Alberto
Ruy-Sánchez:
um olhar sobre a
poesia mexicana contemporânea
(entrevista)
AGULHA,
Revista de cultura
# 38 - fortaleza, são paulo - abril de 2004
.
A poesia mexicana atual
encontra-se sob o signo da diversidade. São muitas as vozes que
compõem o seu cenário, muitas as inquietudes que a atravessam.
Poetas do corpo, da memória, das raízes culturais, do agora
político buscam na experiência da otredad os subsídios
poéticos para a sua escrita. Muitos, ainda tentando elaborar, reinventar,
negar e cultuar o legado poético e crítico deixado por Octavio
Paz. Sobre estas questões o romancista, poeta, ensaísta e
editor mexicano Alberto Ruy-Sánchez nos oferece – na entrevista
que se segue – um lúcido depoimento.
Um dos nomes mais
importantes da cultura mexicana atual, com 18 livros publicados (alguns
traduzidos para o francês, o inglês, o alemão, o turco e o
árabe) e vários prêmios nacionais e internacionais, Alberto
Ruy-Sánchez dirige, desde 1988, a primorosa revista Artes de
México, inteiramente dedicada ao universo artístico e cultural do
México de todos os tempos e que envolve outros projetos editoriais no
campo das artes, da cultura popular e da poesia. Tendo vivido na França
durante muitos anos, onde realizou estudos de filosofia e cinema sob
orientação de Gilles Deleuze, Jean Narboni e Roland Barthes,
exerce também atividades como professor convidado em várias
universidades norte-americanas. Nos campos da narrativa e da poesia, publicou Los
nombres del aire (romance, 1987), La inaccesible (poemas, 1990), Cuentos
de Mogador (1994) e En los labios del agua (romance, 1996), Los
demonios de la lengua (romance, 1998), De agua y aire ( disco e livro,
1999), De como llegó a Mogador la melancolía (1999) e Los
jardines secretos de Mogador, Voces de tierra (romance, 2001) e La huella del
grito (2002).
Sua obra ensaística inclui Una introducción a Octavio Paz (1990), De cuerpo
entero (1992),
Cuatro escritores rituales (1997), Aventura de la mirada (1999), dentre
vários outros. [MEM]
MEM - Hoje, com a
ausência de movimentos e grupos literários, percebe-se que os
poetas de várias nacionalidades não se interessam mais em criar
pactos coletivos em torno de um projeto poético específico, mas
se dão a liberdade de transitar em vários estilos e tendências,
em busca de uma dicção própria. No caso do México,
como se dá esse exercício de pluralidade? E quais seriam os
traços mais evidentes da poesia mexicana contemporânea?
AR-S - É
difícil conhecer o panorama completo da poesia que está sendo
escrita no México agora. Toda generalização hoje é
mais relativa do que nunca, porque a poesia mexicana está formada por
individualidades fortes. A diversidade e a quantidade de poetas e
tendências são inegáveis. E a jovem poesia mexicana
não olha somente para a poesia mexicana. O cenário é
cosmopolita e os poetas no México sempre têm sido, dentre os
diferentes artistas, os mais vinculados a outras culturas e outras
línguas. Eu quase poderia dizer que uma parte importante do ritual de
formação que cada poeta faz para encontrar sua própria voz
consiste em se submergir em outras línguas e se deixar influenciar por
outras culturas. China e Japão têm sido influências de
eleição de vários poetas. É certo que a grande
maioria busca seu poeta de eleição no inglês, o qual traduz,
estuda, difunde, publica. Quase se poderia dizer que muitos poetas
conhecem melhor outras tradições que a da própria
língua. A poesia da Espanha é, em muitas ocasiões, menos
conhecida que a dos Estados Unidos. E as grandes figuras da poesia mexicana do
século XX deram mostra de insaciável cosmopolitismo e de que
é mais importante encontrar uma voz poética pessoal que pertencer
a um movimento, a uma estética e mesmo a algum grupo.
MEM - Tal
cosmopolitismo não seria um traço constitutivo da poesia latino-americana
como um todo, desde o modernismo de Rubén Darío? Pode-se
falar de uma vocação para a otredad, inerente à
poesia de nosso continente?
AR-S - Fazer uma
generalização nacional para falar de poesia já é
algo excessivo e, no entanto, nós a fazemos, sabendo que se trata de uma
convenção, de uma facilidade descritiva. Fazer uma
generalização continental, então, é algo ainda mais
descomedido. Mas entremos nesse jogo descritivo, reconhecendo que aplicamos
nossa margem erro, e digamos que a poesia latino-americana teve
consciência de que ela mesma é otredad com
relação a outras literaturas que durante muito tempo se
consideraram “centrais”, como a inglesa e a francesa. Com o tempo,
ela criou seu próprio mundo de valores, afirmando sua existência
nas margens como um possível novo centro simultâneo. Como na arte
barroca, tratou de estabelecer a possibilidade de pensar uma cena cultural com
vários centros.
MEM - Até que
ponto a chamada globalização molda um novo tipo de
cosmopolitismo para os poetas latino-americanos do presente?
