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A QUINTA DOS HORRORES


(Rubrica tirada da revista Visão do dia 26 de Junho de 2003)

Cães alimentados com animais vivos, sites pornográficos, manuais de instruções para matar, símbolos nazis, um filho chamado Adolfo... Há muito que o engenheiro do Fundão estava debaixo de olho policial, sobretudo por suspeitas de tráfico de armas.

Corria a madrugada do Dia de Portugal, 10 de Junho. Nem de propósito. A notícia chegou-lhe de forma crua e incisiva, poucas palavras, mas o sentido só podia ser um: o anúncio de uma morte encomendada. Luís Monteiro permaneceu tranquilo. Passavam apenas escassos minutos depois do assassínio de Fernando Justo, 33 anos, um jovem de origem africana, dono do café Mirasol em Cortiçada. O engenheiro informático, 39 anos, alegado mandante do homícidio, encontrava-se então numa pastelaria em Vale Prazeres, a poucos minutos do local do assassinato, com a sua companheira, Carolina, uma russa de 27 anos, e o filho do casal, um bebé de seis meses, a quem Monteiro decidiu baptizar com o simbólico nome de Adolfo, “Apesar de não ter sido autorizado a pôr esse apelido ao filho”, comenta--se nas aldeias de Vale Prazeres e na Cortiçada, “o engenheiro insistia em chamar-lhe, em público, Adolfo Hitler”.
Não muito longe do café Mirasol, um pequeno ramo de flores artificiais e uma vela do Santuário de Fátima assinalam o local onde Fernando foi atingido mortalmente por duas balas de calibre 22, um revólver adquirido na zona do Porto a um indivíduo suspeito de estar ligado ao tráfico de armamento. As oferendas ao morto continuam depositadas junto a uma pequena ermida de granito e a uma fonte, onde a vítima teria por hábito matar a sede, pela meia-noite, depois de fechar o café. Nas duas aldeias, as opiniões sobre o engenheiro são unânimes, mas quase ninguém quer dar a cara. “Era um indivíduo estranho, de estatura mediana, corpulento mas mais para o baixo, cabelo rapado. Normalmente usava um chapéu de abas largas, vestia calções e colete de caçador, quase sempre armado, muito quezilento, e conhecido por não gostar de pessoas de cor”, conta uma cunhada da vítima que não se quis identificar. “O certo é que o Fernando e o Luís Monteiro não se podiam ver”, continua.

Tráfico de armas ?
Resta a dúvida se ela sabe mais pormenores sobre os acontecimentos ou se, porventura, não quer falar, temendo, como grande parte da população, eventuais represálias. É que a poucos quilómetros da Cortiçada situa-se a «famigerada» quinta do engenheiro, sobre a qual continuam a correr muitas histórias. Na propriedade do engenheiro adquirida há cerca de dois anos, e ainda em fase de acabamento, vivem Carolina, Adolfo e dois trabalhadores do casal: o português Alcides, e o corpulento Andriy, 39 anos, um ucraniano em situação ilegal. Do que os habitantes das aldeias continuam a ter muito medo é dos «cães do engenheiro», entre eles um feroz doger argentino e alguns pitbulls. Aliás, contam-se as mais contraditórias versões acerca do número e da ferocidade destes cães de fila. Certezas só quanto ao desvelo com que o dono tratava os animais, chegando ao ponto de os alimentar sob o pretexto de ser um treino para a caça, com porcos e perus vivos.
Numa breve incursão à quinta, tentámos falar com Carolina que, junto ao portão, acompanhada do empregado Andriy, se recusou a conversar e a deixar-nos entrar na casa, alegando, numa mistura de português e inglês, não querer ser incomodada. Salta à vista o facto de a segurança ter sido uma das preocupações fundamentais do dia-a-dia de Luís Monteiro. Duas placas dizendo, respectivamente, «cuidado com o cão» e «não tememos os ladrões» servem de aviso aos mais incautos. No alto do portão de ferro, observam-se duas enormes águias brancas imperais. No centro do mesmo, duas espadas, muito semelhantes àquelas que viriam a ser encontradas no interior da vivenda. Terá sido a sua apetência pelas armas e os rumores que corriam, comenta-se que Monteiro praticava tiro ao alvo dentro e fora da sua propriedade, que levou a PJ a controlar, desde há cerca de um mês, os seus movimentos. Os investigadores desconfiam que ele possa estar envolvido em tráfico de armas.

