei agora, veio de ti.

Ele moveu-se nos braços de Ninhursag, pois queria ver a face dela. A grande deusa tinha fechado os olhos e estava respirando profundamente, tal qual um atleta recuperando-se depois de uma maratona vencida. Mas havia um sorriso nos lábios de Ninhursag. Ela estava reclinada nos travesseiros de Enki, ainda envolvendo-o num frouxo abraço.

Agora foi a vez de Enki agir com imensa ternura ao trocar de posição para fazer Ninhursag repousar no seu peito.

- Tu me curaste mandando a tua alma para dentro do meu corpo, ele disse, profundamente comovido pelo Dom da Vida que havia recebido, e mais. Esta é a razão pela qual estás tão cansada. E o motivo pelo qual eu me sinto tão mais parte de ti, meu amor, como conseqüência. Vejo o mundo agora com novos olhos, olhos que são meus, mas ao mesmo tempo têm muito de ti. Como pude ser tão cego para não entender o que sentia por ti até agora? Todo tempo, era a ti a quem eu queria, teu abraço, teu toque. A diferença é que antes eu te queria para mim mesmo apenas, e desta forma desejava todas as outras donzelas, porque elas tinham um pouco de ti. Mas elas certamente não eram tu, minha adorada, e eu não fazia idéia da extensão do meu desejo por ti e tu somente. Como fui tolo de te procurar em outras, como devo ter ferido as jovens deusas por não reconhecer o desejo maior de meu coração, meu corpo e minha alma!

Eles se beijaram apaixonadamente.

- Sabedoria verdadeira tens agora, meu amor, decretou Ninhursag um novo destino para Enki, agora que ele tinha renascido dela também. Que seja sabido que de agora em diante, além de protetor das águas doces, das artes e da mágica, pelo meu poder e pelo meu amor, serás também o guardião dos dons da Sabedoria! Creio também que agora sabes com toda certeza que eu jamais te prenderia contra a tua Verdadeira Vontade, amado. E agora que finalmente entendeste este grande mistério, pois tu e eu realmente fomos feitos um para o outro, que todos os mundos saibam o algo maravilhoso agora por mim acordado: eu, Ninhursag, a Terra Mãe, a mais sábia de todos os seres a respeito dos jeitos e trejeitos da Natureza, construí uma casa para mim e meu amor numa rocha, sólida e firme....

Enki interrompeu-a com um beijo longo e molhado:

- Deixe-me acabar isto por ti... por nós, adorada. Eu, Enki, o deus das águas que vêm das profundezas da terra, das artes, mágica e feito agora guardião dos Dons da Sabedoria, digo que desta rocha forte e sólida, da qual surgiu a vida no Mundo Físico e que significa o amor para mim, irão brotar as Águas mais Doces para saciar a sede e nutrir tudo o que existe em todos os mundos que juntos trilharmos!

Um forte abraço selou os destinos compartilhados que ambos estavam assumindo, por tanto tempo quanto quisessem.

- Por ti, eu fiquei aqui em Dilmun, o reino das delícias, onde está-se livre de todo ódio e dor, continuou Enki. Agora sei que me fizeste adoecer, a fim de que eu pudesse ver que o que sinto por ti é maior do que amizade ou mesmo amor. Agora sei que mesmo se não pudermos estar juntos o tempo todo, separados jamais pela eternidade ficaremos. Só me diz uma coisa, amante mais amada, tinhas de ser realmente tão radical a ponto de lançar sobre mim o olho da morte?

De fato, Enki havia voltado ao seu normal, a mente ativa do deus das artes e da mágica querendo fazer todas as perguntas e saber de todas as respostas. Alegria imensa invadiu Ninhursag, e seu riso ecoou cheio de felicidade e um pouco de malícia também:

- Isto, Enki, tu jamais irás descobrir, enquanto eu viver!

