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A CHUVA

(Gil Perini)*


Quando ameaça chover no cerrado, aparece o vento geral. O mundo inteiro está seco, esturricado, e o capim que mal brota é rapado por um gado magro que cambaleia bêbado de fome, dia e noite, berrando feito assombração. O fogo completa o estrago - onde não ficam cinzas, jaz exposta a nudez do areal. Pequenos redemoinhos misturam areia e cinza, estralam folhas, derrubam sementes, ziguezagueando entre árvores e pedras, mal guiados pelos seus demônios, seus sacis.

0 grande vento chega de tarde e se anuncia de longe. Antigamente levantava um barrado cinza e dourado no horizonte, misturando as cinzas das queimadas com folhas secas, amarelas, que brilhavam ao sol. Junto com as folhas secas voavam as sementes do cerrado, aladas, imitando borboletas, transportadas a grandes distâncias.

Hoje o vento levanta a poeira dos chapadões arados e o cinza-dourado agora é vermelho e a poeira do grande vento entra nas casas, sufoca as pessoas e se espalha deseducadamente sobre todas as coisas.

"Vai chover! Pra dentro, menino!"

 

Ele se lembrava muito bem do último vento que levantou a barra dourada e anunciou o fim da seca, no último ano em que, ainda menino, morou na fazenda velha. Lembrava da casa do avô, onde também moravam os pais, os tios - a grande casa de telhas comuns com uma longa varanda de frente pro rio, o grande epoderoso rio, e ali pertinho, a barra do ribeirão, o barranco de onde saltava para a infância dos banhos de córrego, das pescarias de pataquinhas, miguelinhos e mandis.

Naquela noite, depois do vento que sujou o mundo, a mãe, lentamente, foi fazendo sua mala, peça por peça de um enxoval bem detalhado, exigência do internato dos padres diocesanos.

Estava indo pra escola. O sonho do avô era que, se gostasse, ficasse por lá, e ficasse padre. A família tinha muitos pecados, precisava de alguém pra falar com Deus. Se o neto fosse padre, quem sabe o jaguncismo, os filhos ilegítimos secretamente esparramados pelas casas dos agregados e as viúvas fabricadas não o empurrariam pro inferno.

O pai preferia um filho doutor, médico ou advogado, qualquer coisa com anel de grau no dedo, diploma na parede e chance de ganhar eleição. O pai queria o céu aqui mesmo.

A pouca chuva que caiu durante a noite não chegou a esfriar a casa, mas trouxe o cheiro gostoso da terra, o assanhador de lombrigas. Os trovões e relâmpagos o amedrontaram, e o medo da chuva fez esquecer o da viagem, o medo da mudança, o de ficar sozinho e longe dos pais, entre estranhos, num lugar que não conhecia e nem sabia pra que lado ficava. Dormiu abraçado com a mãe e sonhou que voltava de férias.

De manhã, café, biscoitos e a pequena viagem até o povoado, ele, o pai, um tio, as malas, as mulas. Duas léguas; depois a boléia da caminhonete até a cidade grande, até o colégio.

Marcou a viagem a revoada de urubus, centenas deles, num grande círculo preto boiando no céu e que avistou pouco depois que saíram da fazenda. Apontou com o dedo: - Olha pai!

Encontraram a rês morta na cascalheira, perto de um pé de baru destroçado por um raio. Ficaram observando a descida dos urubus e parecia que a chuva tinha deixado as aves malucas ou com vontade de brincar. Os urubus fechavam as asas muito alto e desciam como uma pedra que cai. Poucos metros acima do chão, abriam as asas, pousavam suavemente e se preparavam para o almoço. Ficou assustado quando um deles não abriu as asas e se espatifou no cascalho. Morto, nem chamou a atenção dos outros que continuaram a sua louca descida. Pensou que talvez fosse um urubu novo, um pouca-prática que ainda não sabia voar direito, ou um velho que, meio cego, calculou mal a distância do chão ou apenas um urubu comum, um qualquer um, que simplesmente não quis abrir as asas e escolheu morrer.

A voz do pai o arrancou dos pensamentos e o conselho que ouviu tinha requintes de sabedoria; daí pra frente, impossível esquecer:

- Vê como voar é perigoso, até pra quem já nasce com asas!