AR-S - O
cosmopolitismo é distinto em cada época. É fácil
pensar que o acesso a uma maior informação sobre a poesia
internacional nos faz talvez menos marginais que em outros tempos. Não
é um fenômeno novo: já muito antes da existência da
Internet, Mac Luhan falava de “aldeia global”. E o acesso à
informação tem se multiplicado nos últimos anos.
Deixará então de ter sentido a própria palavra
“cosmopolitismo”? Não creio que a busca da
diferença, da otredad, possa desaparecer. Porém, toma sempre
distintas formas.
Por outro lado,
diferentes grupos sociais vivem diferentes globalizações. Nem
sequer no mundo globalizado que os mais pessimistas imaginam é
possível pensar no desaparecimento da otredad cultural.
MEM - Octavio Paz
deixou, inegavelmente, um legado poderoso para as novas gerações
de poetas mexicanos, sendo seu influxo na poesia contemporânea um dado
irrefutável. Como, na sua opinião, os poetas de hoje têm
aproveitado a herança paziana?
AR-S - Octavio Paz
é uma influência determinante para os poetas mexicanos e
não apenas através de sua obra poética. Sua obra
ensaística tem a poesia como um de seus eixos de compreensão do
mundo. A dignidade da poesia é chave de sua obra. Foi o primeiro a fazer
uma leitura contemporânea da tradição mexicana. E os
caminhos de busca cultural que abriu são muitíssimos. Defendeu a
tradução como uma atividade paralela à própria
criação poética e muitos jovens assim o têm seguido,
criando e praticando. Ele demonstrou que todos os tempos da poesia de todos os
lugares podem estar vivos aqui e agora, se um poeta os faz seus.
Por outro lado,
é certo que sua obra poética tem tido epígonos. Há
aqueles que têm confundido o universo da poesia de Paz com o ar que
naturalmente se respira. Isso acontece sempre com os grandes artistas. O mesmo
sucedeu ao pintor Rufino Tamayo e agora a Francisco Toledo. São imitados
sem cessar por uma parte de artistas jovens com mais inocência que
criatividade. Aqueles que se deixam influenciar mais profundamente pela obra
poética de Paz têm que percorrer muitos caminhos, usar ferramentas
muito diversas. O que muitas vezes os conduz ao encontro de sua própria
voz.
MEM - Paz, certa vez,
afirmou que "una tradición que se petrifica sólo prolonga la
muerte". Nesse sentido, a reverência epigonal só pode levar
à imobilidade do legado paziano, não é mesmo? Você
acha que cabe aos herdeiros de Paz também a tarefa de
"traí-lo", de negá-lo, como forma de assegurar sua
vitalidade e mobilidade para as futuras gerações?
AR-S - Na mesma
lógica paziana está a idéia de uma relação
paradoxal com as tradições. Distanciar-se de Paz é uma
idéia paziana. Por isso, entre muitas outras razões, é
tão difícil para as novas gerações pensar, escrever
fora de seu âmbito. Mas isso é ser fiel ao seu espírito. Os
epígonos são fiéis apenas à letra e tal imobilidade
deve ser rechaçada.
MEM - Considerando o
movimento da poesia mexicana que se inicia com o grupo Contemporáneos e que encontra seu
momento de fulgor na vasta obra de Paz, qual seria a contribuição
poética mais relevante das novas gerações para a cultura
mexicana deste novo século?
AR-S - Creio que isso
ainda está para ser visto. É provável que regressem certas
tendências relegadas pelas vanguardas, como uma poesia narrativa ao
estilo do colombiano/mexicano Álvaro Mutis. Mas não se pode dizer
que isso já se manifeste com nitidez.
MEM - Em que medida os
poetas atuais têm lidado com as questões do desejo, do corpo e da
memória?
AR-S - Profundamente.
O desejo e o corpo estão muito presentes. E aparece de uma maneira mais
sutil na obra de poetas mulheres. Coral Bracho, Myriam Moscona, Tedi
López Mills, María Baranda, dentre outras, e cada uma de maneira
muito distinta, têm nos dado poemas notáveis sobre esses temas. E
no livro Alejándose Avanza, de Ana Belén López,
está um dos poemas extensos mais interessantes e intensos sobre o desejo
que já se escreveram recentemente no México.
Em uma outra vertente
da poesia mexicana, o amor apaixonado, expresso de maneira muito terrena e
direta, é um tema predominante na obra de outro poeta que está
entre os que mais influência exercem sobre as novas
gerações: Jaime Sabines.
MEM - Você
poderia falar um pouco mais sobre a contribuição da poesia feita
por mulheres para o redimensionamento do cenário poético
mexicano do presente?
AR-S - A grande
maioria das poetas mexicanas recusa a idéia de serem consideradas pelo
seu gênero e reivindicam o direito de serem poetas sem
classificações sociais. Poetas sem adjetivos. Mais que falar das
mulheres poetas em geral, seria necessário assinalar a existência
de um número considerável de individualidades poéticas.