Enki riu, desapontado e feliz ao mesmo tempo. A vida com Ninhursag jamais seria aborrecida, isto ele sabia agora com certeza. Ela provavelmente deixá-lo-ia louco com sua segurança, argúcia, garra e jeito apaixonado no futuro. Mas Ninhursag era o futuro que Enki queria ter como seu, ele a amava e ela seria sempre a primeira no seu coração, a companheira da alma, sua Rocha de Estabilidade e Força, tudo o que uma deusa poderia significar para um deus. E se ele provavelmente jamais poderia vencê-la em argúcia e encanto, pelo menos Enki sabia muito bem como deixar Ninhursag calada por momentos muito longos.

Foi exatamente o que Enki então se pôs a fazer. Com habilidade perfeita e determinação ele começou a beijar o corpo da amada. Todo ele.

 Notas:

(1) A literatura criada pelos Sumérios deixou profunda impressão nos hebreus, e um dos aspectos mais fascinantes de reconstruir mitos e poemas épicos mesopotâmicos consiste em traçar as semelhanças, oposições e paralelos entre as criações hebraicas e sumérias. Deve-se salientar que ‘ os sumérios não poderiam ter influenciado diretamente os hebreus, pois haviam como povo deixado de existir muito antes dos povos hebreus começarem a existir. Mas há muito poucas dúvidas de que os sumérios influenciaram profundamente os cananeus, que precederam os hebreus na terra hoje conhecida como a Palestina" (Kramer, Samuel Noah, History Begins at Sumer,1981:142). Algumas comparações com o relato do Paraíso e de Adão e Eva da Bíblia podem ser feitas com o presente mito: 1) a idéia de um paraíso divino, o jardim dos deuses, é de origem suméria, e era conhecido como Dilmun, a terra dos imortais, situada a sudoeste da Pérsia. Também é neste mesmo Dilmun onde os babilônicos, ou seja, o povo semítico que conquistou os sumérios, localizaram a sua terra dos imortais. Existem boas evidências de que o paraíso bíblico, que é descrito como um jardim situado ao Leste do Éden, seja idêntico a Dilmun, e um exemplo disso é que do paraíso bíblico fluem as águas dos quatro rios importantes para a Antigüidade Clássica, inclusive o Tigre e o Eufrates; 2) a irrigação de Dilmun feita por Enki, o deus das águas doces, das artes, mágica e sabedoria, e pelo deus Sol Utu com águas vindas do fundo da terra tem paralelo bíblico, pois no Gêneses 2:6 está escrito que "mas eis que uma névoa subiu do interior da terra e lavou toda a face do solo".

 (2) O mais notável é que este mito fornece uma explicação para um dos motivos mais intrigantes do mito de Adão e Eva da Bíblia, ou seja, a famosa passagem descrevendo a criação de Eva a partir da costela de Adão. Vejamos o que o emérito sumerologista Samuel Noah Kramer tem a nos dizer sobre isto: " Por que uma costela, ao invés de qualquer outra parte do corpo para criar a mulher cujo nome Eva, de acordo com a Bíblia, significa " aquela que faz viver "? Se olharmos para o mito sumério, vemos que Enki adoece pela maldição de Ninhursag, e que uma das partes de seu corpo que começa a morrer é a costela. A palavra suméria para costela é "ti". Para curar cada um dos órgãos enfermos de Enki, Ninhursag dá à luz a oito deusas. A deusa criada para curar a costela de Enki é chamada de ‘Nin-ti", "a Senhora da costela" [ Nin, em sumério, quer dizer dama, senhora: Nota da autora]. Mas a palavra suméria "ti" também significa "fazer viver". O nome "Nin-ti" pode, portanto, significar "a senhora que faz viver", bem como "a senhora/dama da costela". Portanto, um trocadilho literário extremamente arcaico foi levado à Bíblia e lá perpetuado, mas sem o seu sentido original, pois em hebraico a palavra para costela e para " aquela que faz viver" não têm nada em comum. Além do mais, ao invés de Adão ter dado vida à Eva, é Ninhursag que dá sua essência de vida a Enki, que então renasce dela" (Kramer, ibid. 1981:143-144).

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