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POVO EFERVECENTE

De Samuel Noah Kramer, da série Grandes Civilizações da série Time-Life, Volume Mesopotâmia – Berço da Civilização, Capítulo 4, Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1969. @Todos os direitos reservados ao autor. Texto reproduzido aqui para auxílio em estudos em pesquisas apenas.

 "Olhai para tudo isto ainda hoje: a muralha exterior, com a cornija que a adorna, resplandece com o brilho do cobre; e a muralha interior, não tem igual. . . Galgai a muralha de Uruk (Erech) ; caminhai ao longo dos muros, digo eu; vede a plataforma em sua base e examinai a construção; não é de tijolo cozido ao fogo e sólida?" Essas linhas, que convidam à admiração de tais muralhas, são de uma narrativa épica sobre Gilgamesh, o rei que levou Erech à hegemonia sobre toda a Suméria, por volta do século XXV li a.C, Suas palavras expressam eloqüentemente o patriótico orgulho com que os antigos mesopotàmios contemplavam sua cidade.

Muitas dessas cidades eram, de fato, magníficas, com grandes edifícios públicos, parques de efeito panorâmico, e ruas que obedeciam a um desenho quadriculado. Por exemplo, Agade, construída por Sargão, o Grande, no século XXIV a.C., e cuja localização ainda não foi descoberta, gozou fama de ser esplendorosa; segundo uma inscrição da época, "as moradias de Agade estão repletas de ouro. suas casas reluzentes são cheias de prata. . . seus muros erguem-se para o céu como uma montanha. . , ". Também imponentes eram outras capitais assírias, planejadas com esmero, como Calah e Dur-Sharrukin. E Babilônia, quando reconstruída por Nabucodonossor II, maravilhou todo o mundo antigo.

Essas grandes metrópoles, porém, constituíam exceção. Em sua maior parte, as cidades rnesopotâmicas resultaram de aldeias e vilas pré-históricas que se foram-se expandindo, e, portanto. não tiveram as vantagens de um planejamento urbano. Mas se nos seus elementos materiais a cidade rnesopotâmicas passou por transformações e melhorias no curso dos séculos, muitos dos seus aspectos menos tangíveis mantiveram-se refratários à ação do tempo; os moldes da vida social, política, religiosa e econômica, que surgiram nas primeiras comunidades urbanas do mundo, as dos sumérios, caracterizaram, de: um modo geral, todas as cidades mesopotâmicas das fases posteriores.

Por trás das muralhas de defesa que circundavam uma típica cidade mesopotâmica, a maioria das ruas não passava de vielas estreitas, tortuosas, sem pavimentação e sem trato. Não havia serviço municipal de esgoto nem sistema de coletar o lixo; das casas de adobe. espremidas umas contra as outras, todo o refugo era de forma descuidada lançado às ruas, e lá se acumulava até se levantar acima das soleiras. Aqui ou ali, a residência mais espaçosa de algum homem abastado sobressaía das habitações vizinhas. mas em geral as casas de paredes grossas eram compostas de aposentos sem janelas e de portas baixas, dispostos em torno de um pátio aberto. Assim, grandes trechos de todas as cidades mesopotâmicas eram de aparência triste e sem atrativos.

Contudo, o que faz uma cidade é o povo, mais do que as casas ou as ruas, e os mesopotàmios achavam a sua vida urbana bem divertida, excitante, às vezes até inspiradora. Em cada cidade, havia algumas ruas largas, onde os cidadãos e suas famílias passeavam despreocupadamente, encontravam amigos e conhecidos, apreciavam e comentavam o movimento, sentindo-se, via de regra, em íntima comunhão com seus semelhantes. Existia, além disso, o animado bazar , o qual, segundo Sir Leonard Woolley, que escavou a área de um deles, em Ur, deve ter sido bem pouco diferente dos bazares ainda vistos nas cidades atuais do Oriente Próximo - um labirinto de passagens estreitas, com toldos de proteção contra o sol causticante, e barracas alinhadas. Ali, o morador da cidade podia escolher suas provisões cotidianas dentre uma grande variedade de víveres, nos quais se incluíam cebolas, feijão e pepinos, assim como tâmaras, maçãs e outras frutas, queijos e especiarias, peixe seco, carne de carneiro, de porco, de pato, dentre outros.

