Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!



Querida, se alguma vez te escrevesse uma carta seria assim:

Estou acordado a sonhar contigo. Enquanto tu respiras sono eu respiro sonho. Por estas horas tardias já deves estar a dormir. Se calhar é por isso que nunca nesta vida, nem em mais nenhuma, tu nunca has-de estar comigo como eu gostaria que estivesses.
É pena. É pena para mim. Para ti, provavelmente, um grande alívio.
E o que é que eu sonho?
Sonho com o teu cheiro. Sonho estar abraçado a ti a tentar esquecer montes de coisas que não consigo esquecer. Sonho dar um simples passeio contigo em qualquer lugar, não importa sequer onde. Sonho com as tuas mãos a limparem-me as lagrimas que tenho a escorrer pela cara. Sonho com a tua voz a acalmar-me como se eu fosse uma criança muito pequena. Sonho, por isso, com as palavras que nunca disseste nem nunca has-de dizer.
Eu sei, eu sei. Isso é mau para mim visto que o meu sofrimento só tem tendência a aumentar. Até quando pergunto eu. Até sempre, muito provavelmente.
Bom, estes últimos pensamentos fazem-me desviar dos sonhos em que estás sempre comigo. Por isso, basta, já chega.
Nos meus sonhos é muito comum eu adormecer-te com uma historia e depois ficar muito quieto a teu lado a ver-te dormir. Às vezes nem tenho coragem para te tocar no cabelo, não vás tu acordar e assustar-te. E isto para não dizer mais...
E quando quero acordar destes meus sonhos só tenho de ouvir a tua voz a dizer "sonha João, sonha..." Escusado será dizer que acordo de imediato. Mas agora não te estou a ouvir. Por isso, deixa-me continuar a sonhar.
Está a chover muito e estamos os dois num carro qualquer. Tu não falas e eu nem sequer sei o que dizer. Não tenho a certeza de querer quebrar este silêncio. A chuva fala por nós. E não pá ra de falar por nós. Se bem que não precisamos que algo ou alguém fale por nós. O silêncio neste sonho está a fazer-nos um bem incrível. Parecemos tão leves que a todo o momento parece que vamos levitar e desaparecer no céu escuro.
Fecho os olhos por uns momentos. Quando os volto a abrir já não estás sentada a meu lado. Desapareceste. Apesar disso sinto que não deves estar longe. Talvez ali à frente ao pé daquela arvore a olhar para o carro comigo lá dentro. A chuva não parece incomodar-te. Embora não te veja, imagino a tua cara a sorrir com as gotas de chuva que te vão molhando até estares completamente encharcada.
Julgo que estás a brincar comigo e saio do carro para ir à tua procura. Os primeiros pingos de chuva fazem-me estremecer e encolher com frio. Caminho até junto da arvore. Não te encontro lá. Olho à volta, já meio assustado. Não te vejo em lado nenhum.
Volto para o carro e tento sair do sonho. Fecho os olhos e tento pensar noutra situação qualquer. Não consigo. Na realidade, nem neste sonho eu te quero perder. Este sonho é a única coisa que me resta. E voltar à realidade está completamente fora de questão.
Acabo por abrir os olhos e nem sequer reconheço onde estou, a principio. Depois a realidade entra-me pelos olhos adentro com tanta violência que fico com uma dor de cabeça tão grande que quase não consigo respirar.

Estou de novo em casa.

Apetece-me voltar para dentro do carro. Mas como não tenho aspirinas em casa, desisto. Vou até à cozinha e procuro algo para comer. Abro o congelador e tiro um bocado de carne congelada. Um bife, acho eu.
Meia hora depois volto à cozinha para ver se o bife já está descongelado. Não me lembro como ocupei essa meia hora, a sonhar não foi, de certeza absoluta. E muito menos a pensar em ti. O bife ainda está completamente gelado. Ligo o esquentador e ponho a água quente a correr por cima do bife. Saio da cozinha.
A dor de cabeça, entretanto, desapareceu. Estranho... Geralmente costumam durar mais tempo. Começo novamente no ciclo vicioso de sonhar acordado contigo. Vejo-te agora a descer umas escadas de um prédio. Não sei qual, não reconheço o sitio. Vens na minha direcção com uma cara alegre.
Mas acabas por passar por mim como se não me visses. Merda, já nem consigo controlar aquilo que sonho acordado. Parece que não me sinto bem sem a minha dor de cabeça.
Volto à cozinha para ver como está a porcaria do bife. O banho de água quente pelos vistos descongelou demais a carne. Está meio cozida. Fico a pensar por uns momentos se hei-de fritar o que resta da carne ou se a como mesmo assim. Como não me desagrada a carne mal passada, como a carne mesmo assim.
Fico todo sujo quando acabo a refeição. O sangue de boi ou de vaca, vá-se lá a saber, escorre-me pelos lábios. Mas soube-me melhor do que estava à espera. Uma refeição cozinhada por nós tem logo outro sabor, sempre ouvi dizer isso.
Enquanto limpo o sangue dos lábios a um guardanapo de papel lembro-me, num flash, duma vez que te vi na casa de banho a mudar o penso higiénico enquanto sorrias para mim com um sorriso maroto. Daqueles sorrisos que fazes quando queres ir para a cama sem mais demoras. Começo, por causa disso, a sentir outra vez imensas saudades tuas e nem sequer compreendo porque é que não estás ao pé de mim.
Acabo de limpar a boca e acendo um cigarro. Tento não pensar mais em ti, mas não consigo. Fico, ao que me parece, uma hora a imaginar-te a comer uma sandwich e depois a beberes uma coca-cola por uma palhinha enquanto tentas ler um jornal todo amarelado que está pousado em cima das tuas pernas. Estás sentada numa cadeira de praia algures numa varanda com uma vista para o rio. De vez em quando o vento faz balouçar o teu cabelo, aleatoriamente, para cima da tua testa e depois para trás. Por mais que tente não consigo colocar a minha imagem nessa varanda contigo. Cada vez que tento ver-me ao teu lado, ou atrás de ti, desapareces da cadeira onde estavas sentada.
Fico sem saber o que pensar ou imaginar mais. Vou até à varanda.
Está um frio de rachar. Sinto-me um "buraco negro" sem nada, nem ninguém, à volta para atrair.
Tenho fome novamente. Preparo uma sopa instantânea de tomate e acendo um cigarro enquanto espero que a sopa aqueça. Ligo a televisão, desligo-lhe o som e ponho o "Achtung baby" dos U2. Procuro uma revista para evitar de pensar em ti. Não consigo encontrar nenhuma revista que me agrade. Vou à cozinha espreitar a sopa. Já ferve. Procuro a embalagem para tentar saber se a sopa tem de ferver ou não, e durante quanto tempo, se for caso disso. Não sei onde pus a embalagem. Coço o queixo e fico um bocado a pensar se devo ou não deixar a sopa ferver. Chego à conclusão que isso não deve ter muita importância. Desligo o fogão. Despejo um bocado de sopa para um prato. Mais tarde reparo que era um prato raso e não um de sopa. Não tem importância, tenho muita fome.
Acabo a sopa e fico um bocado a pensar no que fazer. Não tenho bem a certeza se fico em casa ou saia para tomar um café ou outra coisa qualquer. Ou então vou só dar uma volta e olhar para o rio.
Deixo que o "Achtung baby" continue on repeat e vou buscar a garrafa de vodka quase vazia que está em cima do frigorifico e tiro também um copo do armário. Despejo uma dose de cavalo para dentro do copo e penso que a esta hora muita gente na Rússia está a fazer exactamente a mesma coisa para aguentar o frio. Fico um bocado a pensar nisso como se fosse algo profético. E se acordasse amanhã algures na Sibéria e não na minha casa? Acho que muito pouco importaria. Pelo menos ninguém iria dar pela minha falta. Ou talvez não... Dou o primeiro gole no vodka e faço uma careta.
Acendo mais um cigarro e olho para a TV. Uma rapariga está muito sorridente a tentar fazer um puzzle enquanto o apresentador do programa (concurso?) anda todo stressado à volta dela. Desligo a TV e dou mais um gole no vodka.
Passa por mim mais meia hora ou uma hora, não sei bem, e já vou no segundo vodka. Acabo-o de um trago e tento ganhar coragem para enfrentar o frio. Visto o sobretudo e saio sem ter a mínima ideia de para onde vou ou o que vou realmente fazer para a rua.

Está um gelo terrível mesmo dentro do sobretudo. Começo a respirar mais rápido para ver se consigo aquecer mais um bocado. Reparo num vizinho meu a passear o cão. Reparo no teu carro no outro lado da avenida e acelero o passo. Começo a entrar em pânico. Não te quero ver. Acelero mais o passo.
Quando chego ao final da avenida olho para trás e vejo-te à porta do meu prédio a tocar à campainha.
Penso durante dois segundos se hei-de ir ter contigo. Volto as costas e penso em cafés quentes. É disso que eu preciso, mais do que o teu amor ou as tuas chatices. Não me apetece discutir contigo. Na verdade, começo a questionar-me se te quero sequer ver. Onde é que existem cafés quentes ?
Ainda ando uns dez minutos até chegar a um café de bairro cheio de velhotes. Respiro fundo, levo a mão ao bolso das calças e chamo o teu nome à senhora quando lhe peço uma bica. A senhora fica uns dez segundos sem saber o que fazer ou o que responder. Tenho as mãos a tremer enquanto lhe peço desculpa e reforço o pedido do café. As mão tremem-me por tua causa e não por lhe ter chamado o teu nome. Ela agora compreende e sorri-me.
Os velhotes olham para mim como se eu fosse doido. Levo a chávena de café para uma mesa e sento-me. Tento acender um cigarro sem tremer. Peço para fazer uma chamada. A senhora dá-me o telefone e eu fico quase um minuto a olhar para os dígitos a tentar lembrar-me do teu número de telemóvel. Depois apercebo-me que não tens telemóvel. Devolvo o telefone à senhora e peço-lhe desculpa mais uma vez. Os velhotes segredam uns com os outros e olham-me de soslaio.
A bica não foi suficiente para me aquecer. Peço um whisky sem gelo do mais barato que houver. A senhora responde-me que todos os whiskys aqui têm o mesmo preço. Sorrio-lhe e pago a despesa. As minhas mãos ainda tremem, mas ao segundo gole de whisky paro de ter frio.
Não consigo decidir se me sinto triste ou feliz, por isso, paro de me ralar e saio do café com um encolher de ombros interior.

O meu bilhete

Olá amor,
Estive aqui à tua porta a ouvir o "Achtung baby" e a tocar como uma louca à campainha. Porque é que não respondes? Eu sei que estás aí.
Olha, a tua vizinha ouviu-me e trouxe-me um chá para ver se eu me acalmava.
Não consigo. Além disso, ela pôs açúcar a mais. Aquilo estava intragável.
Tu sabes como eu detesto açúcar a mais no chá.
Isto é só para te dizer que tenho saudades tuas. Quero mesmo estar contigo.
Olha, não precisamos de falar, está bem? Só quero estar contigo, só te quero abraçar, só te quero cheirar, mais nada. Não tenhas medo de mim.
Telefona-me, o.k.? Telefona-me quando te apetecer. Vou ficar em casa à espera. Não te vou telefonar para não te assustar. Vou-me embora.
Muitos beijos para o meu amor da tua, sempre tua, Catarina

A vida decorre sem problemas de maior

Chego a casa depois de ter ficado enjoado com o frio, os whiskys e os cigarros todos que fumei. Antes de abrir a porta consigo ouvir o "Achtung baby" ainda a tocar.
Assim que abro a porta reparo que está no chão uma folha de papel com algo escrito na tua letra. Pego no papel sem o ler, dobro-o e guardo-o no bolso das calças. Amanhã é Sábado e tenho tempo de sobra para ler o que escreveste, seja lá o que for.
Mudo de CD; "Vinyl" dos Gift. Sento-me no sofá e penso em telefonar-te mas, como já passa das duas da manhã, desisto. E adormeço sem dar por isso, ainda completamente vestido. Acordo com um sabor horrível na boca às 6 e tal da manhã e arrasto-me para a cama sem saber o que sonhar. Mas mesmo que soubesse não teria grandes hipóteses de fuga, ou seja; tu, tu e tu.