Arsenal de guerra
Após a sua detenção, no dia 12, o tipo de armamento, bem como a quantidade e a qualidade de equipamento informático, apreendidos na sua residência, viriam a alimentar ainda mais as suspeitas. Dentro de casa, Luís Monteiro tinha, entre outro armamento, duas Shotguns (caçadeiras de repetição) ilegais, diversas carabinas e vários revólveres parte deste legalizado, facas, espadas, milhares de munições, uma besta e respectivas setas. Os investigadores encontraram ainda binóculos de visão diurna e nocturna, uma máquina fotográfica digital, bem como vários manuais em inglês, adquiridos na Internet, sobre formas de combate urbano e defesa, um intitulado Fighting in the streets (Guerra urbana) e outro com instruções para mandar matar, sob o título Making crime pay (Crime pago). Em rede, o engenheiro teria, pelo menos, em permanência, 18 discos rígidos, que lhe permitiam optimizar motores de busca para meio milhar de sites pornográficos. Era este o negócio que, segundo as autoridades, lhe renderia vários milhões de euros por mês.

No escritório da quinta foram igualmente apreendidos diversos ecrãs ultramodernos, milhares de disquetes, cassetes-vídeo. No início desta semana, num outro escritório, que possuía no Fundão, foram-lhe apreendidos mais computadores, bem como milhares de disquetes. Segundo familiares de Monteiro, este deslocava-se com frequência ao estrangeiro, alegando motivos profissionais, tendo sido numa dessas viagens, designadamente à Rússia, que conheceu Valéria, sua ex-companheira, também russa. Já numa outra deslocação, ao mesmo país, em que participou num seminário de informática, conheceu a actual namorada, Carolina.

Discursos racistas
Monteiro não trabalharia sozinho no negócio da informática, dando, ao que tudo indica, com frequência, trabalhos à sua irmã, Fátima, residente na zona de Abrantes. Os pais estão separados há cerca de 15 anos. Ex-membro da Guarda Nacional Republicana e antigo funcionário da União de Bancos, o pai, José Monteiro, é considerado “um homem muito ríspido e conservador”. Vive amedrontado pelo filho, “desde que por ele foi ameaçado na altura em que se separou da mulher”, garantem velhos conhecidos da família na Vermiosa.
Com o curso tirado na Universidadade Nova de Lisboa, Luís Monteiro foi funcionário do departamento informático do Montepio Geral, entre Setembro de 1995 e Novembro de 1998, de onde acabaria por ser convidado a sair. Já nessa altura, “o seu comportamento insólito, o cabelo rapado, a forma excêntrica de vestir, as botas pretas e pesadas e os constantes comentários xenófobos foram o suficiente para criar um mau ambiente de trabalho”, contam à VISÃO alguns dos seus antigos colegas. Monteiro era conhecido no banco “pelo seu discurso racista, falando sistemática e abertamente contra os pretos”, garantem as mesmas fontes que, por razões de segurança, pedem o anonimato. O seu nome surge na PJ no âmbito de uma investigação às actividades dos skinheads na década de 90. Foi então identificado na sequência de uma acção policial como sendo um dos quatro maiores responsáveis do MAN (Movimento de Acção Nacional), um partido da extrema-direita, dissolvido em 1994 devido à sua ideologia fascista. Aliás, já existem registos sobre Luís Monteiro desde a morte de José Carvalho, em 1989, o membro do PSR (Partido Socialista Revolucionário), assassinado na Rua da Palma, em Lisboa.