Ali, também, poderia ele encontrar, entre os vasos de cerâmica, os tecidos e outros produtos locais, artigos de luxo importados. como pentes de marfim vindos da Índia, contas de cornalina trazidas do Irã. Os achados de Woolley em Ur indicam, também, que nas vizinhanças do bazar podiam existir restaurantes onde os compradores se detinham para comer um prato de peixe frito ou de carne grelhada.

Cada cidade possuía, ainda, a sua atraente praça pública, que se abria em meio aos confusos blocos de casas. Ali havia muitos entretenimentos e diversões - partidas de luta corporal, jogos de azar, recitais por narradores profissionais de histórias, e outras atrações - para tentar distrair do seu caminho talvez o jovem que ia à escola. Para o adulto de índole irrequieta e propenso ao prazer, havia a ruidosa taverna, onde podia gozar a antiga versão de "vinho, mulheres e canções".

Para dar refrigério e conforto espiritual, havia o templo altaneiro e o seu ainda mais alto zigurate, a torre-santuário que se lançava para o céu. Da mesma forma, as imagens dos grandes deuses tinham a seu viço e, para abrigá-Ias, para vesti-las e lhes ofertar alimentos, havia os sacerdotes e sacerdotisas instruídos, familiarizados as necessidades e exigências dos seus hóspedes celestiais. Porque, de acordo com a crença partilhada igual pelos sumérios, babilônios e assírios, o bem-estar comunidade dependia inteiramente do favor deuses. Importava acima de tudo conservar as graças da divindade protetora, a partir da qual, em teoria, embora não na prática era a senhora não só da cidade e dos seus habitantes, como também das lavouras, dos pomares e adjacentes.

A incumbência de gerir essa propriedade leste era confiada a um mortal, um rei provavelmente aprovado pelos deuses para servir como representante terreno. Nas primeiras cidades, o rei era eleito por uma assembléia bicameral de cidadãos livres - uma câmara alta para a elite e uma câmara baixa de homens em idade de armas. O rei só exercia sua função durante emergência, em geral uma guerra, e dependia do consentimento da assembléia em todos os membros da assembléia de maior importância. Mas a partir de cerca de 2800 a.C. a realeza ganhou caráter duradouro e acabou por se tornar hereditária. Apesar disso, persistiu o sistema democrático de conselho para consulta e aprovação estabelecido primeiros tempos da Suméria, e que influenciou o reinado de todos os monarcas posteriores da Mesopotâmia.

Como administrador da propriedade dos deuses e deusas locais, o rei tinha muitos deveres seculares e religiosos, que cumpria com o auxílio de uma vasta burocracia de conselheiros, intendentes, inspetores, escribas e outros funcionários. O primeiro e maior dever do rei era defender a cidade e suas terras contra os ataques inimigos e ampliar o seu território e domínio de influência. Portanto, o rei tinha de manter sólidas as muralhas da cidade, recrutar e organizar tropas, exercer o comando nas batalhas e usar de habilidade em negociações diplomáticas.

Outros encargos do rei eram de natureza mais construtiva e fecunda. Como chefe tradicional do clero, uma das suas obrigações mais sagradas consistia na edificação e reparação dos templos da cidade. Como supervisor das obras públicas, cabia-lhe manter e expandir os canais de irrigação que rendilhavam as terras de lavoura e melhorar a rede dos grandes canais navegáveis que davam escoamento ao tráfico da cidade e das suas povoações satélites. Quase todos os monarcas da Mesopotâmia que deixaram registros escritos gabaram-se de suas atividades na construção de templos, na .abertura de novos canais e na reparação e alargamento dos antigos. Os reis também se ufanavam de manter em bom estado de uso todas as estradas e caminhos que cortavam o seu território. Por exemplo, Shulgi, um dos reis de Ur, no século XXI a.C., descreve a si mesmo como um "lépido, ligeiro viajante pelas estradas da terra " e congratula-se por haver construído uma série de pousadas pitorescas onde os viajares podiam passar uma noite reparadora.