Sábado de manhã. Acordo sem conseguir pensar em nada. Não sei qual é o meu primeiro pensamento. Apercebo-me, entretanto, que não estou tão ressacado como esperava. Levanto-me da cama e caminho algo vacilante para a casa de banho. Enquanto tomo duche surge-me a inspiração divina de procurar molho "Pesto" novamente pelos supermercados que existem à volta da minha casa. Há meses que não encontro esse molho, por isso, há meses que não me apetece comer espaguete. É simples e é triste.
Limpo-me com a toalha e ouço o telefone a tocar. Quase escorrego ao chegar ao telefone.
- Está?
- Bom dia dorminhoco!
Uma voz de mulher. Limpo a garganta com uma pequena tossidela e pergunto quem fala.
- Não me reconheces? Não te lembras de mim?
Silêncio.
- Hammm... Não... Eu conheço-te?
- Sou a Joana, conhecemo-nos ontem à noite no "Laranjas"...
Não consigo responder nada. Não fui ao "Laranjas" ontem. Pensando bem, não vou ao "Laranjas" há mais de não sei quantos meses.
- Olha... Joana? É esse o teu nome?
- Sim... - Noto tristeza na voz dela.
- Hammm... Eu não fui ao "Laranjas" ontem e acho que não te conheço...
- Escuta, tu não te deves é lembrar de nada. Não me admira, como tu estavas... Queres tomar um café comigo? Podemos encontrar dentro de uma hora. Está bem para ti?
- Hammm... Quer dizer, o.k. Onde?
- Pode ser no "Navegador" ?
Respondo-lhe que sim, digo até já, e a seguir a dizer "com licença" desligo o telefone e olho para a poça de água em meu redor no chão da sala. Volto à casa de banho para acabar de me limpar e levar a roupa que despi para a máquina de lavar.
Regulo a máquina para o programa que tem a água mais quente e saio de casa sem saber bem se hei-de ir ao "Navegador" já ou se ainda tenho tempo para procurar o "Pesto" no supermercado. É-me completamente indiferente.
Enquanto atravesso a avenida que dá para o supermercado mais próximo da minha casa, lembro-me que esqueci de pôr detergente na máquina de lavar roupa. Tarde demais. E além disso, não sei parar o programa. Vou ter de pôr a roupa a lavar novamente quando chegar a casa. Tento focar a minha atenção não na roupa mas sim no meu querido e adorado "Pesto".
Entro no supermercado e procuro a secção de molhos. Está mesmo ao lado da secção de massas. Óptimo, bom sinal. Pego num pacote de espaguete e percorro o olhar pela prateleira dos molhos. Não há "Pesto".
Dou meia volta e deixo o pacote de espaguete dentro de uma arca frigorífica cheia de pizzas e hamburgers. Saio do supermercado sem comprar nada e tento descortinar, a estas horas da manhã, o melhor caminho para o café "Navegador". Fico parado à porta do supermercado a pensar se hei-de apanhar um taxi. Depois lembro-me que o "Navegador" fica a uns meros dez minutos de onde estou. Olho para os meus sapatos e reparo que tenho os atacadores soltos. Aperto-os e puxo mais um cigarro.
As pessoas que passam na rua por mim olham-me com desconfiança (98%) ou com algum interesse (2%). Levo o caminho todo a pensar nisso quando, ao chegar ao "Navegador", me apercebo que pensei em ti muito poucas vezes nesta manhã. Mas também não me admiro muito, visto estar ainda meio adormecido e meio ressacado.
Compro o "Público" porque o "Diário de Notícias" já está esgotado. Há uma foto enorme de um Concorde da Air France na capa, mas enquanto não tomar um café não me atrevo sequer a tentar ler o título da notícia. Antes de procurar uma mesa vazia dou uma olhadela pela sala do café para ver se descubro alguém com aspecto de Joana. Ninguém aqui parece chamar-se Joana, por isso vou sentar-me numa mesa mesmo ao lado das escadas que dão para a cave.
A empregada olha para mim com desprezo e como se eu fosse um morto-vivo e pergunta-me o costume. Respondo-lhe o costume com uma cara a evidenciar muita alegria por a ver. Ela não percebe a ironia e fica por uns breves momentos sem saber se há-de dizer alguma coisa ou se há-de ir dali para fora. Escolhe a última hipótese e volta uns minutos mais tarde com o meu café. E um copo com água... Acho que simpatiza comigo...
Fico a olhar-lhe para o cu a ondular por baixo da saia justa e azul enquanto se afasta em direcção à cozinha. Faz-me, automaticamente, lembrar uma saia que usaste quando já te tinha falado duas ou três vezes e não me lembrava nunca do teu nome. É a minha típica maneira de ser. Às vezes irrita-te, às vezes irrita-me, mas quem acaba sempre por perder sou eu. E vem-me à cabeça a tua maneira de sorrir e agora já nem me consigo lembrar do nome da tipa que, supostamente, devo encontrar neste café. E nem sei já se realmente falei com ela ontem num bar que não me lembro de ter estado.
Bebo o café todo de um trago só. Tusso e acendo mais um cigarro. Olho para o jornal e não me apetece lê-lo. Olho à volta e procuro a tal tipa. Só espero que ela me reconheça, porque eu não a vou reconhecer, quase de certeza. Incrível; não existe ninguém a olhar para mim. Ela ainda não chegou. Faço um esforço para me lembrar a que horas combinámos. Completamente escusado, não me consigo lembrar. Mas, provavelmente, a hora ainda não chegou. Eu é que cheguei cedo demais. Aproveito para ir à casa de banho.
Assim que entro vejo um puto a fazer a barba com uma gilete em frente ao espelho do lavatório. Uma mochila velha está ao lado dele, encostada à parede. Aproximo-me de uma louça de necessidades "Rocas" e assim que começo a mijar sinto um alívio monstro que me faz esquecer as últimas réstias de ressaca. Enquanto lavo as mãos num lavatório ao lado daquele que o puto está a utilizar reparo num frasco de after-shave "Adidas". Pergunto-lhe se posso utilizar um bocadinho. Ele assente com a cabeça ao mesmo tempo que me mostra um olhar de desagrado. Despejo um bom bocado na palma da mão e penteio-me com as mãos suavemente, deixando o meu cabelo com um aroma forte a "Adidas". O puto fica com uma cara ainda mais desagradável enquanto, delicadamente, lhe agradeço e devolvo o frasco.
Volto para a mesa e para o jornal. Pego nele, sentindo alguma curiosidade em relação à foto do Concorde na primeira página e começo a ler. Nada de especial: uns tipos que as autoridades desconfiam serem da Argélia fizeram explodir um Concorde da Air France no aeroporto D'Orly. Morreram 98 pessoas. Podia ter sido pior. O avião estava a fazer taxi em direcção à pista que lhe foi assignada para levantar voo e um passageiro, que se suspeita ter ligações com esse grupo de argelinos, fez detonar a bomba.
Penso no bilhete que tu me deixas-te ontem em casa e depois penso na máquina de lavar roupa com as minhas calças lá dentro e o teu bilhete dentro de um bolso dessas mesmas calças. Levo as mão à cabeça incrédulo e sem saber como parar o programa da máquina. Como se isso adiantasse alguma coisa.
Tento recompor o meu espírito e pensar noutra coisa qualquer como, por exemplo; o que é que eu estou a fazer aqui neste café?
A tipa não apareceu nem vai aparecer. Não sei se tenho fome para almoçar, não sei se me apetece fazer alguma coisa de tarde, não sei se me apetece jantar, não sei se me apetece sair de noite. Mas sei que vou para casa.

O Tempo acaba com tudo

Estou sentada num banho de imersão a bebericar um copo de vinho tinto enquanto tento não pensar em nada de desagradável mas não consigo.
Ele não me telefonou durante todo o fim-de-semana, nem eu tampouco.

Ele não me telefonou na segunda feira.
Ele não me telefonou na terça feira.
Ele não me telefonou na quarta feira.
Ele não me telefonou ontem.
Não me apetece falar com ele nem vê-lo. Não sei sequer o que me apetece. A não ser ficar aqui na banheira mais uma hora ou duas e embebedar-me com força, com bastante força. Tenho tempo para isso, tanto tempo.
Tocam à campainha. Levanto-me à pressa da banheira, avanço periclitante até ao hall de entrada e levanto o telefone intercomunicador.
- Quem é?
Ouço uma voz abafada pela estática e ruído da rua "É a Maria...".
Merda, não me apetece ver ninguém. Mas, mesmo sem vontade, abro-lhe a porta da rua ao mesmo tempo que abro a porta do apartamento e a deixo entreaberta. Volto para a banheira e despejo mais vinho no copo. Olho para o despertador antigo que a minha mãe me ofereceu o ano passado, antes de conhecer o João, e vejo que já são quase oito da noite. Ainda não tenho fome, estranhamente... Pergunto-me por que raio o despertador foi parar acima do móvel dos medicamentos. E há quanto tempo olho eu para ele sem nunca ter estranhado esse facto. A Maria deve-se ter perdido no prédio e eu estranhamente estou a ficar com fome, mas não vou comer nada. Ao pé da Maria não... Quando me conseguir livrar dela vou ao frigorifico e vingo-me. Posso esperar, tenho tempo, acho eu.
A Maria acaba de entrar no meu apartamento. Não faço barulho, fico quietinha, ainda na banheira. Ela fecha a porta e grita o meu nome. Grito-lhe o dela: "Maria, vai à cozinha e prepara uma bebida para ti. Se quiseres vinho tinto, vem ter comigo à banheira".
Ela entra na casa de banho e, antes de olhar para mim, olha para o despertador. Fica um ou dois segundos meio perplexa e depois olha para mim, finalmente.
- Querida, estás boa?
- Comme ci, comme ça... - A minha voz está fraca e ela quase não me ouve.
- Estás com bom aspecto. Estás mais magra?
- Estou? A sério que achas?
- Sim, já não te via há mais de duas semanas e...
- Bem, se queres saber, sofrer faz emagrecer. - Digo isto sem olhar para ela. Fito agora a toalha que está à espera para secar o meu corpo.
- Catarina, o que é que estás praí a dizer? - A cara da Maria mostra um misto de preocupação e de perplexidade. - Tu e o João estão bem?
- Passa-me a toalha, se fazes favor... - Não me apetece, não me apetece...
- Hum... Estou a ver que há problemas a bordo...
- Passas-me a toalha ou não? - Digo isto com uma calma impressionante, tendo em conta que tremo por todo o lado.
Relutantemente a Maria passa-me a toalha e a seguir pega na garrafa de tinto, leva-a à boca e dá um grande gole.
- Sabes o que é que eu acho?
- Sei, mas Maria, por favor, não quero saber. Percebes?
- O.k., o.k. Tudo bem... - Ela sorri envergonhada.
- Olha, limpa o queixo, tens um fio de tinto a escorrer. – Solto uma gargalhada para dar a entender à Maria que não estou assim tão mal.
Quem me dera que isso fosse verdade.
Limpo a cara e olho-me ao espelho. Apesar de não desgostar da imagem que vejo, sinto que algo não está totalmente preenchido. O resto do espelho onde a minha cara não aparece. Falta o reflexo do João. Em vez do reflexo dele vejo agora a Maria a aproximar-se e a dizer:
- A Lucilia vai aparecer aqui na tua casa. Ela telefonou-me e ...
Deixei de a ouvir. Até parece que o tempo parou. Entretanto vou deixando o telefone tocar.

A vida já não corre tão bem

Estou a tentar telefonar para a Catarina. Tenho o telefone na mão esquerda, a tremer, e estou a pensar por que será que está a demorar tanto tempo para atender. Provavelmente saiu. Desligo o telefone automaticamente e fico um bom bocado a olhar para a janela, sem saber bem o que fazer.
Estive a tentar fazer uns cogumelos com azeite e alho, mas depois quando provei, fiquei sem apetite. Faço um chá que nem por isso me apetece beber, mas de certeza que me vai saber bem.
Fico a olhar para a TV, meio absorto no que me está a acontecer e ponho leite no chá. Olho para a janela de vez em quando. Tento adivinhar a distancia entre mim e uma nuvem lá fora.

