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CIDADÃO KANE

Magru Floriano (*)

“A palavra ‘Rosebud’ surge dos lábios de um homem que morre, sozinho, em sua grande mansão rodeada de imensos jardins e parques. Um noticiário cinematográfico mostra a biografia deste personagem, um poderoso magnata da imprensa norte-americana chamado Charles Foster Kane, e um jornalista recebe a missão de descobrir o significado da enigmática palavra. Para isto entrevista um velho amigo, seu tutor econômico e sua Segunda mulher, os quais reconstróem fragmentariamente algumas das paisagens cruciais de sua biografia. Separado dos seus pais durante a infância, foi educado em Chicago sob a tutela de um mentor que geriu uma fortuna multiplicada a partir da herança de uma mina. Já adulto, Kane adquiriu um pequeno jornal da cidade que, com os resultados de uma linha editorial sensacionalista, assentaria o alicerce de um verdadeiro império jornalístico. As ambições do magnata chegam ao seu ápice com o seu casamento com a filha de um senador que chegará á presidência dos Estados Unidos, porém a sua própria carreira política como aspirante a governador se frustra ao fazer-se pública a sua aventura sentimental com uma cantora de cabaré. Kane tenta transformá-la numa grande cantora de ópera, porém a estréia dela é um fracasso e a crise sentimental estende-se também á ruptura da relação com os seus melhores amigos. Isolado na sua mansão e abandonado por todos, o magnata falece com a palavra “Rosebud” nos lábios. Enquanto os empregados arrumam seus múltiplos objetos pessoais, a câmara mostra a origem deste mistério, que passa desapercebido ao jornalista, mas confere aos olhos do público toda a nostalgia de uma infância perdida que guiou a biografia do protagonista”

A sociedade industrial deu à imprensa “status” de um quarto poder, muitas vezes lhe creditando uma força política acima dos demais poderes da República (Legislativo, Judiciário, Executivo) e de suas mais tradicionais instituições, como é o caso da família, religião e escola. O homem moderno acredita que a imprensa pode literalmente tudo, inclusive manipular a realidade, com os empresários da comunicação sendo vistos como verdadeiros deuses do Olimpo, que controlam as forças da natureza e da sociedade a partir de uma vontade individual inquestionável e absoluta, a quem os pobres mortais devem se render incondicionalmente.

O filme Cidadão Kane caminha na contramão desta verdade cultuada pelo Senso Comum ao longo dos tempos e, talvez, seja esta a mais contundente crítica que Orson Welles tenha formulado contra o todo-poderoso magnata da comunicação William Randolfph Hearst (o Assis Chateaubrind dos Estados Unidos). Quer dizer, o filme mostra em pelo menos dois episódios, que o personagem Charles Foster Kane (caricatura de Hearst), apesar de deter o controle sobre a produção da notícia, não pode alterar toda a conjuntura que lhe é desfavorável. Tem, portanto, um poder limitado, apesar de toda a estrutura da mídia posta a seu serviço.

O primeiro golpe que recebe da opinião pública vem quando lança sua candidatura a governador e perde a eleição. Por ironia é derrotado justamente porque o jornal concorrente, a serviço do candidato da situação James W. Gettys utiliza o expediente do sensacionalismo barato para denunciar as mazelas de sua vida privada – tem uma amante. Perde para o sensacionalismo que ajudou a criar e fortalecer na imprensa americana, bem como para a moral puritana, uma instituição muito mais forte que todos os poderes da República juntos.

O segundo golpe que recebe vem do meio artístico, quando quer manipular a crítica especializada para fazer de sua amante Susan Alexander Kane uma cantora reconhecida por todos por um talento que definitivamente não possui. Ao querer impor o seu gosto musical a artistas e críticos, recebe uma resposta negativa que chega á unanimidade. Sofre uma derrota inclusive junto a seus amigos e colaboradores mais próximos.