Um jagunço do Rio de Janeiro
As querelas de Fernando Justo e Luís Monteiro remontam a Novembro de 2002. Monteiro queria trocar umas vedações dos canis, tendo encomendado o trabalho a dois angolanos brancos, ambos amigos de Justo. Como a empreitada nunca mais se concluía, o engenheiro entrou em disputa com eles. O conflito chegou mesmo a vias de facto. Fernando terá assistido a tudo, sem se envolver, contudo, fisicamente, nos confrontos. O engenheiro terá, porém, deixado bem claro que “Justo não ficaria incólume”. A partir daí as quezílias entre os dois não pararam. “Sempre que se cruzavam de carro não se continham, buzinando e vociferando um contra o outro, alto e bom som”, conta a cunhada da vítima. Na Cortiçada, em Vale Prazeres e até no Fundão, toda a gente sabia das desavenças entre os dois, o engenheiro “não gostava de pretos, de marroquinos, nem de ciganos”.
Em Novembro do ano passado, Luís Monteiro ter-se-á virado para um seu conhecido, guarda-nocturno da Câmara do Fundão, proprietário de um pequeno café naquela cidade, dizendo-lhe que precisava de alguém para “acabar com o preto”. Foi um seu filho que apresentou ao engenheiro um tal Jerry, cerca de 30 anos, natural do Estado de Santa Catarina (Brasil), a viver com a família no Norte de Portugal desde 2001. Jerry foi apresentado a Monteiro como “o homem certo para o trabalho”. Praticante de culturismo, Jerry fazia uns biscates nas noites de Pinhel e do Fundão, como segurança em discotecas. De acordo com os termos do «contrato», receberia menos de metade do montante total (25 mil euros), antes de consumado o crime. O resto ser-lhe-ia pago no fim. Se tudo corresse bem, também o guarda-nocturno embolsaria cinco mil euros. Jerry ausentou-se então durante algum tempo para o Brasil. E como durante meses não desse notícias, Monteiro começou a revelar sinais de impaciência. Diz-se que chegou mesmo a procurar alternativas. No dia 2 de Junho deste ano, Jerry volta a dar sinais de vida. Regressa a Portugal com o amigo Cássio, na casa dos 20 anos, um homem franzino, criado desde menino nas ruas e favelas do Rio de Janeiro. A Cássio caberia a tarefa de «arrumar» com Fernando. Saem do Rio via Roma (Itália) de avião, percorrendo o resto do trajecto até ao Porto, de comboio. Dois dias antes do homícido, alugam um carro num rent-a-car da capital nortenha, em nome de um terceiro indivíduo. Na véspera do crime, dirigem-se finalmente a Vale Prazeres. Para evitar deixar pistas, os brasileiros, ao chegarem à Covilhã, roubam um segundo carro a um jovem casal. Mas como este tinha pouca gasolina, voltaram a utilizar o carro alugado no Porto. Dirigem-se então, já noite escura, até à Cortiçada. A forma como abordaram Fernando continua, porém, rodeada de mistério. “A minha irmã ouviu um ruído no exterior da casa, pensando que era o marido a despejar o lixo no contentor”, conta a cunhada, que corrige esta versão esclarecendo que, afinal, o lixo ficára no café.

As incógnitas do homicídio
Mantém-se a pergunta: Fernando foi atraído cá para fora ou saiu do Mirasol de livre vontade ? As teses dividem-se: ou foi provocado a sair do café por um dos homens e abatido mortalmente; ou então, e tal como fazia todas as noites, terá fechado o estabelecimento e saído para beber, tranquilo, água da fonte, sendo então atingido pelo matador brasileiro. Consumado o crime, Jerry e Cássio rumaram a Lisboa. Pretendiam receber o resto do montante prometido pelo engenheiro através de transferência bancária. O esquema foi recusado por Monteiro que exigiu pagar-lhes pessoalmente. Receando serem atraídos para uma armadilha, Jerry e Cássio dirigem-se para o Porto no dia 12, compram bilhetes de comboio rumo a Vigo, planeando, ao que tudo indica, ficar aí refugiados até à cobrança do resto do dinheiro. O que eles não sabiam é que as suas caras já eram conhecidas dos investigadores e que os seus passos estavam a ser seguidos de muito perto praticamente desde o momento em que o crime foi cometido. Foram capturados na estação de Campanhã ao meio dia de 12 de Junho.
Monteiro, Carolina, Alcides, Andriy, o guarda-nocturno e o seu filho também seriam detidos, algumas horas mais tarde. O engenheiro e os brasileiros ficaram presos preventivamente. As restantes personagens desta macabra história foram postas em liberdade, com termo de identidade e residência. A população ficou preplexa por apenas o mandante e os executores terem ficado presos. O medo continua.