O tempo elástico

Faço um esforço para ouvir o que a Maria está a dizer:
- Não ouves o telefone? Queres que atenda?
- Sim.. Quer dizer...
A Maria fica a olhar para mim sem saber o que fazer e acabamos as duas por não atender e o telefone cala-se de repente, como sempre. Olho para a TV, que entretanto a Maria ligou, e vejo um Concorde da Air France a explodir num aeroporto. O avião ainda se estava a dirigir para a pista, acho eu. Depois mostram uma série de imagens de um deserto. Vejo novamente, sem perceber muito bem porquê, a imagem do João esbatida na da TV. Ele caminha na crista de uma das dunas na imagem. Mas, é claro, devo estar a alucinar novamente. Nunca gostei muito deste vinho tinto que seguro na mão direita. Só que, acho que me esqueci desse pormenor quando o comprei. Já nem me consigo lembrar bem quando é que isso foi e só estou a pensar coisas estranhas. Tenho de ver se consigo parar de pensar e relaxar.
Sento-me no sofá e começo a percorrer os CD's mentalmente. Já estou farta de estar a ouvir Blur ou Pulp ou lá o que é.
- Porque é que não atendeste? - Pergunta a Maria, vinda do nada.
- Hã? O telef... Ah, sim, he... Já nem me lembrava disso. - É tudo o que consigo responder.
- Quem seria? - Pergunta a Maria com um ar de gozo ou sei lá que ar é que é aquele.
- Se calhar era a Lucilia... sei lá... Ouve, que música queres ouvir?
Fico a olhar para ela com um ar confuso.
- Tens o "achtung baby" dos U2?
- Não me fales desse disco.
- Porquê? - A Maria está a olhar para mim como se eu fosse uma doente mental. - Catarina, o que é que se passa? Sabes que estás completamente à vontade.
- Não me apetece falar. E além disso estou cheia de fome... E, por favor, não ponhas o "Achtung baby".
Encaminho-me para a cozinha sem a mínima vontade de comer. Apetece-me estar um bocado a olhar pela janela fora para ver se me acalmo um pouco. A Maria entretanto fica parada no meio da sala a olhar para mim e a tentar decidir se vai telefonar à Lucilia ou escolher outro CD. A imagem do avião a explodir não me sai da cabeça e nem sei bem porquê. Não conheço nenhuma das vitimas, acho.

Ando sem tempo para perceber a vida que tenho

Estou na varanda a pintar um vaso velho e a rachar por todos os lados. Tenho um saco plástico rasgado, estendido no chão, e uma lata de spray "branco frigorifico" na mão direita. A Helena, que entretanto chegou a minha casa para me devolver umas chaves de parafusos que lhe emprestei sabe Deus há quanto tempo, caminha pela sala e cozinha à procura de qualquer coisa e pergunta-me:
- João, queres que ponha outra música?
Estamos a ouvir Swans desde que a Helena chegou. Ela, claramente, está farta e quer ouvir algo mais suave e não-agressivo. Finjo que não ouço e começo a despejar spray para cima do vaso.
A Helena não faz caso disso e vai procurar um CD que lhe agrade. Pouco tempo depois começo a ouvir, pela enésima vez nestes últimos dias, o "Achtung baby". Fico sem vontade para continuar a pintar o vaso e acabo por o deixar meio pintado em cima do plástico na varanda. Vou ter com a Helena e decido não lhe dizer que não me apetece de todo ouvir o CD. Limito-me a dizer-lhe para baixar um pouco o som. Ela depois de hesitar durante um bocado, obedece ao meu pedido e pergunta-me qual a razão de tal pedido, já que habitualmente gosto de ouvir qualquer CD aos berros.
- Acho que não tens nada a ver com isso... - A minha resposta é feita numa voz altamente insegura e sei que ela não vai ficar por aqui...
- Vá lá, não sejas parvo e conta mas é tudo aqui à tua Heleninha. Tem tudo a ver com a Catarina, não é?
Prefiro continuar em silêncio a olhar fixamente para os olhos dela.
- Vocês não andam muito bem, pois não?
- ‘Tás doida, ou quê? Claro que está tudo bem. - Tento parecer o mais natural possível e acho que consigo.
- Ela vai aparecer cá esta noite? Estou mortinha por sair.
- Sim, claro, ela vai aparecer... Já tentei telefonar-lhe mas ninguém atende. Deve ter ido ter com alguém.
- Não vamos esperar muito tempo, pois não João, é que apetece-me mesmo sair.
- Eh, calma. Não tenhas tanta pressa. Queres beber alguma coisa enquanto esperamos?
- O que é que há? - A Helena olha agora para a cozinha.
- Tenho chá de menta e café e...
- Eu quero álcool, João...
Fico a olhar para ela com surpresa estampada pela minha cara afora. Ela muito, muito, raramente bebe bebidas alcoólicas. Normalmente vomita-se toda na manhã seguinte e anda uma semana inteira com enxaquecas.
São quase dez da noite.
- O que é que se passa contigo? Queres mesmo álcool?
- Tens vinho tinto?
- Sim, acho que ainda tenho ali um resto... Vou ver.
Pego na garrafa de tinto que está em cima do frigorifico e tiro dois copos do armário. Quando volto à sala a Helena está a chorar com a cara mergulhada entre as mãos. Fico sem saber bem o que fazer. Olho para uma pilha de CD's e tiro um ao acaso. Tiro o "Achtung baby" do CD player e introduzo o CD que tenho na outra mão. Olho novamente para a Helena que continua a chorar. Aproximo-me dela. Abraço-a e segredo-lhe:
- Apetece-te desabafar comigo?
- Não... - A voz dela está trémula mas a cara parece muito determinada.
- Então levanta-te e vem comigo. - Digo isto com a maior sinceridade. Pego-lhe nos braços e puxo-a do sofá. Ela levanta-se e agarra-se a mim, ainda a chorar e a olhar para o chão. Levo-a até ao telefone e marco um número ao acaso. Espero que alguém atenda.
- Está?
- Sim...
- Boa noite, tenho aqui uma amiga que está a passar um mau bocado e precisa de falar com um estranho. Precisa de desabafar, compreende? E você nem sequer precisa de dizer nada. Pode ouvi-la?
Uma pausa a indiciar uma resposta negativa do outro lado da linha.
- Bem... Se não demorar muito tempo...
- Obrigado, vou passar-lhe o telefone.
Passo o auscultador à Helena e afasto-me dois ou três metros dela.

- Não tenhas medo, desabafa, Helena.
A Helena acaba por perder o medo inicial e começa a falar com uma voz trémula.
- Olá. Eu estou a chorar e apetece-me desabafar... Eu... – A Helena soluça e chora com mais violência. - Eu... Eu não sei o que fazer... O Ahmed voltou de França ontem e está na casa da minha avó. Eu vivo na casa dela. E ele trouxe dois amigos também e acho que andam a fugir. E ele foi meu namorado quando estive em Paris a servir à mesa num café. Eu não sei o que eles querem nem quanto tempo vão ficar. O Ahmed já não gosta de mim. Eu não percebo nada... A minha avó não está nada contente com a situação e ameaçou chamar a policia mas eles ameaçaram matá-la se ela fizesse isso. E eles querem ficar lá em casa. - A Helena para de chorar e continua a dar seca sabe deus a quem eu liguei. - Eu não sei porque é que lhe dei a minha morada em Portugal, ao Ahmed, quero eu dizer... Ele não vale nada, eu sou uma parva e não sei o que fazer...
Um longo silêncio da parte da Helena. Não faço ideia se a outra pessoa está a falar com ela ou não. Ela, subitamente e sem dizer mais nada, desliga o telefone.
Vou para a varanda e sento-me no chão com as costas voltadas para a porta. Não consigo pensar em nada. Não consigo pensar naquilo que me preocupa, ou seja, não consigo pensar na Catarina. Sinto-me mal disposto e não sei se vou aguentar beber mais vinho tinto. Acho que o interior da minha cabeça está a ficar da cor do vinho; um vermelho a atirar para o negro. Pelo menos é assim que eu me sinto. E a situação lixada da Helena não ajuda absolutamente nada. Mas eu sei que não posso deixar-me levar por aquilo que os outros sentem à minha volta. Mas, o facto é que, está a acontecer. Não tenho forças para sair daqui e não tenho forças para beber mais vinho ou seja o que for, mesmo um simples copo de água. Ouço os carros a passar lá em baixo na avenida e penso no carro da Catarina mas não na Catarina. Depois penso como era bom que ela conduzisse um concorde em vez de um carro. Mas não é ela que tem medo de alturas? Os concordes voam muito alto, acho eu. E não é ela que costuma dizer que eu vivo muito alto? Tão alto que tem vertigens quando está comigo. Não a compreendo às vezes. E suspeito que nem ela própria. O que acaba sempre por ser uma pena, tanto para mim como para ela. E acaba sempre tudo mal, como desconfio que vai acabar desta vez. Talvez para sempre. Nem sei se é disso que tenho vontade.
Que acabe mesmo tudo, quero dizer.
A Helena vem para junto de mim e senta-se no chão. E faz-me a pergunta da noite:
- Queres vinho ou não?
Faz-me a pergunta como se eu passasse a minha vida a recusar vinho, o que não é de todo verdade. Faço que sim com a cabeça e tento encará-la para tentar perceber de onde vem aquela raiva toda tão implícita na voz dela.
Ela levanta-se e nem sequer tenho tempo de lhe ver muito bem a cara. Viro-me e vejo-a a pegar na garrafa de vinho e a vir, não muito segura, de novo para a varanda. Passa-me a garrafa para as mãos com um gesto brusco.
São dez e meia da noite.

O resto do Mundo

São nove e meia da noite na Argélia. Numa casa de chá em XXXXXXXXX bebe-se chá e café, fuma-se haxixe e conversa-se sobre um novo e polémico programa de televisão que vai estrear esta sexta-feira na TV estatal. Um programa americano erótico. Os homens discutem e dizem mal do programa apesar de nunca o terem visto. Mas todos eles o querem ver. Se vem da América só pode ser mau. Ninguém compreende como é que a TV da Argélia pode passar porcarias assim. Mas o que é certo é que toda a gente sente um certo fascínio pelo diabo. Por isso, quase, toda a gente vê programas de televisão americanos. E estes argelinos não são comunistas...

Apanhados a olhar para o Futuro

Hoje de manhã comi uma sandwich de carne assada com um pouco de maionese para disfarçar a fome e para tentar atenuar a ressaca provocada pelo vinho tinto e bagaceiras da noite anterior. Mesmo assim fico admirado por não me sentir ainda pior, o que só por si é um bom sinal. Já são duas da tarde e tenho mais um Domingo pela frente. A vontade de sair é nula, tal como a vontade de telefonar à Catarina. Decido ficar à espera que ela me telefone apesar de achar que isso é altamente improvável. Se calhar, ainda bem. Tento imaginar a Catarina meia despida e em cima do meu sofá a comer um gelado. Não sei bem porquê... Nem consigo visualizá-la muito bem. Será que isso quer dizer que já não sinto o mesmo por ela como à umas semanas atrás? Será que estou a ficar, aos poucos e poucos, mais estúpido? Ou mais insensível em relação a ela?
Começo a ficar nostálgico e dou por mim a pensar em tempos mais felizes que ficaram para trás e que teimam em não se repetir. Apesar de ainda não me sentir muito bem, penso em dar uma volta pela cidade para desanuviar estes pensamentos opressivos. Penso também que, como me conheço muito bem, isso não resulta nunca comigo. Mas não custa nada tentar, e além do mais já quase não tenho tabaco. Ligo o rádio e sintonizo uma estação que está a passar uma musica triste e lenta, mas como não tenho paciência para procurar mais... Vou para o quarto e começo a escolher a roupa que vou vestir. Acabo por levar uma eternidade até estar completamente vestido. Não porque tenha muita roupa, mas sim porque não me sinto com cabeça para decidir nada. Quando me olho ao espelho do elevador sinto que as cores das minhas roupas nem sequer combinam bem. Enfim, dizem que a roupa é a nossa pele e que reflecte o estado da nossa alma. Mais palavras para quê?
Está um frio de rachar hoje. O meu vizinho continua, ao que parece, a passear o cão na rua. Pensando bem, nunca o vi a fazer outra coisa nem nunca o encontrei noutro sitio sem ser nas redondezas da minha casa sempre com aquele maldito cão. Digo-lhe um "boa tarde" à pressa e reparo que o cão olha para mim por um ou dois segundos e que depois vira o focinho para olhar para outra coisa qualquer como se me tivesse olhado com desprezo.
Será que os cães olham para algumas pessoas com desprezo? Tenho de tentar saber isso com alguém que tenha cães. Não sei bem quem, mas hei-de me lembrar de alguém.
Quando chego ao café para comprar tabaco lembro-me que tu já tiveste um cão. Mas no entanto não me parece que sejas a pessoa indicada para me elucidar sobre os olhares de desprezo dos cães para com os humanos. Pelos vistos, também me irias olhar com ar de desprezo. Começo a olhar para o enorme monte caótico de revistas que estão à venda na tabacaria do café com a esperança de encontrar uma sobre os olhares dos cães ou sobre a psicologia deles em relação aos humanos mas não consigo encontrar nem uma revista que fale de cães. Ainda pergunto à senhora da tabacaria, que me
olha com um olhar algo perplexo, por uma revista do género mas ela responde-me que não conhece nenhuma. Pago o tabaco e o jornal e enfio-me dentro do café com a estranha sensação de que estou, finalmente, a ficar constipado. Ainda tenho um último pensamento acerca de revistas que consigam explicar olhares de desprezo. Tento lembrar-me de uma revista feminina que explique olhares de desprezo, mas acabo por achar isso altamente improvável. Espirro e peço um café ao empregado. Na mesa onde fico encontro um maço de Marlboro com 6 ou 7 cigarros. Fico secretamente contente e guardo o maço no bolso do casaco. Dez minutos depois peço um chá para ver se a constipação não evolui para algo de mais grave. Como se o chá resolvesse alguma coisa... Queimo os lábios com a primeira tentativa de gole. Decido esperar mais uns minutos até me aventurar outra vez. Volto à leitura do jornal já que não se passa nada de interessante na sala do café.