Com estes dois acontecimentos pontuando a biografia de Charles Foster Kane, Orson Welles deixa bem claro a Hearst, e a todos os grandes empresários do setor da comunicação, que eles não são divindades, mas seres humanos. E como seres humanos, devem total obediência à realidade. Controlar os Meios de Comunicação de Massa não lhes permite falsear a realidade, ou produzir “verdades”. Apesar de todo o poder adquirido ao controlar as mídias, a realidade não admite insubordinação e cobra a cada segundo o seu tributo. No Brasil é emblemático, por exemplo, como Roberto Marinho e a sua toda poderosa Rede Globo, tiveram de aderir às Diretas-Já, para não correr o risco de serem varridos da história do Brasil junto com o regime militar.

Quando as pessoas analisam Cidadão Kane, geralmente centram suas atenções para um foco secundário. Isto é, entendem que o filme atraiu a ira de Hearst porque ao promover a sua caricatura mostrou suas mazelas pessoais – como o fato ter uma amante. Estão equivocados. Um homem que se julga divindade, absoluto nas suas vontades, ri deliciosamente destas intrigas pequenas. Para uma pessoa como Hearst, o que lhe fere de forma contundente, lhe causa dor e angústia, é a ameaça ao seu poder. É ousar dizer-lhe na cara que ele já não pode tudo, que ele não é o senhor absoluto do mundo. E Orson Welles tanto pensa assim que diz exatamente isso no diálogo em que a esposa de Kane vai embora. Nada dói mais a uma pessoa autoritária do que não ter o domínio total e absoluto sobre as pessoas que o rodeiam. O resto é irrelevante.

Um ponto interessante de se analisar em Cidadão Kane é o fato de Orson Welles trabalhar com esmero e requinte estético a possibilidade do uso da simbologia e de técnicas cinematográficas como forma de mensagem. Por exemplo: para dizer ao espectador que a amante era uma pessoa completamente ofuscada pela prepotência e arrogância de Kane, em um primeiro recurso simbólico ele mostra Kane caminhando em direção à ela, com sua sombra encobrindo gradualmente o seu corpo, até ela sumir por completo na escuridão. Em diversas oportunidades, Orson Welles utiliza um segundo recurso, colocando Kane sempre em um plano mais alto que a amante. Se ela está sentada, ele está de pé. Simulando visualmente uma relação de dominação.

Outro recurso técnico que Orson Welles utiliza para passar a idéia de que Kane é arrogante, impositivo e dominador, é o plano de filmagem conhecido como “Contra-Plongé”. Quer dizer, em vários episódios Orson Welles filma Kane de baixo para cima, evidenciando sua postura de mando.

Desta forma, podemos concluir que Cidadão Kane é uma peça de arte construída em defesa da sociedade democrática e livre, perigosamente ameaçada pelo oligopólio existente no setor da comunicação social, bem como pela tendência à concentração de poderes nas mãos de apenas um grande empresário e grupo (monopólio). A discussão sobre Cidadão Kane, portanto, deve ter como tema gerador a defesa da sociedade livre e democrática e sobre os mecanismos de controle que a Sociedade Civil Organizada deve estabelecer para não correr o risco de ser aprisionada nas teias de uma grande corporação construída pela Industria Cultural, com poderes tão extraordinários a ponto de construir “verdades”.

Como o fio condutor do filme é a palavra “Rosebud” cabe uma discussão inicial sobre esta palavra-chave presente durante toda a trama narrativa. “Rosebud” pode ser exatamente o que o filme nos apresenta, ou seja: “Talvez Rosebud fosse algo que ele não pode ter, ou que perdeu, porém não disse isso a ninguém”. Ora, o que ele perdeu, pode nos levar a pensar sobre a infância interrompida abruptamente, ou a perda do amor materno ainda na juventude. Agora, sobre o que ele não pode ter, pode nos levar a pensar sobre a possibilidade de Orson Welles estar querendo denunciar que a sociedade livre e democrática corria sérios riscos justamente porque Kane queria dominar/manipular a todos e tudo, ficando senhor absoluto do mundo. Estaríamos, portanto, diante de um psicopata, cuja insanidade e paixão ilimitada pelo poder poderia estar levar a sociedade à uma solução totalitária, a exemplo do que  George  Orwell estabelece na obra “1984”. Denúncia similar que surge visivelmente no filme de James Bond “O amanhã nunca morre”, por exemplo.  