Onde param os “skins”?
Em Outubro de 2002, José Lameiras tornou-se no primeiro dos 11 skinheads condenados em 1997, pela morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, a sair em liberdade condicional. Cumpriu apenas sete dos 14 anos determinados pelo tribunal. Até ao fim deste ano, mais cinco dos protagonistas que, na noite de 10 de Junho de 1995, semearam a violência no Bairro Alto, em Lisboa, cumprem também metade da pena e vão ver, pela primeira vez, apreciada a condicional. Estes cinco skinheads estão, desde há algum tempo, presos em Regime Aberto Voltado para o Interior, em Pinheiro da Cruz, um esquema destinado a detidos com bom comportamento e que tenham regressado à prisão após uma saída precária. Bafejados pela sorte, os reclusos receberam um perdão de 1 ano nas suas penas, por causa da Lei da Amnistia de 1999, a qual suscitou recentemente polémica por abranger a pedofilia. «Como o documento exclui os crimes de sangue, terão sido amnistiados os crimes de ofensas corporais», adiantou fonte da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais. Quem não sairá tão cedo da cadeia será Hugo Silva, recentemente capturado na Bélgica, para onde havia fugido, após beneficiar de uma saída precária, em Dezembro de 2001.
A morte de Alcindo Monteiro, em 1995, foi a última registada na sequência de ataques protagonizados por skinheads. Mas tal não significa que a actividade dos cabeças rapadas tenha cessado. “Tornaram-se foi mais cautelosos. Sabem que, se matarem, podem ser castigados, ao passo que com as agressões ficam impunes”, sustenta José Falcão, do SOS Racismo. Dos seis ataques verificados em Lisboa, entre Fevereiro e Março de 2002, não resultou nenhuma consequência judicial. Estas investidas tiveram negros, imigrantes de Leste e militantes do Bloco de Esquerda como alvo. Sinal de que pouco ou nada mudou desde a emergência do fenómeno, no final dos anos oitenta. Apesar de considerar que o “impacto destes grupos na sociedade é mais insuflado do que real”, António Costa Pinto, investigador do Instituto de Ciências Sociais, reconhece que o facto de continuarem a aparecer novos cabeças rapadas ao fim de 15 anos, traduz “não uma moda, mas sim o consolidar de uma subcultura”.
O skinhead português tem entre 16 e 24 anos, é oriundo de classe média-baixa e reside em zonas suburbanas, como a Margem Sul e a Amadora, “onde a convivência com outras etnias é problemática”. Para José Falcão, as claques de futebol continuam também a ser “uma das principais fontes de recrutamento, há uma promiscuidade entre alguns dos seus membros e grupos de skinheads”. Também o modus operandi dos grupos neonazis não sofreu alterações: raramente um cabeça rapada ataca sozinho. Quando o faz é em bando, de preferência em número superior ao do «inimigo». Os ataques assemelham-se a raides: intensos e de curta duração. Depois, tornam a desaparecer na escuridão. Foi o que aconteceu na madrugada de 18 de Abril deste ano, quando 15 skinheads destruíram o interior do antigo edifício dos Correios, em Queluz, que serve de morada a alguns «okupas». Quatro cabeças rapadas foram detidos, mas aguardam julgamento em liberdade. Em clima de impunidade, continuam a florescer os sites de extrema-direita, na Internet. É o caso do endereço da Juventude Nacional Socialista, que afirma já ter tido quase 150 mil visitantes, desde Setembro de 2001. “A Internet permite que estes microgrupos se aproximem, ao mesmo tempo que é uma porta aberta para novos elementos”, aponta António Costa Pinto.

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