Obras feitas por mulheres que, no meu entender, têm, sim, um ponto de
vista notavelmente mais sutil e sensorial, uma inteligência material
distinta.
MEM - Como se
dá na poesia mexicana atual a relação entre história
e memória, na abordagem de suas raízes e tradições?
AR-S - De novo, com
uma grande diversidade de caminhos poéticos. Embora não seja um
dos temas predominantes, está presente aqui e ali em várias
obras. Os temas pré-hispânicos são freqüentes em
muitos poetas. Como é agora o universo indígena, depois de
Chiapas. Um presente com uma forte carga de passado. Nestes temas a queda na
demagogia e nos estereótipos é fácil e freqüente. Os
bons poetas tendem a evitá-los ou subordiná-los a uma
dimensão poética pessoal, na tradição de Carlos
Pellicer, de Rubén Bonifaz Nuño ou na de Octavio Paz, em
“Piedra de Sol”.
MEM - Haveria algum
poeta mexicano contemporâneo que tenha lidado com a questão de
Chiapas de forma criativa?
AR-S - Sim, um poeta
de Chiapas, Efraín Bartolomé, viveu todo o começo da
rebelião forma intensa e dolorosa. Sua família, como muitas em
Ocosingo, seu povoado, foi ameaçada de morte pelos guerrilheiros
zapatistas que exigiam que se unissem a eles sob o risco de serem declarados
“inimigos da Revolução”. Foi testemunha de
fuzilamentos arbitrários e seqüestros. Sua poesia adquiriu uma
profunda dimensão histórica sem deixar de ser poesia. Na grande
maioria de outros poetas que escrevem sobre o tema, abundam os
estereótipos épicos à maneira stalinista, ou um populismo
retórico bastante melodramático.
MEM - Como os poetas
mexicanos têm lidado com a proliferação crescente
das novas tecnologias? Estariam eles incorporando essas linguagens de
forma eufórica ou tendo com elas uma relação crítica e
criativa?
AR-S - Não sei.
Não tenho visto na poesia mexicana atual nem incorporações
eufóricas nem relações criativas com as novas tecnologias.
O que percebo é que são novos meios para difundir a poesia para
além dos livros e para difundir os livros. Mas não tenho notado a
influência das novas tecnologias no conteúdo da poesia mexicana.
Talvez mais para frente.
MEM - Você,
enquanto poeta, romancista e ensaísta, se filia a alguma linhagem
literária específica? Em que medida a sua narrativa está
atravessada pela experiência poética?
AR-S - Não
creio pertencer a nenhuma linhagem que não seja a do assombro e da
reflexão poética. Meus livros são mesclas de
gêneros: meus ensaios podem ser lidos como romances documentais; meus
romances são poemas extensos em prosa que guardam sempre presente esta
frase de Pasolini: “a prosa é a poesia que a poesia não
é”. Quer dizer, outra forma de poesia. E meus poemas são
narrativas fragmentárias.
MEM - E quais seriam
as linhas de força de seu trabalho literário?
AR-S - Meus livros
exploram o mundo enigmático do desejo. Tanto feminino quanto masculino.
Tratam de construir uma literatura erótica que não descreva os
corpos se amando, a partir de fora, como fazem os registros narrativos
naturalistas, mas de dentro, como quem sai e entra de um sonho perturbador,
belo e horrível. Por isso meus personagens são
“sonâmbulos” do desejo.
Uma boa parte de
minhas narrativas se situa em uma cidade imaginária, Mogador. Inspirada
livremente na cidade de Essaouira, sobre a costa atlântica de Marrocos.
Elas tratam de reivindicar (talvez reinventar) a veia arábico-andaluza
de nossa cultura. Uma veia “mudéjar”, onde a sensualidade
das formas é essencial.
MEM - Você
poderia falar um pouco sobre o seu trabalho como editor da importante
revista Artes de México?
AR-S - Em Artes de
México, realizamos uma exploração da cultura mexicana,
interrogando-a a partir dos belos objetos que aqui foram produzidos. Exploramos
com paixão “o mexicano” com um ponto de vista profundamente
antinacionalista, mas muito mexicanófilo. A difícil
fascinação reflexiva é nossa meta, e nosso método
é o da “História das mentalidades”. Fazemos
“Estudos Culturais” em que a dimensão literária
está sempre presente. Por outro lado, tratamos de que cada número
de Artes de México seja em si mesmo um objeto artesanal
único.
Maria Esther Maciel
(Brasil, 1963). Poeta, ensaísta e professora de Teoria da Literatura da
Faculdade de Letras da UFMG. Autora de livros como As vertigens da lucidez:
poesia e crítica em Octavio Paz (ensaio, 1995), Triz (poesia, 1998), e A
memória das coisas (ensaios, 2004). Seu site na Internet: www.letras.ufmg.br/esthermaciel. Entrevista
publicada, originalmente, na revista Poesia Sempre # 15 (Fundação
Biblioteca Nacional # 15, Rio de Janeiro, dezembro de 2001). Contato: esthermc@letras.ufmg.br.