De minutos a minutos levanto a cabeça e olho lá para fora para a rua. Passam pessoas algo apressadas que de vez em quando me retribuem o olhar e seguem a sua vida. Não passa ninguém que eu conheça. Não há sinais da Catarina. Acho que começo a ter saudades dela. Sinto-me ansioso e nem sequer sei muito bem pelo quê. Sinto o tempo a passar e quanto mais ele passa mais certezas tenho de que estou a desperdiçá-lo. Acho que estou
mesmo é com saudades dela. Tenho de a ver. Não sei o que me impede de o
fazer.

Tempo ansiedade e calma

Não sei o que hei-de pensar do João. Não atende os meus telefonemas e começo a achar que algo de muito estranho se passa com ele. Chego por vezes a pensar que já não me ama. Por que é que ele não me telefona? Já há três dias que desisti de lhe tentar telefonar.

Estou a dar em louca com esta situação toda de não estar com o João sabe Deus há quanto tempo. O período veio mais cedo e não estou a conseguir comer nem dormir como quero. Já tentei apanhá-lo ao telefone pelo menos cinco ou seis vezes hoje. Porque é que não consigo? Será que ele merece o facto de eu me preocupar tanto? Ou que é que ele estará a pensar ou a fazer neste momento? E está, muito de vez em quando, uma voz a gritar dentro da minha cabeça. Como agora. Deve ser só por causa do período. Que mais poderá ser?
Apago o cigarro ainda a meio sem reparar bem no que fiz.
Tenho tentado pensar noutras coisas ou noutras pessoas mas a maior parte das vezes não consigo. Tenho tudo para ser feliz. Tenho dinheiro, um emprego de que gosto, sou saudável e alguém me ama e eu amo essa pessoa.
O.k., o que é que está a falhar? Talvez a parte do "alguém que me ama". Que tragédia... Ainda dou um tiro na cabeça se continuo assim. Devo estar com um aspecto deprimente. Sinto o tempo a passar muito devagar e isso nunca foi um bom sinal para mim.
Acendo um cigarro e pego novamente no telefone e sem me aperceber começo a marcar o número do João. Desligo sem esperar sequer pelo sinal de chamada e vou à cozinha buscar um copo. Encho-o de vodka quando chego à sala. Fico pelo menos dez minutos, que me parecem duas horas, a observar o vodka transparente a dançar no copo à medida que inconscientemente o vou abanando. Gostava de ser assim tão transparente. Depois bebo tudo sem parar. Sabe Deus quantos mais copos tenho eu de beber até ficar feliz novamente. Tem que haver um limite. Alguém devia dizer-me algo do género: “a partir do vigésimo ou trigésimo copo a vida vai começar a sorrir-te novamente”. Eu ouviria com atenção e só parava de beber ao trigésimo copo ou então quando a felicidade chegasse. Será que a felicidade faz algum barulho ao aproximar-se de nós? Fico a pensar nisso durante um bom bocado sem no entanto perder a noção de que a minha cabeça não me está a levar a lado nenhum. E se não está a cabeça, o que estará? Era muito bom, bom demais, se conseguisse parar de pensar. Algo me diz que esse é o estado de espírito que vou encontrar se continuar assim por mais tempo. Começo a olhar à volta com intenção de encontrar a garrafa de vodka. Apetece-me matar a cabeça. Dizem que o vodka é excelente para esse fim. Não sei o que vai acontecer depois de mais uns quantos copitos, mas qualquer coisa é melhor do que estar assim nesta espera e nesta lentidão. Pelo menos espero não vomitar. Não vou fazer misturas, só vodka. E na pior das hipóteses adormeço e sonho com o João. Merda.
Já vou no terceiro ou quarto copo de vodka e ando a deambular os olhos pelas pilhas de CD’s à procura de algo que piore a situação. Agarro o “Espírito da Paz” dos Madredeus e tento não pensar em nada aos primeiros
acordes. Nada feito; penso logo no mar e no João a olhar para ele. E nos cabelos dele ao vento. E na maneira calma e terna como ele me agarra na mão. E nas gaivotas que passam por cima de nós a planar.
Dou comigo a sorrir e de olhos semicerrados. Não sei se foram os Madredeus ou o vodka ou o João. Ou talvez tudo junto. Até parece que me sinto melhor. Olho para o copo. Bebo o resto e vou para a quinta ou sexta rodada. Tenho de contar os copos. Vou buscar uma folha de papel e uma caneta e faço cinco traços todos muito juntinhos no alto da folha. Quando chegar aos vinte paro para reflectir. Desato a rir às gargalhadas com essa ideia que no fundo me parece cada vez mais inevitável. Estou mesmo muito melhor. Já nem sei há quanto tempo não ria assim desta maneira. A minha sala parece maior e já tropecei duas ou três vezes naquela pilha de revistas. Os olhos ardem-me, talvez seja deste rímel comprado nos saldos.
Estou com um calor insuportável e parece-me que estou também a suar.
Cambaleio até à aparelhagem e levanto o som mais um bom bocado. Deixo-me deslizar, muito devagar, até à varanda. Está bem fresca. Alívio. Penso em ir buscar a garrafa e o saco-cama.
O chão da varanda parece-me molhado. Olho lá para fora e não consigo focar nada. Apercebo-me só do céu e das nuvens. Tudo o resto não passa de grande coisa. Agarro-me ao parapeito e penso em ir buscar a garrafa e o saco-cama. Não consigo perceber se estou em cima de uma poça de água. Choveu durante um bom bocado da tarde. Fico imenso tempo a lembrar da chuva e fecho os olhos por instinto. Sinto as pernas a enfraquecer e mexo-me um pouco. Só consigo pensar na garrafa de vodka e no saco-cama.
Está a ficar frio. Não sei onde pus os cigarros. Acabo com o vodka que ainda resta no copo.
Tudo o que vejo começa a confundir-se com a música dos Madredeus. Vou buscar qualquer coisa que tento lembrar a todo o custo. Mas sei que está no quarto. Vejo a garrafa na mesa da sala. Lembro-me do saco-cama.
Respiro fundo. Estou a ficar pior.
Chego ao quarto e olho fixamente para a cama. Sinto-me a cair na cama. Nem quero pensar em me levantar. Nem quero pensar.
Não sei porquê mas imagino o Concorde a explodir. Estou calma.

Acordo com um barulho que me parece ser da campainha da porta. Ainda não consigo pensar em nada e só me apetece sentir o cheiro da colcha
da cama. O amaciador de roupa é óptimo. Ouço uma voz a chamar-me. Não faço a mínima ideia de quem seja. Fico com a sensação que entornei vodka em cima da colcha. Há quanto tempo é que não lavo a colcha? O barulho recomeça.
Será o João ao telefone? Porque é que tenho o telefone na sala? Batem à porta e ouço mais sons de uma voz. Sei que não é o João mas fico a pensar nele e a desejar que ele tivesse do outro lado da porta ou do telefone. Não me consigo levantar e só me apetece descansar. Volto a adormecer envolta no barulho da porta e da voz que, pelos vistos, me chama. Acho que já é de
manhã sem o saber ao certo.

Volto a acordar. Levanto-me meia a cambalear e desligo o CD dos Madredeus. Como seria de esperar tenho uma dor de cabeça bastante avantajada no mínimo. Tenho uma sede descomunal; bebo dois copos de água de seguida e quase sem respirar. Sinto-me arrependida de ter pensado que não sei quantos vodkas iriam fazer com que a minha situação mudasse para melhor. Agora é bastante obvio que não foi isso que aconteceu. O que é certo é que a minha vida vai ter mesmo que mudar. Não sei ainda como nem quando mas desconfio que não deve faltar assim tanto tempo para que saiba.
Vou para a casa de banho e ponho a água a correr na banheira. Olho-me longamente ao espelho. Continuo a achar-me bonita. Pelo menos isso não está a falhar na minha vida. Reparo longamente nas ramelas que brotam de ambos os olhos e isso faz-me pensar numa sombra laranja que não uso há séculos. E vou acompanhar esse tom nos olhos com uma blusa de malha com o mesmo tom de laranja. Vou procurar o João e vou confrontá-lo, ele não me pode fugir eternamente. Apetece-me mais água, ainda não consegui tirar o sabor do vodka da minha boca. Estou completamente à deriva, não faço a mínima ideia de que horas possam ser. Mas o que é que isso importa? Há mais de uma semana que não sei onde está o meu relógio...
Na mesa da sala está uma folha de papel com doze pequenos traços. Não me consigo lembrar o que é que representam. Nem faço ideia porque é que essa folha está na mesa da sala ao lado de duas garrafas de vodka, uma delas ainda meio cheia. Não me lembro de ter duas garrafas de vodka em casa. Outro mistério...
Tiro a roupa, enfio-me na banheira e respiro fundo. Porque é que ainda me armo em parva e apanho estas bebedeiras estúpidas? Nem vale a pena pensar nisso. É impossível chegar a alguma conclusão. Que música será esta que toca tão baixinho?

Contentores cheios de sofrimento [excesso de bem-estar]

Ultimamente ando a pensar muito na Catarina e no João. Por mais que ouça a Catarina explicar-me que a situação deles sempre foi estranha e que agora está a atravessar uma fase má, não consigo é compreender porquê. E o pior é que nem eles próprios sabem o porquê. Bem, acho que não sabem, mas nunca se sabe. Mas eu gostava de saber. Adoro-os, acho que é por isso.
Ainda por cima devo ter acabado de sonhar com eles. Não tenho bem a certeza mas tenho uma intuiçãozinha... E tenho em cima da mesa da cozinha um charro ainda por fumar que sobrou do “convívio” de ontem à noite com a Helena e os seus dois amigos argelinos. Um deles, ao que parece, é noivo dela ou coisa que o valha. Cada vez que lho pergunto directamente, arranja sempre uma desculpa para não responder, por isso, não sei exactamente o que se passa. Nem a Catarina sabe...
O outro olhava para mim como se eu fosse uma bailarina de casa de alterna. E que olhos ele tinha! É uma pena ele só conseguir falar francês. Apesar de me perceber em inglês não conseguia perceber quase nada daquilo que ele me dizia. Ele falava em francês e eu respondia em inglês. Merda, já não me lembro de metade das conversas, ou tentativas de conversas, que tivemos ontem. Mas lembro-me de falar sobre as diferenças entre os espanhóis e os portugueses, coisa que ele me dizia não perceber. E por mais que eu tentasse, não conseguia explicar. Acabou por ficar a ideia de que tanto espanhóis como portugueses são todos a mesma coisa. Isso deixou-me a pensar durante um bom bocado depois de se terem ido embora. Depois, não sei. Nem me lembro. Mas não fui para a cama com ele. Se bem que vontade não me faltava. Mas estava a tocar Madredeus e sentia-me com vontade de voar dentro da minha cabeça até adormecer.
Provavelmente foi isso que aconteceu. Devo ter adormecido muito rápido. O tempo suficiente para me lembrar do meu primeiro nome: Maria.

