Crime de tortura

Crime de tortura

 

Francisco de Assis Toledo

Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça

 

''A Lei 9.455/97 puniu a tortura de modo geral, inclusive contra crianças e adolescentes, tanto é assim que no parágrafo 4º, II, prevê causa de aumento da pena se o crime é cometido contra criança (...) e adolescente''

 1 — A tortura como forma de coação para obtenção de confissão ou de informações a serem utilizadas geralmente em procedimentos criminais é prática que, de há muito, vem sendo condenada universalmente.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 5º) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 7º) estabelecem que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento cruel, desumano ou degradante. A Assembléia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1975, reiterou essa determinação através da Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

 Mais tarde, em 10 de dezembro de 1984, adotou a ONU a ''Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes'', aprovada, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15/2/91, (DOU de 18/2/91, Seção I, p. 3.012).

 Por último, em âmbito regional, a Organização dos Estados Americanos — OEA, em 9 de dezembro de 1985, aprovou a ''Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura'', aprovada, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 98.386, de 9 de novembro de 1989.

 Após todos esses compromissos internacionais, o Brasil, afinal, através da recente Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, puniu autonomamente as várias modalidades de tortura, prevendo os crimes e as penas respectivas. Na oportunidade, revogou-se o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dando-se tratamento unitário e uniforme ao tema.

 2 — A Lei 9.455/97 contém poucos artigos e, no essencial, observa os conceitos da Convenção da ONU (Convenção de Nova York) cujo artigo 1º, 1, assim define a tortura:

 "Para os fins da presente Convenção, o termo ''tortura'' designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.''

 O art. 4º da mesma Convenção dispõe: ''1. Cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura. 2. Cada Estado Parte punirá estes crimes com penas adequadas que levem em conta a sua gravidade'' (Grifamos).

 A Convenção da OEA segue a mesma linha e acrescenta em seu artigo 5º, 2ªparte:

 "Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura.''

 3 — Como tais Convenções, uma vez promulgadas, são leis no Brasil, o legislador ordinário bem como o intérprete devem observar os seus dispositivos, legislando ou interpretando as leis em harmonia com os preceitos dessas convenções.

 4 — Assim, exemplificadamente, na previsão de penas para os crimes previstos na lei de tortura, ter-se-á que observar a recomendação de cominação de penas adequadas que levem em conta a gravidade do crime respectivo, de modo a observar-se tanto a recomendação da Convenção da ONU como, também, o princípio da proporcionalidade, ou seja, pena maior para o crime mais grave e menor para o menos grave.

 E assim por diante.

 5 — Recentemente a Folha de S. Paulo publicou artigo assinado criticando a redução de penas, na Lei 9.455/97, para ''quem torturar e matar crianças''.

 Trata-se de evidente equívoco jornalístico explicável, talvez, pela ausência de conhecimentos técnico-jurídicos, sobre a aplicação da lei penal.

 Com efeito, a Lei 9.455/97 puniu a tortura de modo geral, inclusive contra crianças e adolescentes, tanto é assim que no parágrafo 4º, II, prevê causa de aumento da pena ''se o crime é cometido contra criança... e adolescente''. É necessário, porém, notar que todas as figuras qualificadas do § 3º do artigo 1º da lei de tortura, assim como as figuras dos §§ 1º, 2º e 3º do artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente constituem crimes qualificados pelo resultado, nos quais a tortura é sempre dolosa (o agente tem consciência e vontade de praticá-la), mas o resultado ''lesão corporal ou morte'' é culposo (não querido pelo agente, mera conseqüência de seu ato anterior).

 Não cuidam, portanto, a lei de tortura nem o Estatuto da Criança do homicídio doloso cometido com o emprego de tortura (o agente tem consciência e vontade de matar a vítima, empregando para tanto a tortura ou outro meio cruel). Nesta última hipótese o crime continua sendo o de homicídio qualificado previsto, não na lei de tortura, mas no artigo 121, § 2º, III, do Código Penal vigente, punido com pena de reclusão de 12 a 30 anos, no limite máximo permitido pela legislação penal brasileira.

 6 — Feitas estas considerações, pode-se afirmar, conclusivamente, não ser exata a afirmação do crítico jornalista de que tenha ocorrido significativa redução de pena para o crime cometido contra menor.

 Basta fazer um confronto entre o artigo 233 do Estatuto da Criança com os §§ 3º e 4º do artigo 1º da lei de tortura e com o artigo 121, § 2º, III, do Código Penal, para se chegar a uma conclusão diametralmente oposta.

 Vejamos:

 a) para a tortura simples (sem lesão ou morte), o Estatuto da Criança previa pena de 1 a 5 anos (art. 233, caput; já a lei de tortura estabelece pena substancialmente maior, isto é, de 2 a 8 anos, mais a causa de aumento do § 4º, II, se o crime é cometido contra criança ou adolescente;

 b) para a tortura qualificada com resultado lesão grave, o Estatuto da Criança previa pena de 2 a 8 anos (§ 1º do artigo 233); já a lei de tortura estabelece pena substancialmente maior, ou seja, 4 a 10 anos, mais a causa de aumento do § 4º, II, se o crime é cometido contra criança ou adolescente;

 c) para a tortura qualificada como resultado lesão gravíssima, o Estatuto da Criança previa pena de 4 a 12 anos (º 2º do artigo 233); já a lei de tortura estabelece pena, de 4 a 10 anos, que acrescida da causa de aumento do § 4º, II, se o crime é cometido contra criança ou adolescente, chega ao montante máximo de 13 anos e 4 meses, portanto, também aqui, superior à pena prevista no Estatuto da Criança;

 d) para o homicídio doloso mediante tortura, não previsto no Estatuto da Criança nem na lei de tortura, o Código Penal prevê a pena, como já se viu, de 12 a 30 anos, atingindo o limite máximo da legislação penal brasileira;

e) por último, para o crime de tortura, qualificado com o resultado morte, equiparado equivocadamente pelo Estatuto da Criança ao homicídio doloso qualificado, referido Estatuto previa a pena de 15 a 30 anos de reclusão; já a lei de tortura (§§ 3º e 4º, II), corretamente, reduziu essa pena para 8 a 16 anos, que será aumentada para 21 anos e 4 meses, se o crime é cometido contra criança ou adolescente.

7 — Como se vê, não houve redução de pena se examinada a lei de tortura no quadro sistemático da legislação penal vigente.

 A redução ocorrida em relação ao crime qualificado pelo resultado morte (tortura dolosa com resultado morte acidental, não desejado pelo agente) decorre da observância do princípio da proporcionalidade, e se ajusta a expressa recomendação da Convenção da ONU no artigo 4º, 2, inicialmente citado (penas adequadas que levem em conta a gravidade do crime), já que salta aos olhos não se poder dar tratamento idêntico ao homicídio doloso qualificado, fato extremamente mais grave, e ao crime de tortura com resultado morte meramente culposa. Por outro lado, desnecessário é repetir que, no sistema penal vigente, a pena máxima permitida é de 30 anos (artigo 75 do Código Penal).