No plano da ética e da moral, cabia ao soberano promover e garantir a lei e a justiça no seu reino, para que os pobres e fracos não fossem oprimidos, as viúvas e os órfãos não padecessem maus tratos e o cidadão comum não sofresse nas mãos de funcionários arrogantes e corruptos. Para dar ao povo conhecimento dos seus direitos e prevenir assim decisões injustas, os reis promulgavam regulamentos, editos e códigos de leis. Entretanto, a paixão dos mesopotâmicos por lei e justiça não vinha unicamente de ideais elevados. Resultava também do seu temperamento individualista, propenso à competição, e do grande apreço que atribuíam à propriedade privada. Já em 2500 a.C., logo depois de inventada a escrita, alguns mesopotâmicos haviam começado a inscrever suas transações - verdadeiros contratos e escrituras referentes a venda de casas, terras e mesmo escravos - em placas de argila. Tais documentos consignavam, em forma duradoura a que se podia reportar com facilidade em qualquer tempo, negociações firmadas entre pessoas. Já que estabeleciam precedentes para ações futuras, daí nasceu, como conseqüência inevitável, uma das maiores contribuições dos mesopotâmicos à civilização - um sistema lógico de leis escritas.

O mais antigo código que se conhece, o protótipo de todos que vieram depois - sumerianos, babilônicos e assírios - é o de Ur-Nammu, que reinou sobre a cidade sumeriana de Ur por volta de 2100 a.C. Entretanto, mais preservado e mais amplo é o código baixado por Hamurábi, de Babilônia. Embora tenha surgido três séculos após o de Ur-Nammu, suas quase 300 leis oferecem de maneira indireta um retrato revelador da antiga sociedade mesopotâmica e espelham um estilo de vida que sofreu poucas modificações de caráter substancial no curso de dois ou três milênios.

O código de Hamurábi é fundamentalmente uma coleção de leis minuciosas que definem toda a sorte de crimes e contravenções e especificam as diversas e terríveis penalidades correspondentes. Ao que parece, a sociedade mesopotâmica tinha o seu quinhão de assassinos, gatunos e concussionários, assim como de adúlteros e de construtores inescrupulosos. Por exemplo, uma lei dispõe que "se a esposa um homem for apanhada na cama com outro homem, os dois serão amarrados e lançados na água. Se o marido da mulher quiser poupá-la, o rei também poderá poupar o seu súdito". Outra lei estabelece que "se um construtor faz uma casa para um homem, porém não dá solidez à obra, resultando daí que a casa venha a ruir e causar a morte, seu construtor será condenado à morte".

Mas, não obstante essas indicações em inverso, o código de Hamurábi, como aqueles que o sucederam, retrata em geral uma sociedade bem organizada, na qual alei e a ordem tinham papel predominante, uma sociedade onde até o indivíduo de mais baixa condição parecer possuir certo amparo legal.

A estrutura dessa sociedade era composta de três classes distintas: uma aristocracia, a massa dos cidadãos comuns e uma minoria cravos. A aristocracia era constituída por um certo número de famílias ricas e poderosas, da qual vinham os mais importantes sacerdotes do templo, e em cujo seio seio o rei ia buscar os seus conselheiros, e mercadores, generais e outros funcionários de alto escalão. A riqueza e a influência dessas famílias ricas resultavam principalmente de suas grandes propriedades rurais. Embora o deus ou deusa - e conseqüentemente sua casa, o seu templo - fosse em teoria o(a) proprietário(a) de todas as terras da cidade, só uma porção dessas terras ficava retida junto ao templo, para a manutenção do seu pessoal. O restante pertencia ao palácio ou a cidadãos e suas famílias. Por meio da compra dos indivíduos menos abastados, os grandes senhores adquiriram muitas de suas propriedades.

No extremo oposto da escala social estavam os escravos. Nas cidades sumerianas, a maior parte deles pertencia ao templo, ao palácio e às propriedades opulentas. Contudo, nos tempos de Babilônia e da Assíria não era raro que vários escravos se incluíssem no pessoal de uma casa de classe média. Nem o número d~ escravos era constituído somente por prisioneiros de guerra; premido por dívida ou pela fome, um cidadão livre podia vender os seus filhos, ou a si mesmo e toda a família, como cativos. Mas na Mesopotâmia a vida de um escravo de bom comportamento não era de ininterrupta provação: tinha ele condição legal para tomar parte em negócios, fazer empréstimos e comprar a sua liberdade.