9743387495304394308948 Km

O que é que tenho de fazer hoje? Ora aí está uma coisa boa para se pensar.
O pior é que só me apetece rir. Rir de tanto pensar em coisa alguma e esperar uma conclusão qualquer...
A coisa de que tenho mais medo é a distancia. É algo demasiado doloroso em si. Creio mesmo que aquilo que matou os meus pais foi a distancia. E, paradoxalmente, eles tiveram telefone pela primeira vez nessa altura mesmo antes de dizerem adeus um ao outro, pessoalmente. E é muito provavelmente aquilo que me está a matar aos poucos e poucos. E se ainda fosse só isso...

Tenho um objectivo para os próximos minutos; pensar no que devo fazer. Não posso de maneira alguma desviar-me para outro pensamento. Até que o telefone toca secamente. O encurtador de distancias manifesta-se. Fico uns breves instantes com a ilusão de que a minha pessoa especial estará do outro lado da linha ou da distancia, depende da perspectiva. Levanto o auscultador e digo qualquer coisa curta e imperceptível. Alguém responde.
- Olá João. Que tal? Olha, espera só um bocadinho. Não desligues... Volto já.
Nem tenho tempo de dizer a mais pequena palavra. Ouço o auscultador a ser colocado em cima de algo. Fico à espera. Ouço música muito baixinho. Uma canção que não conheço com um refrão repetitivo onde alguém grita/canta “New York, New York”. Faz-me lembrar estranhamente o Frank Sinatra. Mas não tem nada a ver. Consigo, de vez em quando, ouvir a Helena a falar com alguém. Será que está com a Catarina? Não consigo perceber bem a outra voz mais sumida que contracena com a voz da Helena. Fico com o coração mais acelerado e passam-me pensamentos supersónicos pela mente. Começo a suar nas mãos e ouço o crescendo da música, praticamente em jeito de explosão; “New York, New York”.
A música tem um final abrupto e consigo perceber finalmente que a conversa que a Helena está a ter com alguém é, na realidade, uma maneira de puxar o meu inevitável destino de conseguir falar com a Catarina num plano real.
Aguço o ouvir para tentar perceber se a outra pessoa é a Catarina. Começa a tocar outra música. Fico danado com isso e com o facto de a Helena parecer ter-se esquecido que eu estou no outro lado à espera. Entretanto tudo o que consigo ouvir além da música é um barulho de alguém a rasgar ou a amarrotar papel, não sei bem. Já estou à espera há uma eternidade. Sinto uma brisa nas minhas costas. Fico sem perceber se está assim tanto vento na rua.
Agora começo a ouvir alguém que parece chorar. Tento concentrar-me.
Continuo a ouvir um choro muito baixo e suave. Provavelmente alguém que perdeu o controle na casa da Helena. Não é nada de estranhar, sempre se passaram coisas estranhas ou fortes demais naquela casa.
Reconheço o choro da Catarina. Então, é ela que lá está com a Helena. Era disso mesmo que eu secretamente estava à espera. Mas porquê? Não consigo perceber nada. Tenho de para um bocado. Já estou para parar à muitos meses, tantos que nem sei bem... Ou então parei de vez e nem dei por isso. Estou com a ilusão de que as coisas se passam muito depressa e afinal estou parado. E pelos vistos, as coisas passam-se é muito devagar. Este telefonema é um exemplo vivo disso. Já não estou de pé ao telefone, estou atravessado num maple. Olho para a rua. Por momentos, esqueço-me do que estou aqui a fazer.
- João, ainda estás aí? – A voz da Helena muito baixinho ao auscultador.
- Sim, por que é que demoraste tanto tempo? – Pergunto com um ar chateado.
- Espera só mais um momento...
- Mas... – Ouço o telefone a ser pousado em cima da maldita mesa.
Fico novamente preso no ar. Entre a distancia ou numa das extremidades da mesma. Fecho os olhos e imagino a distancia representado no vazio. Desenho um pontilhado entre os dois pontos extremos da distancia. Depois escrevo com a minha mão “quero é que tudo isto se foda. Quero que a Helena e a outra tipa que chora vão dar uma voltinha pela rua para ver se desanuviam”.
Penso em cortar a chamada. Simplesmente desligar. E esperar que tudo acalme ou não. Decido esperar mais uns minutos. Afinal, tenho de ser compreensivo com uma situação que não compreendo. Largo o meu auscultador no maple e vou buscar cigarros. A espera vai ser longa.
O maço de cigarros, pelos vistos, eclipsou-se. Não o encontro em lado
nenhum. Volto para o maple. Levanto o auscultador e escuto; música outra vez. Não consigo ouvir a voz de ninguém. Nem sei bem que música estou a ouvir. Uns tambores com um ritmo repetitivo e muito pouco mais. Acabo por reconhecer uns segundos mais tarde uma das minhas bandas preferidas de sempre: Deee-lite. Só não me consigo lembrar do nome do álbum. Nem sequer sei muito bem se o tenho em casa ou emprestado a alguém. Será o meu CD que está a tocar em casa da Helena? Pouco importa, se soubesse do paradeiro de metade dos CD’s que já emprestei teria a maior colecção da Europa.
Por mais que tente iludir-me não pressinto nada de bom deste telefonema.
Reparo, entretanto, no maço de cigarros caído no chão junto ao maple. Apanho-o sofregamente e acendo um dos cigarros sem pensar em mais nada. Fico durante um bom bocado só a olhar para o fumo e para o cinzeiro sem saber muito bem no que penso ou hei-de pensar. Já não ouço vozes ou choros do outro lado da linha. Isso acalma-me.
Largo novamente o auscultador no maple e vou à cozinha buscar um copo e a garrafa de Martini. Encho o copo até quase transbordar e retorno ao
telefone. Sorvo um trago e arrepio-me todo. O Martini está gelado. Demasiado gelado. Largo o copo no chão e pego no auscultador. Nada, só música muito baixinha. Prendo o auscultador entre o ombro e a cabeça e pego outra vez no copo. Apanho o cigarro que estava a descansar no cinzeiro e dou uma passa forte que me faz sentir enjoado. E sem forças para continuar à espera seja do que for, mesmo que espere arduamente pelo final deste telefonema.
Com tantos quilómetros de cabo telefónico entre o meu telefone e o telefone da Helena ainda acontece alguma avaria e a linha cai de repente como se nada fosse. Nada de que eu não espero. Acho que seria o melhor final para um destino que teima em não se cumprir.
Um acidente. Afinal, os acidentes acontecem a toda a hora.

A Liberdade aqui soa-me a demasiadas escolhas

Estou na casa da Helena e não me consigo lembrar da password do meu email. Estou desorientada e preciso enviar uma mensagem a alguém lá do emprego de quem não me lembro do nome. Sei que a Helena tem computador em casa e sei também que ela não se vai importar de me aturar durante uns minutos. Assim podemos falar. Acho que não aguento muito mais tempo sem falar acerca do João. Estou mais ou menos perdida. O que é que posso fazer para sair disto?

A Helena olha para mim de tempos a tempos, sem me dizer nada. Está à espera que eu comece. Estamos as duas a folhear umas revistas estranhas da Helena.
Montes de fotos de animais e oásis, e outras coisas assim. A maior parte das vezes nem sequer consigo concentrar-me em nada de concreto. A Helena parece assustada com as minhas “maneiras”. Apesar disso tudo acho que estou razoavelmente bem. Quase arrisco dizer que estou alegre. Quase.
Tocam à campainha da porta. A Helena levanta-se imediatamente com um pulo mais ou menos suave e vai ver quem será. Está mais magra. Como é que ela consegue se leva o dia todo a comer? Deve andar mas é metida nalguma merda que a faz perder montes de energias. Deve ser isso... Tenho de lhe perguntar muito levemente, esse tipo de coisas têm de ser abordadas com muito cuidado. Tenho andado a pensar que devo ser a única mulher neste planeta que não consegue emagrecer.
É a parva da Maria que aparece com a Helena à porta da sala. E está com um aspecto horrível. Parece prestes a chorar a qualquer momento. Quase nem me consegue dizer olá. Respondo-lhe quase no mesmo tom sumido e volto a espetar os olhos na revista. Pelos vistos também não estava à espera de me encontrar aqui na casa as Helena. Tiro os olhos da revista e encaro-a.
- Maria, tens visto o João? – Pergunto-lhe um bocado a medo embora já saiba qual vai ser a resposta. Ela vira-se para mim.
- Catarina, não sei bem há quanto tempo... – A Maria para. Olha para mim e para a Helena e pergunta:
- Quem é que me pode ajudar agora?
Não lhe consigo responder. Fico um bocado a olhar para ela, depois desvio o olhar ainda a tempo de ver a Helena a aproximar-se da Maria. Não me apetece ouvir problemas. Já tenho vários, obrigada. E além do mais a Helena é que é a dona desta casa.
Agora só me resta esperar um bocadinho até tentar resolver o meu problema com a Helena. A Maria parece em muito pior estado do que eu. Eu posso dar-me ao luxo de esperar.
Tudo nesta casa me parece fora do lugar. Não me lembro de alguma vez ter visto aquele móvel à entrada da cozinha, por exemplo. E os livros dantes estavam quase todos à entrada do corredor e agora... Será que a Helena vendeu tudo? Além do mais parece que a casa tem um leve cheiro a hospital. Cheira-me a medicamentos, de vez em quando. Isso faz-me sentir incomodada.
Paro de pensar quando começo a ouvir a Maria a chorar junto à Helena. Chora como se estivesse quase a morrer sem perceber porquê. O chorar dela é algo que se deve evitar a todo o custo. Nunca me doeu tanto ouvir o choro de alguém como o da Maria. E por falar nisso não me lembro nunca de ter visto muito menos ouvido a Maria a chorar. Custa-me a acreditar. Nunca supus sequer que ela pudesse chorar de todo.
A Helena tenta abraçá-la e confortá-la o melhor que sabe mas deixa, de vez em quando, escapar uns olhares de incompreensão em minha direcção. Pelo menos é o que me parece daqui. Nem me ouso mexer. Acho que não consigo, ou não quero... Nem sei bem.
Entretanto o drama da Maria dura por mais umas boas duas horas de pranto e choro. Durante uma parte desse tempo, não consigo precisar quando, aconteceu uma coisa estranhíssima para mim. Tive a rara oportunidade de ter o João à espera do outro lado do telefone e não falar com ele. Nem sequer me aproximei do telefone. Quem fez a chamada foi a Helena. A meu pedido, claro.
Ainda estou para perceber o que é que se passou, exactamente, na minha cabeça. Deve ter sido do stress todo causado pelo maldito choro da Maria. Quem me dera poder acreditar nisso. O cheiro a medicamentos sente-se outra vez no ar.
Enquanto a Maria chorou pus no Cd Player Sony 200XCDE da Helena alguns discos para atenuar a passagem do tempo. Deee-lite, um CD dos U2 que não conhecia e mais não sei quê. Não conheço. Enquanto estava a ouvir esse tal CD dos U2 (“All that you love” acho eu), logo na primeira música, ligo a tv em mute e percorro alguns canais. Consigo ver a tal explosão do Concorde francês de que toda a gente fala. Ainda não consegui perceber muito bem o que aconteceu para o avião explodir. Acho que não tenho estado nada atenta aquilo que se vai passando à minha volta. Também nunca me interessei muito por notícias. Mas um Concorde a explodir em pleno Orly? O que é que se terá passado? Será que eu conheço alguém que estivesse a bordo? Lembro-me de ter ouvido falar que tinha morrido toda a gente.
Acabo por pedir à Helena um tempo de internet. Ligo-me e procuro um site qualquer de notícias. Distraio-me com um banner publicitário da Fashion tv e nunca mais me lembro do avião.
Já estou online há pelo menos uma hora. Dei com uma rapariga parecidíssima comigo numa site de uma revista de moda e já não tenho paciência para ver mais nada. Nem tenho pachorra para falar com ninguém. No entanto a imagem daquela outra Catarina na site deixou-me a pensar de uma maneira muito estranha. (...)

Title

Estou a ficar farto de tudo na minha vida. Penso em mais coisas do que as que realmente faço. Estou a decair. Para onde, não sei ainda. Ando ao sabor de um vento que não sinto. E como tal, nunca sei a que velocidade ando. Por vezes julgo estar acelerado e toda a gente à minha volta pergunta-me se estou bem ou com vontade de dormir. E, por vezes, só nessas alturas é que me apercebo a que velocidade estou. Depois é estranho aperceber-me de que, por exemplo, estava contemplativo demais ou a enervar-me sem razão aparente. E quando isso acontece o melhor a fazer, segundo aquilo que julgo saber, é ignorar pura e simplesmente a que velocidade se vai e continuar em frente. Isso acaba sempre por não importar.
É exactamente dessa maneira que me sinto. Não faço a minima ideia do que pensar daquele telefonema que não o chegou a ser. Nem sequer sei bem já com quem falei.