Suportou resignado a viagem de carro, a entrevista com o preceptor do colégio, as brincadeiras dos veteranos, a estupidez dos maiores, as longas noites de calor no dormitório coletivo, a imposição do silêncio, a obrigatoriedade dos ofícios religiosos, os longos e soporíferos sermões das missas de domingo.

A primeira vez que voltou à fazenda, levou um livro. Leu mais que pescou. Nas férias seguintes, levou dois, que leu rapidamente e então sentiu saudades da escola. Daí para a frente, só suportava as férias na fazenda por causa da grande quantidade de livros que levava.

Lia tudo e de tudo, se emocionava com os clássicos, sonhava escrever - arriscou um soneto, rasgou o papel. Desde o princípio, o espírito crítico censurava impiedosamente suas tentativas de criação. Passou a escrever e rasgar.

Comunicou ao avô que não seria padre, não tinha jeito pra coisa. O curso de Direito foi uma exigência do pai, que massacrou, de início, suas outras pretensões, estudar História ou Letras para ser escritor, melhor, poeta. O pai respondeu com um conselho meio-bronca, meio-sorriso: "Cria juízo, menino! Trata de fazer alguma coisa pra ganhar dinheiro!"

Bacharel sim, advogado nunca. Nem juiz nem delegado, promotor ou procurador. Nunca mais teria nas mãos um código, com seus estranhos parágrafos desagregados. Estava satisfeito com o emprego que conseguiu numa biblioteca, tinha tempo pra ler o que queria.

Continuou lendo, escrevendo, e rasgando papel; o nível de exigência subia a cada trabalho. Procurava refúgio na leitura tentando esconder a frustração dolorosa de não conseguir escrever como desejava.

Então, um dia, ele conheceu o livro. Estava na mão de uma ex-colega de faculdade, uma cópia xerox, encardida, de um pequeno livro de poesia. Era a segunda edição, patrocinada por uma empresa estatal de crédito, do livro de poemas de um poeta do cerrado, pouco conhecido, e que escreveu este único livro, publicado pela primeira vez nos anos cinqüenta por uma editora já falida e que recebeu esta segunda edição também já esgotada, daí a xerox. Tinha nas mãos Poemas e Elegias, de José Décio Filho.

Leu sem atenção, santo de casa..., depois teve vontade de ler de novo, e mais outra, dezenas de vezes. Passou a gostar do livro, de cada poema, como se todos fossem seus, como se ele os tivesse escrito. Cada um, um por um; descobriu que no livro um mesmo poema figurava duas vezes com nomes diferentes, e xingou o editor pelo descuido.

O livro o perseguia no trabalho, nas poucas horas de diversão, sem sossego; sabia de cor todos os poemas, em que página estava cada um, quantos eram quantas palavras tinham.

Tinha relido um pouco antes o livro de contos de Jorge Luis Borges, O Aleph, e começou a ver no Iivro de poemas algumas ligações com um conto de Borges. O livro de poemas poderia ser o Zahir, o que entrava na cabeça e depois não saía, como em outros lugares, em outros tempos, o Zahir teria sido uma moeda uma bússola, um tigre e, agora, era um livro - exatamente aquele pequeno livro de poemas.

Procurando desesperadamente esquecer o livro, percebeu que já não conseguia escrever e temeu a insanidade. Lembrou outro conto de Borges, onde um homem (um poeta) enlouqueceu e chegou ao suicídio por ter fixado na mente, sob tortura, o mapa da Hungria.

E o que o torturava era o prazer de Ter conhecido o livro de Zé Décio, e mais, a vergonha de sentir inveja e a humilhação pela incapacidade de escrever alguma coisa, um pequeno poema que fosse, que pudesse figurar entre aqueles, sem desmerecê-los.

Ficava encantado com os poemas que falavam dos vôos, dos pássaros despretensiosos, das andorinhas sem aplausos. Sabia que o poeta tem uma outra alma, uma que se desaprega do corpo e voa, e paira sobre todos os sentimentos, dos mais sublimes aos mais atrozes e extrai deles a palavra exata, cirúrgica, poética. E sabia desde menino que voar é perigoso, ainda mais pra ele, um poeta sem asas. Não temia o vôo físico, o amedrontava a metáfora.

 

 

Fazia muito tempo que não ia à fazenda, o avô e os pais tinham morrido, a fazenda agora era sua, mas estava quase abandonada, cuidada por um parente distante. No lugar da casa velha, o pai fez construir uma nova, de alvenaria, telhas francesas. Conservou o modelo: a grande varanda de frente pro rio.

