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12/09/1962
Campinas • SP
Brasil
Redação

ANO XXXIX                   www.jornaldosmunicipios.go.to       •  HOME
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Nasci num chalé pintado de branco, como todos aqueles que existem nas proximidades de Marselha, e meu pai, como todo chefe de família, é pescador.
Quando ele volta do trabalho, transportamos o pescado para o entreposto. É um sujeito quieto: raramente fala. Adquiriu este habito nas horas que passa, sozinho, em alto mar.

Nunca me lembro de tê-lo visto conversar horas seguidas com mamãe, mas eles se entendem muito bem. Para mim um loar aquiescente dele vale mais que todo elogio do mundo.
Ultimamente ando intrigado, pois cada vez que nos aproximamos do entreposto ele me lança um olhar
meio maroto e instigador. Quer que eu namore a Sandra. Acha que estou na idade do primeiro amor. A idéia é boa, principalmente porque já a venho acalentando há muito
tempo.

Ninguém pode namorar a Sandra. A pobrezinha é a jovem mais tímida da terra. Quase todos os rapazes da vila tentaram conquista-la, e, nenhum conseguiu, arrancar-lhe, sequer, um cumprimento. O povo não compreende porque uma moça de cabelos negros, olhos azuis e de corpo tão elegante, não pense no amor. Nunca foi vista conversando com rapazes, mas conta-se que namorou um viajante que partiu e nunca mais voltou.

Acredito que é a roupa dela que instiga tantos mexericos. Veste-se como homem. Mesmo longe do entreposto, onde trabalha no serviço de pesagem e pagamentos, não tira as calças compridas, e a blusa de pano ordinário. É isto,
justamente, que lhe dá originalidade.

Uma vez beijei-a quando estava distraída. Foi tal a expressão que se estampou no seu rosto que senti-me envergonhado, como se estivesse violentado. Pedi-lhe
perdão com voz tremula, e xinguei, meu pai por me instigar aquela aventura. Um rapaz tentou fazer o
mesmo e levou uma violenta bofetada. Havia conhecido a mãe dela - dona Mariana - que lhe
pedira encarecidamente que "conquistasse a filha para torna-la menos arredia."
Encontro Sandra na praia. Vem carregando um cesto cheio de  mariscos. Prontifico-me a ajuda-la não recebendo o menor agradecimento. A maré enchente transbordou e temos de esperar a vazante. Sentamo-nos na areia.
Como ela permanece em silêncio disponho-me a atirar pedrinhas no canal, percebendo que estou sendo
observado de esguela. Não sei como, passo a falar de meus planos, e logo rimos de um trocadilho que me escapou. Depois disto voltamos sempre à praia. Amamo-nos. Sandra é estranha e impenetrável. Primeiro exige que ninguém saiba de nosso namoro, depois faz-me jurar nunca ir à sua casa. Concordo com as duas coisas
sem compreender.

Certa vez vou espera-la no portão e dona Mariana vem me cumprimentar. Simpatizo logo com ela. É uma senhora adorable sorridente, que me dá muitos conselhos de como "domar a menina".

Quando Sandra aparece fica pálida e quer acabar o namoro. Só não terminamos porque juro nunca
mais espera-la no portão.

Este incidente me intriga. Não compreendo o seu espírito arredio, as suas maneiras misteriosas, tristes, e suas exigencias estapafúrdias. Passo a encontrar sempre dona Mariana pelas ruas da vila. Ela diz sempre:

- Deixe-a. São coisas de menina. Passam logo. Vai ver que vocês se arrumam. Passe lá por casa para tomar um café com a gente.

Resolvo faze-lo. Passo muitas horas conversando com dona Mariana - Sandra não quer aparecer. Quando me viu cegar fechou-se chorando no quarto.

Passaram-se alguns dias, e como não há meio de encontra-la, volto àcasa de dona Mariana:

- Como é dona Mariana... Faz
tanto tempo que não vejo Sandra...

- Você não sabe?

- Não sabe o que?

- Ela foi-se embora.

- Embora?

- Um dia depois que você veio... 
- Foi procurar emprego em Paris.

Acho que está na casa dos parentes da capital... - e num suspiro - Ah! Fiz tudo para deter "ela".

- Dona Mariana, amo sua filha e ela o sabe, mas nunca poderia casar com uma moça que se cerca de tantos mistérios. As mulheres devem ser femininas, falar da luz
da lua, usar vestidos vaporosos...
Gostaria que ela fosse igual às outras... igual à senhora, que devia ter sido muito diferente quando
tinha a mesma idade.

- É claro que sim.

- Não compreendo porque ela não queria que eu viesse aqui. Foi por causa disto que ela partiu... Agora vou confessar uma coisa para a senhora - espero que não se zangue...

- Fala. Não creio que seja coisa grave.

- Pois... uma vez... beijei sua filha...

- Heim!

- Confesso-o.

- Conta como foi. Esta é a última coisa que eu esperava. Sandra se deixar beijar... Conta como foi.

- Eu esperei que ela dissesse algo, fizesse um gesto de reprimenda; mas esta louquinha olhou-me com a cara mais espantada do mundo e foi-se embora como se nada houvesse acontecido.

Dona Mariana franze o cenho, olha-me demoradamente, aproxima a cadeira mais perto de mim e diz bem baixinho, no meu ouvido:

- Estava cansada de dizer a ela que fizesse de outro modo. Ah! Se fosse comigo... como seria diferente...