Alberto Gassé(...)

Estou a tocar à campaínha do João sem ter telefonado antes. Começo a perceber que isso nunca é uma boa ideia. O cabrão deve estar sabe deus onde. Em casa é que não... Devia ter telefonado antes. Pareço uma máquina repetidora de pensamentos. Ando às voltas sem nunca saber muito bem por onde ando.
O gajo afinal estava em casa. Mesmo quando me estava a mentalizar que deveria ter telefonado antes, a porta abriu-se.
- Hey, João! Então pá?
- Alberto. O que é que queres?
Fiquei um bocado a olhá-lo. A tentar perceber se se passava algo de estranho com o João. O mais engraçado é que nenhum de nós falou durante uns bons 15 ou 30 segundos, não sei bem.
- Então João? Isso são maneiras de me tratares?
- Deixa-te de merdas e entra. - A voz do João parecia-me normal, mas mesmo assim havia ali algo de estranho que planeava descobrir ao fim de conversar com ele durante um bocado.
Começámos por falar de um vaso totalmente branco que ele tinha estado a pintar há alguns dias com a Helena! À medida que a conversa avançava, ia percebendo cada vez menos. E ia sabendo um pouco mais acerca da maneira estranha de como o João está hoje. Ele não parava de reflectir a alma dele em mim. Mas eu não conseguia perceber o que é que se estava a passar com ele. É simples, não?
- Tens visto as notícias sobre a explosão do Concorde da Air France? - Tento agora pôr alguma realidade de volta à nossa conversa. Penso na minha família em França e agradeço a deus por não viajarem de Concorde. O João olha para a janela e não diz nada durante um bocado.
- Sim, ouvi qualquer coisa sobre isso. Já se sabe porque é que o avião explodiu? - O João faz-me a pergunta muito lentamente, como se tivesse passado a um estado de espírito mais estranho ainda.
A expressão facial do João mudou. Ficou com um ar estranhamente carregado. Não consigo perceber bem porquê. Não estavamos a falar de nada em especial quando eu mudei de assunto para o Concorde. Se não o conhecesse há tanto tempo estava capaz de suspeitar que ele sabia algo sobre o assunto que não podia dizer. Mas acho isso tudo um disparate, claro.
- Bem, acho que a versão mais credível até agora é aquela dos terroristas argelinos. Todas as outras me parecem um bocado fantasistas para o meu gosto. Acho que forma mesmo esses tais argelinos, dos quais não me lembro do nome, que fizeram explodir o Concorde.
- Terroristas?
O joão fica a olhar para mim e espera uma resposta. Aonde é que ele tem andado?
- Sim, é a hipótese mais provável. Ainda não existem certezas mas, de certeza que não vão demorar muito a aparecer. Ainda ontem telefonei à minha mãe, que como sabes está a viver em Perpignan, e ela diz-me que toda a gente lá fala nos argelinos e têm muito medo deles. A França já tem uma longa história de atentados terroristas feitos por argelinos, sabes?
- Ah, sim... - Faz uma pausa considerável. - Como é que está a tua mãe? Quando é que ela te vem fazer uma visita?
- Talvez daqui a umas semanas, ela não sabe ao certo quando é que pode vir... - A minha mãe gosta muito do João. Acha que ele é uma pessoa muito corajosa e audaz. Nunca concordei muito com ela, mas acabo por admirar também o João, embora por razões diferentes.
Estou com imensas saudades dela. Já não a vejo há quase seis meses. Acho mesmo que nunca estivemos tanto tempo sem nos ver. Espero que ela não se lembre de trazer o actual namorado dela, o Jaques qualquer-coisa. Acho-o um completo idiota. Nunca percebi o que é que ela vê nele. Mas o que interessa é que ela é feliz com ele. E ainda bem. Bom, podia ser melhor, se ela tivesse escolhido outro namorado. Mas não me parece que isso venha a acontecer num futuro próximo, ou afastado...
- E a Catarina, como é que ela está? Não a vejo há pelo menos um mês...
- Bem... A Catarina... - O João faz uma pausa. - Quero dizer... Não estou com a Catarina há já algum tempo. Não a consigo contactar pelo telefone e acho que ela também não tem muita vontade de me ver. Acho que as coisas estão a morrer...
- Não digas isso João. Logo voçês! Vais ver que as coisas vão melhorar...
- O problemas não são as coisas melhorarem de um momento para o outro. O problema é que ela parece estar a desinteresar-se muito rapidamente de mim. E eu...
- E tu o quê? Tu também já não gostas dela?
- Não é bem assim. Estas coisas nunca são assim tão simples... Para te falar a verdade estou tão estranho que nem consigo explicar bem o que é que se está a passar. E nem sequer tenho a certeza daquilo que estou a sentir...
Agora a lucidez na cara dele fez-me repensar tudo o que eu estava a achar do João até agora. Ele afinal não está tão perturbado assim. Pelo menos consegue admitir algo de íntimo que se passa com ele. É pena, a Catarina não merece nenhum tipo de merda. Muito menos as merdas que este tipo lhe pode proporcionar. Acho que ela devia pensar bem no que quer fazer da vida, supostamente, em conjunto com o João. Ou talvez não...
- Não queres beber algo mais do que esse café?
Enquanto o João não aparecia na sala com os dois vodkas que prometeu preparar, não pude deixar de reparar num pequeno caderno em cima da mesa.
Quando me inclino para perceber melhor o que estava manuscrito em capitais na capa ele chama-me à cozinha.
Ajudo-o a reparar uma porta do armário que estava prestes a despedaçar-se no chão. Não consigo perceber este gajo. Fala comigo com um ar demasiado estranho para o meu gosto.
- Obrigado, podes voltar à sala se quiseres... - Foi tudo o que ele disse.
Na capa do caderno está escrito “PREPARATIVOS - NÚMEROS PARA ARGÉLIA”. As letras afinal são bastante grossas e garrafais. Parece ter sido escrito à pressa. Ou então num autocarro em andamento. Argélia??? Quem é que o João conhece na Argélia? Quase que não consigo resistir. Mas resisto. É muito mau estar a mexer em coisas que não me digam respeito. Prefiro perguntar-lhe directamente o que é que o caderno contém.
Há mais ou menos dois anos, não me recordo muito bem, o João conheceu a Catarina num sítio que não lembra ao diabo. Eles encontraram-se num café mal-cheiroso de bairro. Acho que o bairro em sí também não era muito agradável. Ambos me disseram que se conheceram, não porque estavam no mesmo local à mesma hora e engraçaram um com o outro mas sim porque acharam piada ao facto de ambos terem em cima das respectivas mesas cadernos exactamente iguais. Acho mesmo que nunca se chegaram a desfazer desses cadernos, guardando-os até ao dia de hoje e tendo um orgulho peculiar nisso. Mas acho que aquele caderno em cima da mesa não é nenhum desses que eles tinham no dia em que se conheceram. Este caderno não me inspira confiança e começo a ter um pressentimento estranho em relação a ele. Uma referência a “Argélia” não augura nada de bom, principalmente nestes tempos que correm... Vem-me à cabeça a imagem do Concorde a explodir no Charlles de Gaulle.
O João entra de novo na sala com os dois copos cheios de vodka com gelo e um café. Apetece-me apanhar uma moca leve. E para isso, nada melhor do que o vodka, pelo menos é o que a minha mãe não pára de repetir quando está tocada. Tenho saudades de conversar com ela quando está mais para lá do que para cá. E eu, decididamente, quero ficar mais para lá do que aqui. Dou o primeiro gole e arrepio-me. Fico sem perceber se foi por causa do gelo ou se foi por causa do facto de o vodka estar estúpidamente forte. Mas no fundo um arrepio é sempre uma sensação de prazer...
Decido entrar a matar. A minha curiosidade já não aguenta muito mais tempo:

- João, que caderno é aquele ali?
Ele olha directamente para o caderno sem eu sequer ter apontado na direcção onde o caderno se encontra.
- Hum... - Faz uma pausa deveras suspeita. Decido não acreditar no que vem a seguir. - Acho que a Helena se esqueceu dele aqui em casa quando esteve comigo há uns dias atrás...
Decididamente não acredito nele.
- Aliás, acho que o caderno até nem é dela. Acho que é do tipo com quem ela anda agora, um argelino chamado Ahmed ou coisa que o valha...
Não acredito mesmo nele.
- Ele, quero dizer, esse Ahmed fala português?
- Hã? Porquê?
- Bem, o que está escrito na capa está em português, não é?
- Ah sim, fui eu que escrevi. a Helena não gostou muito da brincadeira...
Já estava um bocado bêbado quando, para brincar com ela, me lembrei de escrever isso na capa do caderno. Sabes como é...
Continuo a não acreditar.
- Posso ver esse caderno? - Quero ter a certeza. E ainda por cima a minha curiosidade não para de aumentar...
- Acho que sim... Se queres mesmo que te diga ainda nem sequer peguei nele. Mas acho que não deve ser nada de íntimo por isso, se quiseres, podes ver.
Levanto-me do sofá e apanho o caderno da mesa. Estudo uma vez mais o título escrito pelo João. Acho que essa parte é a única verdadeira de tudo aquilo que ele me disse. A letra é inconfudivelmente dele. E o resto do caderno também é dele, tenho quase a certeza.

Vi o que estava escrito no caderno. Fiquei sem saber muito bem no que acreditar. Acho mesmo que me está a escapar a verdade no meio disto tudo. Tudo o que estava nesse caderno, e que eu pudesse entender, era uma série interminável de números de telefone com pequenos rabiscos a separá-los.
Esses rabiscos, suponho eu, só podem ser caracteres arabes. E isso assusta-me um bocado. Mas se calhar é porque vivi em França durante uns tempos e lá ninguém curte muito os argelinos… Onde é que a Helena ou o João, já nem sei muito bem, estarão metidos?

O que o João pôs no CD player para atmosferizar a nossa conversa é uma das minhas músicas preferidas, “Hallo Spaceboy” do David Bowie. O problema é que esse tema está sempre a repetir. Acho que o João está obcecado com alguma coisa do mesmo modo que o CD player ficou obcecado com o “Hallo Spaceboy”. Parece que já vi este filme noutro lado qualquer.

Estou stressado por causa disso. São dez e meia da noite e estou em casa.
Estou mais torto do que direito e custa-me pensar, seja no que for. Não
tenho vontade de fazer nada. Tenho uma mensagem da minha mãe no gravador de chamadas. Tenho um presentimento estúpido e infundado; acho que a minha mãe está prestes a morrer. Não sei porquê. Tenho de começar a pensar em abusar menos no vodka. As minhas mãos às vezes tremem e a minha cabeça começou a doer. Vou tentar falar com a minha mãe antes que adormeça no sofá ou na cama.

Mudança [João]

Acordo com o “Hallo Spaceboy” a tocar, sabe deus desde quando. A primeira coisa que faço é pressionar o stop do CD e voltar para o sofá, onde acabei por adormecer ontem. Mais uma noite sem ir à cama. Qualquer dia vendo-a.
Há um cheiro a vodka na sala que está a tornar-se insuportável. O que só vem prejudicar o meu estado de espírito mau e o meu estado físico que está, cada vez que acordo, pior. Volto a levantar-me do sofá e levo os copos e a garrafa para a cozinha. Aproveito esse facto para preparar um copo de leite com um pouco de café que sobrou de ontem ou antes de ontem. Volto para o sofá e acendo um cigarro.
Vou dando passas e pequenos goles no leite. Tenho ainda demasiado sono para sequer pensar em fazer qualquer coisa. O meu único destino neste momento é voltar a dormir mais.

Volto a acordar e já são três e tal da tarde. Já estou melhor. Sinto a má disposição a desvanecer. Meto-me na banheira e levo mais de meia hora no duche. Quando me começo a vestir sinto-me muito melhor, quase sem ressaca nenhuma.
Agora só tenho vontade de beber um café, comer um bolo seco qualquer e ler um jornal qualquer. Enquanto desço as escadas até à porta do prédio lembro-me de o Alberto me ter falado em argelinos e em bombas ou explosões, ou lá o que é isso. E lembro-me também da cara de desconfiado que ele me fez quando lhe disse que o caderno que estava em cima da mesa pertencia à Helena. E nada disso faz o menor sentido para mim.