Cidadão Kane, também nos sugere inúmeras outras discussões paralelas como: 1) Por que em nossa sociedade a imprensa sensacionalista vende muito mais do que a imprensa séria, com responsabilidade de realmente informar a comunidade (episódio em que ele começa a mudar a linha do jornal e vender muito mais); 2) o jornalista é um trabalhador como qualquer outro, devendo fidelidade ao dono do capital, correndo o risco de ser demitido sempre que contrariar seus interesses econômicos e ideológicos (episódio em que seu melhor amigo é demitido porque não escreve uma crítica favorável sobre a estréia de Susan como cantora); 3) o poder que ainda possuem em nossa sociedade as instituições tradicionais como a moral cristã/puritana (episódio da descoberta da amante e as repercussões sobre a campanha a governador de Kane); 4) o poder corruptor do poder. Como a pessoa para ter sucesso acaba sacrificando todos os seus princípios e valores. (episódio em que Kane recebe carta do amigo Jejediah Leland, contendo um cheque rasgado e a “declaração de princípios” que havia escrito e publicado no início de sua carreira como empresário da comunicação).

NOTAS TÉCNICAS SOBRE CIDADÃO KANE

O filme Cidadão Kane, dirigido e estrelado por Orson Welles, foi considerado o melhor filme de todos os tempos numa seleção elaborada pelo AFI – American Film Institute... Fizeram parte desta votação 1500 críticos, atores, cineastas e personalidades...

Cinco razões que fazem Cidadão Kane aparecer em todas as listas:

1-     a revolucionária estrutura do roteiro de Welles e Mankiewicz;

2-     a composição fotográfica em claro-escuro, que leva ‘as últimas conseqüências o estilo expressionista;

3-     o efeito dramático obtido com o rebaixamento dos tetos do cenário;

4-     o audacioso paralelo proposto entre o personagem Charles Foster Kane e o magnata da imprensa William Randolph Hearst;

5-     a permanência do mistério que envolve a palavra Rosebud.

Apesar do cinema sonoro já ter completado dez anos, nenhum filme havia levado a nova possibilidade ‘as últimas conseqüências. E foi justamente aí que Welles centrou fogo. Dono de uma voz envolvente, Welles sabia que a sonoridade era também movimento. Tanto assim que Cidadão Kane começa com os lábios entreabertos do moribundo magnata pronunciando um enigma “Rosebud”, mistério e motor de todo o filme.

Com a contribuição imprescindível do fotógrafo Gregg Toland, conhecido pelo preto e branco de uma obra-prima como As Vinhas da Ira, Welles conseguiu ampliar o espaço da tela, deixando que a realidade diante da câmera se desenrolasse sem cortes, e aumentando o realismo com o uso do som “especializado”. Quer dizer: o que se ouvia no fundo da cena deveria parecer mais longínquo do que o que se pronunciava no primeiro plano. Era a sistematização de uma estética do real que o cinema incorporaria definitivamente com a chegada da cor.

Mas, a revolução técnica ainda era pouco para Welles. Ao marrar os episódios da vida de Kane através de uma enquête jornalística, onde as diversas pessoas que passaram por sua vida falavam a respeito da personagem principal, ele mostrou que a realidade é multifacetada, exatamente o oposto do cinejornal mostrado logo no início do filme, sobre Kane.

Qualquer semelhança entre o dono do San Francisco Examiner (Hearst) e Charles Foster Kane não era mera coincidência. Cidadão Kane, portanto, serve como uma denúncia direta á formação de trustes (cartéis) na imprensa americana, e toda a manipulação da opinião pública e realidade daí decorrente. O oligopólio da imprensa americana tinha um grande nome - Hearst, assim como no Brasil, tínhamos Assis Chateaubriand e mais recentemente Roberto Marinho. 

(*) Mestre em Educação, é professor de Sociologia da Comunicação na UNIVALI. Escreve em jornais no Vale do Itajaí e preside a Academia Itajaiense de Letras.