Paris - Maio 1.968


 
Contos de Antônio Maragno Lacerda*
jornaldosmunicipios@ig.com.br

 
 

 
  


Conto

O  CÉREBRO


     Quando um primo de sua esposa, o embaixador Carlos José Pinheiros passou a visitá-lo, o Dr. Rafael Nunziato sentiu que a segurança de sua casa estava ameaçada. Diante daquele homem magro, alto, de maneiras melífluas, ele sentia uma estranha opressão no peito como se estivesse prevendo um desenlace que fosse terminar com a felicidade que ele, laboriosamente havia arquitetado. Sua esposa, no entanto, parecia não perceber coisa alguma, e recebia o primo com alegria, recepcionando-o com lautos manjares. Quando ele se mostrou descontente a mulher respondeu muito ofendida:

- Ora Rafael, você sabe que não podemos deixar de receber o Carlos... é uma honra para nós... não é toda família que pode recepcionar um embaixador.
- Um fila bóia...
- Oh! Rafael, onde estão as suas boas maneiras?

As boas maneiras já o estavam saturado. Quando voltava exausto do trabalho, desejoso de tirar a roupa e meter-se num robe-de-chambre, aparecia o primo Carlos, e ele tinha de envergar o apertado "dinner - jacket" e fazer salamaleques na mesa para comer o guisado. Passou a odiar o "embaixador Carlos" - como costumava chamá-lo - no dia em que, desastradamente, o seu garfo resvalou, atirando longe o pedaço de carne.

O embaixador pôs nele uns olhos horrorizados, e estendeu-lhe, compungidamente o guardanapo. Depois do jantar, o Dr. Rafael procurou a mulher na cozinha:

- Se ele voltar aqui, juro como pego o guisado, arranco a carne com os dentes, atirou-lhe o osso em suas fuças.
Mas no outro dia, quando o embaixador apareceu, foi obrigado a destrinchar o frango direitinho e a ouvir suas arengas sobre questões políticas.

O Dr. Rafael não compreendia porque o primo de seu esposa fazia questão de visitá-lo quase que diariamente. Somente depois de algum tempo, percebeu que Carlos estava apaixonado pela prima; sua mulher. Ao chegar a esta conclusão, não levou nenhum choque - apenas passou a odiá-lo um pouco mais que de costume.

Então aconteceu o inesperado. O embaixador Carlos José Pinheiros morreu de apoplexia, no meio de uma importante conferência. A esposa do Dr. Rafael pôs-se a chorar ao saber da notícia, e ele ficou surpreso ao constatar que fora escolhido para fazer a autópsia. A Embaixada e o hospital desejavam que ele especificasse a natureza do derrame.

Foi com um misto de nojo e revolta que entrou na sala de operação, traçou violentamente dois cortes na cabeça do morto; aparou o sangue na bacia, passou o fórceps pela abertura e fez saltar o cérebro que embrulhou na capa plástica para mais tarde, levar para casa. Pretendia fazer análise durante a noite, para livrar-se o mais breve possível daquela tarefa revoltante.

Durante o percurso sopesou o cérebro imaginando os pensamentos que por ali haviam passado. Seria capaz de jurar que aquela massa inerte só havia pensado inutilidade. No portão encontrou a empregada esperando-o ansiosamente. Chamavam-no urgentemente ao hospital - estavam precisando de médicos para as vítimas de um pavoroso desastre ocorrido. Dr. Rafael perguntou pela mulher:

- Não para de chorar - foi a resposta - a coitadinha está triste por causa da morte do "baixadô".
Entregou o cérebro para a empregada:
- Guarde isto. - e depois de refletir - Diga à Belinda que não me espere para o jantar!

Passou a noite cuidando dos acidentados e regressou de madrugada. Mal deitou, e, quando acordou, dia alto, sentiu-se perfeitamente refeito. A noite de trabalho aguçou-lhe o apetite: sentiu uma fome de lobo. Quando desceu, a mesa estava pronta e sua esposa já estava sentada ali. Não notou que a mulher estava com o rosto vermelho e os olhos inchados.

Ele, naquela hora, só tinha atenção para os pratos saborosos enfileirados no centro da mesa: peixe, macarrão, ovos, salada, arroz e bolinhos. Deu um olhar aprovador e reconhecido à empregada que permanecia na porta da cozinha. Maria fora um achado. Descobriu-a na cozinha do hospital. Ofereceu-lhe o dobro para trabalhar em sua casa. Aqueles pratos saborosos dizem que havia acertado. Serviu-se de arroz, elogiou-o, e sua mulher provou algumas colheradas, Depois tomou um gole de vinho e atacou a macarronada, o peixe e quando chegou nos bolinhos arregalou os olhos:

- Belinda, estes bolinhos estão deliciosos - simplesmente deliciosos!
- Para você toda comida é uma delícia...
- Esta é especial! - experiente. Sua mulher comeu alguns. Teve um movimento de admiração. Acenou à empregada.
- Maria, qual foi o tempero que você usou nisso?

- Chá de tempero de aipo, dona. Ele dá cheiro. Depois assei em forno brando.
- O Dr. Rafael acenou com a cabeça, aprovando. Acabou o copo de vinho e foi digerir na varanda. Pegou a revista "Cirurgia" e mergulhou na leitura. Fazia meia hora que estava lendo quando viu o artigo intitulado "Autopsia", e lembrou-se do cérebro e da análise que estava por fazer. Correu à cozinha e chamou a empregada:

- Onde você pôs o pacote? - Pacote?
- O cérebro, mulher!
- Ah! O cérebro. Misturei com milho verde, temperei e fiz o bolinho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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