Outras coisas mudaram, o asfalto a menos de uma légua, a casa com energia elétrica e o cerrado cada dia mais desfigurado - grandes savanas artificiais de braquiária.

Chegou no final da seca, queria ver o vento geral, que nesse ano até que não fez escarcéu, foi um vento fraco, poucos trovões na primeira chuva. Perdeu a vontade de voltar pra cidade, foi ficando sem pressa, dormia até tarde, tentava esquecer o livro - nada. Mal conseguia escrever três palavras, a quarta já era do livro; repetia de cor o poema. Parecia que o livro continha todas as palavras que conhecia, todas as que usava, todas as que queria escrever, todas as que precisava esquecer.

Um dia sentiu saudade dos tempos de menino e resolveu pescar pataquinhas na barra do ribeirão. Foi com o caseiro, subiram lentamente o rio com a canoa de remos, amarrou a canoa na sombra. Começou a pescar e nada de peixe. No ingazeiro em frente, um martim-pescador pousado num galho seco olhava a água, petrificado. De repente, um mergulho rápido e o retorno num vôo curto para o galho, onde comia o peixe capturado e soltava um grito desafiador, parecendo zombar dá incompetência dos pescadores humanos.

Prestou atenção no passarinho, nas três ou quatro vezes em que ele mergulhou, desapareceu na água e voltou com um peixe no bico.

Um outro mergulho e o martim não voltou. Aguardou em desespero que o pássaro emergisse com o peixe e nada. Longos minutos de espera e o martim, nunca mais!

A água, o rio, espelho e labirinto aprisionaram para sempre o pássaro que teve a ousadia de fazer do seu vôo um mergulho.

Teve um sobressalto, o perigo não estava no vôo, estava no mergulho - o urubu mergulhou para a carniça e se espatifou no cascalho, o martim-pescador mergulhou no rio e não voltou.

Ali compreendeu que nâo está no vôo o risco que corre o poeta, está no mergulho dentro da alma, dentro dos escaninhos do conhecimento, dos escafandros gramaticais garimpando palavras, das metafóricas alcovas do prazer intelectual, do inferno do sofrimento sem mágoa. Voar não é perigoso, perigoso é o mergulho, e ele, que tinha tanto medo do vôo, não tinha feito outra coisa senão mergulhar, correr todos os riscos. E estava vivo.

Na cabeça, voltou o livro, voltou o primeiro poema do livro do Zé Décio, o "Poema Vertical".

 

 

Dei um mergulho em mim mesmo
Num pulo de cabeça a baixo...

 

O mergulho... o mergulho... o livro não falava só de vôos, falava também do mergulhar, num pulo de alto a baixo, não, de cabeça abaixo, não! Não conseguiu lembrar o resto do poema; tinha esquecido o livro.

Voltou para casa aliviado, um sentimento de cansaço, uma dor que parecia saudade, incomodava um pouco no peito. Tomou um banho

demorado, vestiu uma calça larga, de algodão tecido em casa, calçou uma sandália de vão de dedos e uma camisa branca de linho, velha, puída na gola.

Deitou-se na rede da varanda e cochilou. A mulher do caseiro trouxe uma pequena lavadeira de petas e uma jarra esmaltada que colocou em cima de um tamborete, com um copo.

- Sebereba de cajuzim, doutor. Os primeiros do ano.

Olhou para o rio, que estava embaçado. Com as costas da mão enxugou uma lágrima que o incomodava.

Tinha certeza que agora poderia escrever, voar, mergulhar, quantas vezes, quantas palavras quisesse, mas não ali, naquela hora em que o rio continuava embaçado, embora ele já estivesse com os olhos limpos, sem lágrimas.

Não era ainda a sua vez. Naquele instante, a natureza presenteava o cerrado com o mais singelo e necessário de seus poemas: a chuva.

 

 (In:O pequeno livro do Cerrado.São Paulo: Editora Giordano.1999)

      

  *(Gil Perini é natural de Igarapava, São Paulo. Ainda criança, mudou-se com a família para Goiânia. Formou-se em medicina pela Universidade Federal de Goiás. É cardiologista, tendo trabalhado, no início de sua carreira, em Porangatu, hoje norte de Goiás)