Chego ao café mais “in” do meu bairro, já depois de ter comprado o Público, e sento-me numa mesa junto à janela e longe da confusão de pessoas que estão ao balcão. Abro o jornal sem sequer olhar para a capa e começo a passar os olhos muito rapidamente e sem atenção nenhuma pelos títulos enquanto espero que a empregada me venha perguntar o que quero. Atentado ao Concorde: Luto nacional em França por 3 dias. Salários voltam e estar abaixo da inflação. Estas e outras merdas do mesmo género é só oque consigo ler. Vou directamente para a página das diferenças e começo a tentá-las descobrir. Vou marcando as diferenças com um fósforo já ardido que estava no cinzeiro. Detesto cafés onde fazem má cara quando pedimos uma caneta emprestada. Nem sei muito bem porque é que venho montes de vezes a este café de tios e tias. Lembro-me de repente; é simplesmente porque foi aqui que conheci a Catarina. E por me ter lembrado disso faço (mais uma) nota mental para lhe telefonar assim que chegar a casa. Se calhar era melhor apontar algures numa página do jornal, mas não tenho caneta e não penso em pedir nenhuma.

Ao fime de ter detectado quatro diferenças das dez que realmente existem, aparece a empregada com aquela cara de que está a fazer um frete do caraças. Fico a olhar para ela à espera de um “boa tarde” ou algo parecido. Um sorriso bastava.
Decido ser eu a sorrir e a falar-lhe.
- Olá, ainda bem que está contente por me ver.
- Diga lá o que quer… - A cara dela ainda está mais carrancuda, se é que isso é possível…
- Um sorriso seu… - Estou a testá-la. Até onde é que uma criatura destas pode ser puxada?
- Desculpe, mas não estou bem disposta nem tenho tempo para graçinhas. – A resposta vem seca mas não muito convincente.
- Ok, desculpe lá a minha simpatia, mas é natural e eu pouco posso fazer para a evitar. E sem perder-mos os dois mais tempo faço já o meu pedido: quero um café e um bolo daqueles sem creme. Nunca sei o nome...
Ela faz que sim com a cabeça e vira-me as costas ainda com aquela expressão de muito pouco agrado.

Fico de novo sozinho e, pior do que isso, a pensar na Catarina e a pensar na razão deste nosso distanciamento. Nem consigo detectar nem mais uma diferença no jornal. Ponho-o de lado e levanto a cabeça, talvez à procura de alguém. Ou mais precisamente, à procura dela. Se bem que seria muito difícil encontrá-la aqui e agora. Ela deve estar no emprego.
E depois do bolo, extremamente seco, só me apetece um moscatel. Levanto o braço e tento encontrar a simpática criatura que me atendeu há uns minutos atrás. Ela, por sorte, vê-me e dirige-se a mim com aquela carinha mal humurada e faz a pergunta do costume. Lanço-lhe uma expressão séria e um pedido de “um moscatel, rápido, por favor”. Imagino agora a menina a vir ter comigo, não com um moscatel, mas sim com uma faca que tem como destino alguma veia mais saliente do meu pescoço.
Infelizmente, em vez da faca, ela traz-me, além da bebida, uma cara de muitos poucos amigos. Agradeço-lhe entre-dentes com a minha voz a roçar o sussurro e começo a deliciar o meu paladar com o vinho. E penso no que fazer para as horas passarem mais rápido. E perco-me. Não sinto o tempo passar. E perco-me nos pensamentos, que começam a ser cada vez mais dolorosos, sobre a Catarina. E o que o Moscatel faz é potenciar todos estes pensamentos. Peço mais dois moscateis antes de me levantar para ir pagar.
E, aos poucos, perco a vontade de fazer nada. Tenho mesmo de lhe telefonar. Ou então, vou mas é mesmo a casa dela. Em vez disso tudo, volto para casa, deito-me novamente no sofá, penso em vender a minha cama e adormeço sem dar por nada.

Entretanto enquanto durmo, a Helena e mais dois rapazes argelinos tentam telefonar-me. Mas como estou com um sono anormalmente profundo, não ouço, e por isso não atendo o telefone. E vou sonhando que a rapariga do café é a tal Joana que me telefonou há uns tempos atrás a dizer que me conhecia de um bar e de uma noite qualquer. Acordo a suar e ligeiramente assustado, apesar de não me lembrar de nada do que sonhei. Estou bom é para mais um duche. São oito e meia da noite. Aonde é que eu vou arranjar sono para esta noite? E o que é que isso importa?

Levo, outra vez, mais de meia hora no duche e quando saio olho para o relógio do quarto que já marca quase nove e meia. Mas pensando bem, não tenho lado nenhum para ir. Dou um suspiro e olho para um jornal que está, estranhamente, no chão da sala. Lembro-me, de repente, de telefonar à Catarina. Vou para o telefone e marco o número que nunca me sai da cabeça. Do outro lado sei que o telefone toca e toca e volta a tocar sem, no entanto, ser atendido pela Catarina. Tento ainda mais duas ou três vezes e começo a ficar com fome. Desisto e visto-me à pressa para ir jantar, não importa onde.
Enquanto vou na rua, sem destino definido, penso num restaurante caro como tudo mas com um serviço excelente onde todos os empregados e, principalmente, empregadas sorriem para mim como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo para eles. E é mesmo assim que eu me quero sentir. Tenho imensas saudades de me sentir assim e levei este tempo todo a aperceber-me. E não quero saber que eles são pagos para agirem assim com os clientes, vou fazer de conta de que nada sei a esse respeito.
E vou percorrendo as ruas que me faltam sem pensar em grande coisa. É desta maneira que eu gostava, no fundo, de estar sempre. Sem pensar, principalmente na Catarina. E estala-me dentro da cabeça, sem saber porquê, uma música que eu e a Catarina adoramos. Acho que é da Lisa Gerrard. A voz dela, alguns violinos, um violoncelo e um ritmo muito suave de tambores do norte de África. E essa música paira e vai repetindo-se até eu dar com o tal restaurante, ao fim de duas ou três tentativas falhadas. Ainda me consigo perder na cidade que conheço e isso é sempre um bom sinal, pelo menos para mim.
Mas, talvez por causa dessa música da Lisa Gerrard, chego à entrada do restaurante com uma expressão demasiado triste para o que estava à espera quando vejo o reflexo da minha cara no vidro da porta principal. Verifico se tenho dinheiro comigo, um velho hábito, e entro decidido a devorar um jantar de simpatia. Mal sabia eu.

Mudança [Catarina]

Entro quase à pressa naquele restaurante que o João adora e que eu, para falar a verdade, fico sempre com inveja da maneira de como algumas empregadas o tratam. Olho para o relógio e são quase nove e meia. Estou sozinha, apesar do convite da Maria para jantarmos as duas. Estou com arrepios estranhos mas não tenho frio nenhum. Sento-me numa mesa ao fundo, junto à caixa registadora, e começo logo a folhear o menu. E escolho um vinho tinto alentejano do qual tenho saudades. A comida, essa tenho tempo para a escolher. E fome é coisa que não abunda hoje em mim.
Cruzo as pernas e acendo um cigarro. Olho em volta e começo a reparar nos outros clientes que já cá estão. Ninguém conhecido.

Mudança 2 [João] Não estava nada à espera disto

Assim que ponho um pé dentro do restaurante, uma empregada muito bonita e elegante para não dizer boazona vem imediatamente ter comigo e pergunta-me onde me quero sentar. Olho à volta e reparo em duas ou três mesas vazias à minha espera. Começo logo a sentir-me melhor. Olho para a empregada e ela sorri-me com toda a força que tem. Volto a olhar para a sala e é aí então que reparo na Catarina, sozinha e sentada numa mesa lá ao fundo. Acho que mudo de cor. Deixo de ser moreno e passo a ser da Escandinávia. Sinto a parte entre o nariz e o lábio superior a encher-se de água corporal. Olho de novo para a empregada que ainda me sorri expectante e começo a sentir os olhos a encherem-se com mais água corporal. Não consigo dizer nada e ela deve estar a pensar que sou parvo ou coisa ainda pior. Por fim diz-me:
- Posso aconselhar-lhe aquela mesa ali. - Aponta para uma mesa mesmo junto de nós e da entrada. Depois ainda me pergunta:
- Sente-se bem?
Só lhe consigo acenar com a cabeça que sim e sigo-a. Nem consigo apreciar-lhe o rabo como deveria ser. Sento-me, ou deixo-me cair na cadeira e reparo que fico virado na direcção da Catarina que nesta altura fuma um cigarro e olha distraidamente para o prato ou lá o que é que ela tem à frente. Está de cabeça baixa, portanto não me deve ter visto.
Seguro, com as mão ligeiramente a tremer, no menu e passo directamente à página dos vinhos tintos. Escolho um tinto alentejano e levanto o braço à procura de uma empregada. Tenho de me acalmar. Eu sei, mas não tomo consciência disso. Deve ser natural. Ainda estou para perceber porque é que não me sentei na mesa da Catarina mas infelizmente não tenho vontade de analisar isso com mais profundidade.
A empregada chega e digo-lhe o que quero e que preciso de mais tempo para decidir sobre aquilo que realmente quero comer. Ela diz-me que traz o vinho imediatamente com um sorriso cheio de calor. É assim mesmo. Limpo o suor da cara e acendo um cigarro desajeitadamente.
Parece que fumo um charro. Sinto-me mal. Não fisicamente, tudo pelo contrário. Já quase nem sinto o meu corpo. A não ser as mãos que teimam em tremer. Fora isso, nada. Bebo um grande trago do vinho que entretanto chegou. E começo a suar mais na cara apesar de não estar calor nenhum. Deve ser do vinho.
Tento evitar olhar para a Catarina mas não consigo. É simples de entender. Já estou há quase quinze segundos a olhá-la e não tenho relógio. Como é que eu conto o tempo? Como é que as outras pessoas o contam?
E volto a sentir as lágrimas a querer saltar. Não sei se de medo ou de angustia ou de saudade. É simples de entender.
Apanho de soslaio o rabo bem feito de uma empregada e olho-o para me distrair e evitar a Catarina. Mas isso não é simples. Pelo menos, neste momento. Volto a pegar no menu e tento escolher algo para comer. Mas apesar da minha fome crescente, as páginas do menu parecem não ter nada escrito. Estão em branco. Levanto o braço, de novo, e chamo uma empregada.
Passados poucos segundos, aparece-me uma com umas mamas enormes e com os lábios mais vermelhos do que cerejas na altura da apanha. Pergunto-lhe o que é que ela me recomenda e ela responde-me quase imediatamente que os camarões de caril estão estupendos. Boa, é de camarões estupendos que eu preciso agora. Fecho os olhos enquanto ela se afasta e conto mentalmente até dez até os abrir novamente. Depois, encaro a realidade.
À minha frente está a Catarina. Está de pé a olhar para mim com uma cara muito séria, mas sem ser ameaçadora. Que bom.
Ficamos a olhar um para o outro durante um bom bocado. Eu começo a perder a cara de pânico e a ganhar um ligeiro sorriso e ela perde a seriedade e sorri-me de volta. Não dizemos nada. Mas este silêncio sabe-nos bem. E para quebrar tudo e tentar viver de novo abro a boca e digo-lhe:
- Olá, nem sabes tu há quanto tempo estou para te encontrar.
- Olá amor.
E enquanto sinto as lágrimas a secarem-me nos olhos vejo os olhos lindos dela a ficarem cheios de brilho. Ela senta-se e ficamos a olhar um para o outro para ver se matamos todas as saudades que cresceram sem autorização dentro de nós. Finalmente os dois.
E o tempo continua a passar por nós enquanto as nossas mãos se aproximam sem nunca se tocar.
Acendemos os dois, quase ao mesmo tempo, cigarros e vamos fumando e olhando um para o outro. E no meio deste nevoeiro de fumo de tabaco tentamos encontrar coragem para falar.
Às tantas não sei se é a coragem que nos falta se é o prazer de nos vermos de novo que prevalece. A verdade é que não ousamos interromper o silêncio assim tão cedo.
E, para falar a verdade, não sei se me apetece rir ou chorar. Ou se me apetece ficar assim quieto, com o suor a correr na minha cara, a olhar para ela como se fosse um tesouro perdido que volto a encontrar ao fim deste tempo todo. E será que passou assim tanto tempo?
- Vou buscar a mala que ficou onde eu estava, volto já. Não fujas...
Fico com um sorriso suspenso enquanto a observo afastar-se. Não sei mesmo como reagir. Nem nunca pensei ter tantas dúvidas quando a reencontrasse. Acho que estou em estado de choque ou algo assim parecido. E estou a ficar cheio de calor. Não sei se é do vinho ou da Catarina. Ou então, de ambos. E só me falatava agora perder o controle. E enquanto ela não regressa vou aproveitar para fechar os olhos e respirar o mais fundo que consiga.
Fecho os olhos e sento-me melhor na cadeira. Sinto o barulho do restaurante aumentar. Esforço-me um bocado para tentar bloquear esse ambiente barulhento. Sinto as mãos a tremer e o suor na cara a reaparecer.
Estou numa praia a olhar para a Catarina que está sentada lá à frente mesmo junto à rebentação das ondas do mar. Está uma ventania louca que me atira o cabelo em direcções diferentes constantemente. Começo a andar na direcção da Catarina e sinto um mal estar muito estranho nos meus pés descalços. Até a areia me provoca uma sensação de agressividade, tal como o vento que continua a aumentar de intensidade.