Entre os dois extremos sociais - os aristocráticos senhores de terras e os escravos - situavam-se os cidadãos comuns, que constituíam o grosso e a espinha dorsal da sociedade. Eram os elementos produtivos da cidade - os arquitetos, escribas e comerciantes, fazendeiros, criadores de gado e pescadores, os carpinteiros, os oleiros e ceramistas, os que fabricavam artefatos de couro, os que fundiam e moldavam metais. Muitos desses artífices de aptidões ou ocupações especializadas serviam ao "proprietário" mais rico da cidade, o templo, e como retribuição pelo seu trabalho ou Ihes eram concedidos pequenos lotes de terra cultivável ou recebiam rações de alimentos e de lã para as vestes. Segundo os assentamentos de um templo sumeriano, contava ele entre seus empregados 100 pescadores, 90 pastores, 123 marinheiros, pilotos e remadores, 25 escribas e 20 a 25 artífices de várias categorias. Muitos outros trabalhadores especializados eram dependentes do palácio ou labutavam nas propriedades da aristocracia, e provavelmente eram pagos da mesma forma como os empregados do templo. Além disso, havia os artesãos que trabalhavam por conta própria, vendendo seus artigos no bazar com o pagamento feito em espécie ou num peso-padrão, de prata.

Embora a prosperidade de uma cidade mesopotâmica dependesse dos esforços combinados e habilidades dos seus obreiros, havia duas ocupações que eram especialmente vitais para a manutenção da vida urbana. Uma era a do agricultor, cultivando os cereais que forneciam o alimento básico para o rei, o cidadão livre e também o escravo. A outra era a do negociante, o mercador que fazia viagens freqüentes por toda parte, a trocar os produtos em excesso na cidade por artigos que não podiam ser obtidos localmente.

Desde os tempos pré-históricos, quando a Mesopotâmia era pontilhada de aldeias e vilarejos agrícolas, o lavrador vinha sendo a viga mestra da economia da região. Mas com o surgimento de cidades populosas na Suméria, Babilônia e Assíria algumas contando mais de cem mil bocas para alimentar - o papel do agricultor ainda se tornou mais importante.

O trigo crescia nos campos que circundavam a cidade, porém o cereal mais extensamente cultivado era a cevada, que germinava mais rapidamente no solo um tanto alcalino e salino da Mesopotâmia. Seus grãos podiam ser batidos até se tornarem partículas grosseiras e cozinhados numa espécie de mingau, ou podiam ser moídos e transformados em farinha, sendo então cozidos em forma de pão chato. não levedado, o mesmo que ainda se come em todo o Oriente Próximo. A cevada era também o elemento básico para a cerveja rica em proteína que os antigos mesopotâmicos saboreavam.

Já no Terceiro Milênio a.C., ou talvez mesmo antes, o lavrador mesopotâmico já havia aprendido a obedecer a um calendário agrícola, obtendo com isso ótimos resultados. Um dos mais notáveis documentos que chegaram até nós é um almanaque do agricultor, do século XVIII a.C., contendo instruções explícitas para uma boa colheita. O almanaque principia com recomendações sobre o tempo, maio ou junho provavelmente, em que o campo do lavrador seria inundado, como fase preparatória ao uso do arado, e descreve tudo de importante afazer até o cereal ser colhido, joeirado e limpo. Ao irrigar o terreno para ser lavrado, por exemplo, o agricultor é instruído: " . . . fique de olhar atento às aberturas dos diques, taludes e regos [para que] a água não suba demais quando o campo for alagado. . . Deixe que os bois com ferradura nas patas calquem o terreno para vocé; depois que as ervas daninhas tenham sido arrancadas [por éles e] o campo estiver aplainado, lavre-o com enxadas estreitas pesando [não mais do que] dois terços de libra cada uma". Também é descrito de forma minuciosa o modo correto de se colocar a semente na terra e o agricultor é também advertido para que ". vigie o homem que coloca as mentes de cevada. Faça que ele ponha o grão com firmeza, com dois dedos de profundidade. ..a semente da cevada não cair da maneira de . o seu quinhão será prejudicado". Finalmente, lavrador é recomendado não "deixar que o galho se penda sobre si mesmo" e sim que o agricultor deve fazer a colheita quanto "o galho estiver [plenamente] levantado ".

