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Uma vírgula no 111

Em memória de Lindinho G. Baptista

Tem horas que a minha alma está um tantinho mais nostálgica. Li, num livro chinês, ser do tempo, porque os homens são que nem barómetros. Pessoalmente, presumo que seja da transe poética. O estado da poesia provoca-me uma embriaguês peculiar, tão só corda-bamba do espírito, uma coisa a um tempo zen e a outro tempo desesperada. Dia torvo, mesmo aziago, dado para o nostálgico. Deve ter morrido alguém nesta cidade. Ou será desta mesmice, com olhos de boi cansado ? E esta rua que sempre esteve a dar em nada. O leitor já viu um indivíduo a dar cabo do canastro ? Ponho o cano de revolver nas têmporas e, com olhos cerrados, conto um, dois e três… Ali defronte, é o jardim. Não sei se por causa da única rosa sobrevivente ao vandalismo das criancinhas ou se pela taça do tintol que ainda vai a meio (pequenos nadas, como se usa dizer)…resolvo cantar a «Internacional ». Naturalmente que não sou revolucionário ! Prefiro mil vezes a geometria das coisas mais turvas, a gramática desalinhada dos dias da ira. Na minha saudade mais calada tem uma mulher dos seus cinquenta. Nha Irina. Por me haver ensinado que a nossa praia íntima é lembrar estórias…Este mundo é um grande presídio. Enorme até para os que têm a inconsciêcia de estarem livres. Dinos, amigo das madrugadas e das tabernas pelas desoras, achava-se livre. Não tinha rei nem roque. Em verdade, nem família ou namorada. Porém, tinha os seus recessos entre umas e outras no 111, casa de família de repente transformada em botequim. Partem as aves porque têm o destino da liberdade. Tristes aves em despedida, tristes de haver partida. Por vezes, a eternidade de não voar é sonhar o não haver destino…E quando não partimos e ficamos por companhia de uma mulher, tudo não passa de um (des)encontro entre a Babilónia e a Besta ! Tenho à cabeça os versos de Carlos Drummond de Andrade : "Pressentimos só as migalhas/desse banquete além das nuvens/contigentes de nossa carne/E por isso a volúpia é triste/ um minuto depois do êxtase". Dinos era mesmo chalado, doido varrido. O meu avô chamava-lhe de «Sapiens Demens». Este ria-se do meu avô e piscava-me os olhos, Este teu mais velho não diz coisa com coisa ! Alto funcionário aposentado, o meu avô era do tempo em que se ia à repartição meia-hora antes do expediente e saía-se meia-hora depois do tempo. Outra era, um tempo em que o meu avô não sofria de incontinência urinária. Hoje, com doutores por todos os cantos, o estado tornou-se num covil de preguiçosos, malandros e mandriões. Este país está a saque. O pessoal ria, Mas quem estará disposto a resgatar estes Dez Grãozinhos de Terra, homem? No fundo, o meu avô, desengonçado e paradoxal como o Albatroz, de Baudelaire, carregava a sua pequena liberdade nos dias que lhe sobravam. Dá gosto lembrar as suas loucuras quando, esquivando-se à empregada (A Carcereira, chamava-lhe o meu avô), evadia-se pela rua Cândido dos Reis rumo à praça. O meu avô, irado e de calças mijadas, começava a ler em voz alta o Livro da Génesis. Dizia : «Os homens, que falavam então uma só língua, ao emigrarem no Oriente, vieram até à planície de Senaar, onde pretenderam construir uma cidade com a sua torre, servindo-se de tijolos cozidos e de betume, que faziam respectivamente as vezes de pedras e argamassas. Queriam perpetuar o próprio nome e evitar a dispersão. Mas Javé desceu até lá e, para lhes furtar a empresa, confundiu-lhes as línguas e dispersou-os pela face da Terra.» O pessoal batia palmas, Apoiado, muito melhor do que os comícios pimbas que cá se fazem! Corria uma campanha eleitoral kitsch, slogans idiotas ao som do zouk de pacotilha, com vigaristas a dar feijão à canalha e um líder, arzinho de anão arrependido, a espalhar o seu discurso pelas achadas e fajãs. Pois, a minha alma está nostálgica e vou ao 111 com Dinos ao tiracolo. Aviso-lhe não estar com paciência para ouvir politiquices e outras pornografias. Um homem quer paz e água fresca, estamos conversados? De repente, encontramo-nos com o João, nosso cavaleiro do apocalipse. Todos embarcámos de Sagres geladíssima e de um bolero canastrão que vinha do rádio a um canto da sala. Este João era um caso sério, chamando 111 de Nova Jerusalém! Conto-lhe da minha nostalgia e dos versos que dediquei à cidade : Tenho por ter teus olhos de ler/As mãos que me apertam – tão tuas –/ Como se me contassem o que se conta/ Das noites caladas e neurastêmicas/ Tenho por ter palavras que dirias/ Se o eco das esquinas permitisse/ Desafiar as luzes e as sombras psicadélicas/ Do mais fundo de ti e no vagar de mim/ Tenho por ter palavras que de cor dizes/ O cântico de todas as esquinas e assim/ Soas cá dentro estes versos de nada!// Pergunta-se, morreu alguém neste dia aziago ? Diante do silêncio dos presentes, Dinos, sem dúvida o mais malucos dos meus amigos, vai à numeração da porta e coloca uma vígula no 111 (1,11) – para o João, beato como era depois de meia dúzia de cervejas, aquilo era simplesmente o Apocalipse de São João (capítulo 1, versículo 11) ! E, para que o epílogo condiza com a minha alma entristecida, reponho à estante o livro chinês sobre o tempo e os estados da alma…

Por Filinto Elísio