Estou na casa da minha tia Adelaide, de certeza. Já lá não vou há alguns anos mas reconheço o inconfundível sofá pele de zebra. Ando à procura dela e deambulo pela enorme casa em direcção à cozinha onde, com quase toda a certeza, a irei encontrar a prepara uma sopa ou um bule de café. A cabeça não para de me doer. Chego à cozinha e olho à volta. Não está ninguém. É nessa altura que ouço um gemido que me parece ter a marca original da voz da minha tia. Não me lembro de nunca a ter ouvido gemer, mas a marca da sua voz está nesse gemido. Volto atrás e vou até ao quarto dela. A porta está semi-cerrada. Ouço outro gemido que me parece de prazer e reparo nuns sapatos que estão meio abandonados no corredor mesmo junto à porta do quarto dela. Reconheço aqueles sapatos de algum lado. Hesito em frente à porta. Entro e vejo a minha tia deitada de barriga para cima, nua e com uma mulher entre as pernas que lhe lambe a vagina com fervor. Nenhuma delas me sente entrar no quarto e durante uns vinte ou trinta segundos continuam. Uma a lamber e a outra a gemer, definitivamente, de prazer. A mulher que lambe a minha tia não está nua e vira-se para mim. Reconheço imediatamente a Helena.
Fico sem saber muito bem o que dizer, ou mesmo se devo dizer alguma coisa além de pedir desculpas por ter interrompido. Mas é a Helena que com um sorriso rasgado e com pelo menos um pelo púbico da minha tia, presumo eu, colado ao lábio inferior me pergunta:
- Olá João. Vai buscar a Catarina e juntem-se a nós.
- Ela está na praia... - E é tudo o que eu respondo.
A minha tia olha para mim também a sorrir.
- Então querido, estás bom? Vai buscar a Catarina. Eu gosto tanto de voçês... - A minha tia continua deitada de pernas abertas.

Abro os olhos e vejo a Catarina a acabar de se sentar. Estou a suar como se estivessem quarenta e tal graus centígrados de temperatura. Inexplicavelmente a dor de cabeça desapareceu. Sinto uma ligeira erecção.
- Estás bem João?
- Está tudo bem, tudo bem. Estava só a descansar os olhos. - Faço uma pausa enquanto a observo a encher os nossos copos de vinho. A erecção aumenta sem eu perceber muito bem porquê. Sinto-me um bocado desconfortável. Lambo os lábios. Limpo o suor da cara com o guardanapo. Olho para ela e tento ler-lhe os pensamentos. Mas em vez disso fixo o meu olhar durante uns bons segundos no decote e nos seios dela. A erecção aumenta a um ponto que me sinto mesmo mal.
Ela acabaou de encher os copos, bebe um bocadinho enquanto olha para mim com um olhar ligeiramente provocador mas, mesmo assim, algo simpático. Faço exactamente o mesmo sem saber porquê ou mesmo para quê. O vinho está a deixar-me ansioso e com mais tesão. Além do suor na cara que teima em não parar. Interrompo o silêncio.
- Vou à casa de banho venho já.
Levanto-me o mais graciosamente possível e encaminho-me ao WC com a intenção de refrescar a cara. Isso e pouco mais.

Mudança 2 [Catarina]

Olho para o João enquanto ele se levanta para ir à casa de banho e penso por um momento que tenho mais tempo para reflectir. E isso porque não sei o que lhe dizer. Não faço mesmo a mínima ideia. Tudo o que lhe queria dizer nestas últimas semanas esvaiu-se para uma parte do meu cérebro à qual não tenho acesso neste momento. Estou desejosa que esta sensação passe rápido.
Bebo mais vinho e tento saber o que é que me apetece comer. Volto a pedir o menu a um empregado que passa aqui. Tenho esperanças de arranjar apetite para qualquer coisa nos próximos minutos. Talvez uma salada das mais simples que existem. Acho que não consigo comer outra coisa. Sinto o estômago aos saltos já para não falar noutra coisa. E tenho as mãos a suar. Quero perguntar ao João porque é que ele não me atende os telefonemas. Quero saber montes de coisas, só não sei se terei coragem de lhe perguntar tudo. E mesmo que essa coragem me visite vou ter imansas dificuldades em me lembrar, no momento, de tudo o que quero saber. Ponho o menu de lado e tento descontrair-me.
Olho à volta e vejo que estou na única mesa deste restaurante com duas garrafas de vinho quase cheias. Apago o cigarro e preparo-me para acender outro. Acendo-o com o isqueiro dele, finalmente. Já tinha saudades de fazer isso. Continua a ser um prazer enorme para mim.

Mudança 2 [João WC]

Tenho vontade de vomitar com tantos filmes constantemente a desfilar na minha cabeça. E tenho de me acalmar urgentemente. Mas o que se está a passar é que me estou a tentar acalmar enervando-me cada vez mais até ao ponto em que a erecção desaparece. Eu queria estar com a Catarina, mas hoje? Porque é que ela tinha de vir logo a este preciso restaurante?
Estou virado para os urinóis a fingir que estou a tentar escolher em qual vou mijar. Enfio-me num cubiculo privado. Fecho a porta e sento-me na sanita sem pensar muito no que estou a fazer, mas sim muito mais preocupado com o que irá acontecer. A verdade começa a vir ao de cima, dentro de mim. Não sei como encarar isto e não tenho certezas nenhumas daquilo que quero fazer. E estou tão lúcido que me começa a doer a cabeça.
Saio do cubiculo e lavo as mãos quando, na realidade, devia era lavar as ideias. Em vez de ir directamente para a mesa e para a Catarina, dirigo-me ao balcão e peço um vodka puro. A empregada diz-me que me posso sentar que ela já irá levar a bebida à mesa. Respondo-lhe que não é para embrulhar, é para beber já. E rápido. O meu desejo cumpre-se ainda mais lestamente do que esperava. Fico ainda mais agoniado e caminho para junto da Catarina.
- Olá.
- Hey amor, porque é que demoraste tanto tempo? - Diz-me com uma voz tão doce que me põe a pensar em vento e numa maneira de refrescar as ideias.
- Estive a beber um vodka ali ao balcão e estive a pensar...
- No quê?
- Bem, sabes Catarina... Eu não sei muito bem o que é que provocou esta nossa separação. Sei é que me fez muito mal, eu... - Ela finalmente interrompe-me. Já estava à espera desta reacção...
- Eu também não me senti nada bem, se queres saber. - Faz uma pausa enigmática - Eu amo-te, João. Quase fiquei louca de saudades tuas. - Faz uma pausa que me parece algo artificial. Mas vai continuar a falar, tenho a certeza absoluta. - Escuta, estás com fome?
- Não, mas porque...
Interrompe-me novamente e isso começa a danar-me.
- Porque é que não pedimos uma bebida a sério para celebrar-mos este nosso reencontro? E porque é que não deixamos as perguntas que estão nas nossas cabeças acerca da separação para depois?
Faz-me um sorriso tão intenso que me é completamente impossível resistir.
- Vou então pedir dois moscateis. Boa?
- Muito boa escolha.
Não sei ainda bem porquê mas começo a descontrair. Deve ter sido do vodka. Ou então da proposta de responder às perguntas da nossa recente separação amanhã ou depois. Olho à volta para ver se consigo descortinar uma empregada e estou quase a levantar-me para ir ao balcão fazer o pedido quando consigo captar a atenção de uma delas e lhe peço as bebidas. Volto a olhar para a Catarina. Estamos os dois ansiosos um do outro mas acho que no fundo estamos só a fingir que esperamos os moscateis. Tenho a sensação que estamos os dois a sentir coisas que não sentimos na verdade. Parece que estamos a fingir um para o outro. Talvez o amor que existiu entre nós tenha ido para longe e não tenha comprado bilhete de volta a pensar que assim seria mais barato. Pois bem, acho que o nosso amor se enganou ou então está só a gozar conosco.
Os moscateis chegam em dois copos altos com uma pedra de gelo cada um. Fico ligeiramente enfeitiçado a olhar para o reflexo da luz no laranja do líquido. E na água que se solta do gelo e se vai misturando com o moscatel. E penso no que vai ser de nós dois nos próximos tempos. Tenho medo não sei bem de quê. E quanto mais penso nesta situação em que estou com a Catarina, com mais medo fico. E se continuar a beber a este ritmo ainda fico com um ataque de pânico, ou coisa pior. E vêm-me à cabeça umas palavras não sei bem de onde; "isto não vale a pena, isto não vale a pena". Fico completamente a zeros e bebo um grande gole de moscatel para depois reparar que nem sequer brindei com a Catarina.
- Desculpa, esqueci-me de brindar. Vamos a um brinde?
- Ao nosso amor? - Sorri-me como se estivesse a mentir, mas eu sei que não.
- Ao nosso amor. Que dure o que tenha que durar. - As palavras vão-me saindo sem eu na realidade controlar o que vou dizendo. Esta é uma das situações em que parece que estou num filme e não sei de todo o guião. E não estou a achar grande piada a isso.
Tocamos os copos com convicção e bebemos um gole de igual modo. A Catarina acende mais um cigarro e oferece-mo. Aceito com um sorriso e olho-a a acender outro. Parece um ritual ao qual não estou habituado, por mais contraditório que isso possa parecer.
Ficamos um minuto ou dois a olhar um para o outro sem falar. O alcool começa finalmente a fazer efeito. Já me sinto melhor. Até parece que consigo pensar melhor. Ou melhor, se calhar estou a pensar coisas que não deveria estar a pensar e estou a passar uma imagem daquilo que não sou.
Apetece-me abraça-la e beijá-la. Mas não tenho força suficiente para o fazer. Estou num dilema do caralho.
Olho para o tecto como se o tecto do restaurante fosse a solução. Espero sei lá pelo quê. Continuo a olhar sem dizer nada. Nada do que eu possa fazer vai resolver esta situação. Entretanto acho que a Catarina se apercebe da minha imensa confusão e tenta conversar comigo.
- Oi João, o que é que se passa? Que olhar é esse?
- Hã?
- Porque é que a tua vida está a acabar?
- A minha vida já devia ter acabado há muito tempo Catarina.
Ficamos em silêncio. Passam segundos. Muitos segundos ou talvez minutos. Não tenho a mínima noção do tempo. Não tenho relógio, e mesmo se tivesse não olhava para ele. Acho é que para evitar mais confusões não deveria ter dito aquilo à Catarina. Fecho os olhos e esfrego a cara.
Porque é que as coisas têm de correr mal? Porque é que tudo nesta puta de vida tem de se passar assim? Abro os olhos e volto a olhar para o tecto do restaurante. Tento conter uma ou duas lágrimas que querem saltar. Começo a pensar que não estou preparado para nada na vida, muito menos para enfrentar a mulher que amo. Muito menos para isso. Levanto-me e digo à Catarina que vou chamar um taxi. Ela sorri-me.
Assim que acabo o telefonema e volto à mesa, lá está ela com o mesmo sorriso. Digo-lhe que nos vamos ver amanhã e que estou muito confuso. Ela muda automáticamente de expressão. Eu desaprareço o mais rápido que posso e vou para a rua esperar o taxi na esperança de que ela não venha ter comigo.
Já na rua sento-me no passeio e começo a pensar muito. Pelo menos é o que penso estar a fazer. A pensar muito. E talvez por isso, a má disposição volta.