Mas se a esfera de atuação do agricultor concentrava-se nos campos e celeiros, a do mercador-viajante era praticamente sem limites. Era ele quem mantinha as cidades da Mesopotâmia não só em contato umas com as outras mas também com muitas regiões distantes do mundo antigo. A ele também se deve a criação do bazar, que contribuiu imensamente para os prazeres da vida urbana.

Provavelmente até mesmo as aldeias primitivas da região tiveram seus pequenos negociantes, que trocavam os produtos de uma propriedade pelos de outra na vizinhança. Contudo, o comércio a longa distância era essencial para as cidades mesopotâmicas, pois se produziam cereais em excesso e contavam com rebanhos de carneiros que forneciam uma superabundância de lã, não tinham bastante madeira, pedra e metal para construção ou para os requintes reclamados pelos templos, palácios, propriedades de gente rica e até pelos cidadãos em geral.

Assim, foram aparecendo os mercadores ousados e cheios de iniciativa. No curso dos séculos, esses negociantes argutos e aventurosos aprenderam a guiar suas caravanas de muares pelo desolado deserto da Síria até a costa do Mediterrâneo, ou pelos desfiladeiros dos montanhas de Zagros até o Irã, ou tão ao norte como o lago Van, na Armênia. Dobravam o golfo Pérsico, para chegar à lndia distante, ou atravessavam amar da Arábia para traficar com a Somália e a Etiópia, na África. Em troca dos cereais, da lã e dos tecidos, que constituíam as suas cargas, traziam na volta ouro, prata, cobre e chumbo, as madeiras de que havia maior necessidade, como cedro e cipreste, e artigos de luxo, que incluíam marfim, pérolas e conchas, assim como cornalina, malaquita, lápis-lazúli e outras pedras semipreciosas. Juntamente com esses artigos exóticos os negociantes também retomavam com encantadoras histórias de povos estrangeiros, com seus idiomas esquisitos, seus costumes singulares, seus misteriosos ritos e crenças. De fato, mais do que os instruídos sacerdotes e escribas, foram esses mercadores itinerantes que alargaram o horizonte dos seus compatriotas e ajudaram a fazer da cidade mesopotâmica uma palpitante e requintada metrópole.

Para aumentar este amplo painel da vida citadina na Mesopotâmia há numerosos detalhes fornecidos pelas plaquetas desenterradas com inscrições cuneiformes, pelas ruínas dos edifícios e pelos fragmentos de utensílios. Por exemplo, as escavações têm mostrado que, enquanto um membro qualquer da classe obreira residia em humilde casa de adoôbe, com um só pavimento, um agricultor, comerciante, escriba ou artífice, morava confortavelmente, graças à prosperidade obtida com seus serviços. Remanescentes de habitações que pertenciam a cidadãos sumerianos de certa abastança próximo a Ur e datando do século XX a.C. refletem um padrão de vida surpreendentemente elevado e mostram que tais moradias se equiparavam, exceto em alguns pormenores, às dos assírios e babilônios bem posteriores, nas mesmas condições econômicas.

Tais residências consistiam numa estrutura de dois pavimentos feita de tijolos secos ao sol ou cozidos em forno, cuidadosamente caiada por dentro e por fora, e bem protegida contra o chamejante sol mesopotâmico por paredes que às vezes chegavam a ter dois metros de espessura. Um pequeno vestíbulo de entrada conduzia a um pátio pavimentado de tijolos com um bueiro central para o escoamento da água na chuvosa estação do inverno. Abriam-se para o pátio as portas dos compartimentos no andar térreo. O número destes aposentos podia variar de casa para casa, mas em geral comportava uma sala, onde os visitantes eram recebidos e festejados, e onde poderiam mesmo passar a noite; um lavatório; a cozinha com seus fogões e utensílios de cerâmica, pedra e cobre; um quarto de criados e uma oficina de trabalho que provavelmente servia também como depósito. No rés-do-chão podia existir uma pequena capela onde eram reverenciados os deuses do dono da casa, e sob algumas residências havia mausoléus para o sepultamento dos membros da família. Um lance de escada levava ao segundo pavimento, onde uma galeria de madeira, com cerca de um metro de largura, e apoiada em caibros, corria ao longo do pátio, conduzindo aos aposentos privados da família. Provavelmente uma escada de mão dava acesso ao teto em declive, sobre o qual a família ia às vezes dormir nas claras noites do verão. A casa era simples mas confortavelmente guarnecida, com leitos e canapés, cadeiras e mesas, e havia arcas de madeira ou vime para guardar as roupas. Tapetes cobriam o chão e coloridas colgaduras decoravam as paredes.

Como era de se esperar, os reis viviam de maneira bem mais faustosa, e a prova disso é fornecida por Mari, a cidade da Mesopotâmia ocidental que Hamurábi destruiu no século XVIII a.C.O palácio de Mari, um conjunto colossal, de quase sete acres, abrangendo pátios abertos e cêrca de 300 salas - algumas das quais lindamente decoradas com pinturas murais - está extraordinariamente bem preservado e é tido como um exemplo marcante de moradia e centro de ação administrativa de um governante mesopotâmico. Os milhares de documentos cuneiformes que compõem os seus arquivos, combinados com os restos arquitetônicos, habilitam os estudiosos a reconstituírem muitos aspectos da vida palaciana e apresentam um quadro da corte em sua conduta cotidiana, que passou por bem poucas variações no curso dos séculos.

Os antigos mesopotâmios começavam o dia bem cedo, logo após o alvorecer, para aproveitar o relativo frescor das horas matinais; e parece que tais horas foram as escolhidas pelo rei de Mari para dar suas audiências públicas.

Em seu trono sobre um estrado, tendo ao redor os ministros e membros da guarda, o rei recebia solenemente embaixadores de outras cortes. Além de mensagens diplomáticas referentes a tratados comerciais, pedidos de ajuda militar e outros assuntos dessa ordem, os emissários costumavam trazer presentes de seus monarcas; os arquivos de Mari revelam que um rei da Síria setentrional enviou ao soberano daquela cidade uma dádiva de vinho fino e prometeu mais. "Se não tiverdes bom vinho para beber - escreveu ele - mandai-me um aviso e eu vos mandar-vos-ei vinho bom".

Evidentemente, o rei reservava boa parte da audiência diária às questões do seu próprio reino.

Informes dos funcionários que administravam as diversas localidades integrantes do estado tinham de ser ouvidos, examinadas as matérias, ditadas as ordens e instruções; demandas legais demasiadamente sérias para ficarem a cargo de qualquer autoridade menor eram levadas à atenção e decisão do governante; se a seca havia assolado um distrito de pastagens, cabia ao rei providenciar para que os rebanhos fossem para outra zona; se uma tribo nômade invadira uma área cultivada, incumbia ao soberano despachar tropas afim de prevenir outras incursões. Até matérias triviais, como a fuga de uma esposa de cidadão privado, eram levadas ao conhecimento do rei, e sua ajuda era pedida para que a mulher voltasse ao lar.

Como o rei personificava na terra o deus ou deusa tutelar da cidade, entre as suas incumbências habituais se incluíam diversas atividades religiosas. Estas poderiam ser a visita ao templo da divindade para informá-la sobre o bem-estar da região, a oferenda de sacrifícios para assegurar a continuação da proteção celestial, ou oficiar em certos rituais, como o da purificação do local destinado a um novo templo.

Entretanto, nem todas as horas do dia eram empregadas pelo rei em assuntos sérios. Sabe-se, por exemplo, que uma das refeições cotidianas no palácio de Mari era um banquete real de que participavam visitantes ilustres e os membros da nobreza a quem o rei desejava honrar de maneira especial. Havia também diversões da corte, com música, danças e recitais. Escravas eram cuidadosamente adestradas no uso de instrumentos como harpas, liras e flautas de caniço, e poetas e menestréis divertiam o rei com representações de suas obras.

Desde o brilhantismo de suas cortes reais até à vida bem regulada do conjunto social, as cidades que surgiram e se desenvolveram na Terra Entre os Rios prestaram, sem dúvida, relevante contribuição ao progresso humano. Sem a ordem e a segurança estabelecidas dentro de suas muralhas não teriam florescido os complexos elementos que compõem uma civilização - a escrita, um sistema legal, um alto nível de organização política, a especialização das artes e ofícios. O entrelaçamento desses fatores, que pela primeira vez foi realizado na antiga Mesopotâmia, produziu o molde de existência urbana que sobrevive até hoje.

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