O grito íntimo das ruas*

 

O antropólogo que criou o termo "supermercado de estilos" vê a

proliferação do uso de piercings e tatuagens como uma recusa da lógica

imediatista do mercado

O grito íntimo das ruas - Ted Polhemus

 

Tarcisio d'Almeida (crítico de moda, pesquisador da história do

jornalismo de moda na Escola de Comunicações e Artes da USP e professor no

curso de moda da Unip - Universidade Paulista).

* Folha de S.Paulo - + cultura- 03/10/2004


O antropólogo anglo-americano Ted Polhemus, 56, trocou os EUA pela

Inglaterra, especificamente a ensolarada Califórnia (para onde os jovens

costumavam ir) pela enevoada Londres, na conturbada e agitada década de

1960. Esse contexto político-histórico de busca da liberdade ideológica da

era hippie e expansão da moda com o surgimento do prêt-à-porter

possibilitou a esse pesquisador estudar antropologia na Universidade

Temple, na Filadélfia, ainda nos EUA. Em seguida, já em Londres,

desenvolveu seus estudos de mestrado sobre "Body Image and Adornment"

(Imagem e Adorno do Corpo) na Universidade de Londres.

O projeto de mapear as inter-relações entre corpo e estilo na concepção de

moda e comportamento sempre norteou sua verve intelectual de um

antropólogo comprometido com os fenômenos da atualidade, sobretudo os que

decorrem a partir do século 20.

Em seu novo livro, "Hot Bodies, Cool Styles - New Techniques in Self

Adornment" [Corpos Quentes, Estilos Legais - Novas Técnicas de

Auto-Adorno, editora Thames & Hudson, 2004), o "guru dos estilos" e pai do

conceito de "supermercado de estilos" dá mostras de como a onda global do

entusiasmo para a decoração do corpo é enraizada em nosso passado e

examina ainda seu sentido na prospecção do futuro.

Leia a seguir entrevista com Polhemus, que esteve pela primeira vez no

Brasil em agosto, para um workshop.

 

O que é essencial a um relato antropológico da moda: a visão da

"atualidade vivenciada" e/ou o mergulho histórico?

O essencial para uma abordagem antropológica do estilo (prefiro esse termo

ao mais limitado "moda") é uma apreciação do extraordinário poder da

comunicação visual e um sentido da importância vital, mesmo hoje, dessa

forma de expressão humana.

Moda e comportamento são palavras que interagem e coexistem? Como o sr. vê

essa inter-relação?

O estilo visual é parte do comportamento humano e, na minha concepção, é

uma parte vital. Tanto no nível individual como no social, o estilo e a

aparência (e isso vale para todas as culturas e eras históricas) refletem

outros comportamentos e (é defensável que o façam mais perfeitamente do

que outros meios, incluindo a expressão verbal) os expressam.

O que faz com que haja uma democratização de acesso à moda?

Nunca como hoje as pessoas se viram tão livres para escolher a própria

aparência de seu estilo. Se um dia a aparência foi determinada pela tribo

e, depois, pelo sistema da moda, hoje a pessoa comum constrói o seu

próprio modo de se apresentar.

Como o sr. entende a força ideológico-política que uma roupa pode exercer

nas pessoas?

As roupas são algo ideológico-político porque elas, bem como todos os

outros aspectos da aparência, refletem e expressam nossos próprios valores

e crenças, bem como os "fatos sociais" que subjazem à sociedade mais

ampla. Sempre que se tem uma mudança de ordem fundamental no mundo em que

vivemos, obviamente, então, o estilo acaba refletindo isso. Por exemplo, a

passagem do modernismo para o pós-modernismo trouxe consigo a passagem da

moda para o estilo.

Pode-se dizer que a "democratização" obtida com a produção em série

surgida com a moda prêt-à-porter serviu de terreno propício para a moda

olhar mais para os fenômenos sociais, de que são exemplos o "streetwear" e

o hip hop?

Não, não foi apenas a produção em massa que conduziu a uma democratização

da moda. Uma das mais profundas transformações socioculturais da segunda

metade do século 20 foi a passagem da concepção de cultura como algo vindo

somente da classe mais alta para uma noção de cultura como algo que pode

vir de qualquer parte do sistema social. O maior respeito pelo estilo de

rua (o "streetsyle") não é mais que uma faceta desse fenômeno.

Pode-se dizer que se vive hoje em uma sociedade organizada pela "lógica da

moda", que vai além da roupa e invade todos os eixos das sociedades e das

culturas?

Não, na verdade o que procuro ressaltar é o exato oposto disso. Nossa moda

tem sido "invadida" por nossa sociedade e por nossa cultura, e essa

invasão tem solapado e transformado a moda de tal forma que hoje não há

mais moda "per se", e, de um modo mais preciso, pode-se dizer que há um

retorno à condição do estilo, mas com um novo enfoque, no individual em

detrimento do grupo, da tribo.

O que sr. pensa sobre essa constante febre do presente, exacerbada pela

sociedade informacional e pelo capitalismo, que torna rapidamente tudo

obsoleto na moda? Pode-se afirmar que ela decorre da "cultura do

imediatismo", conceito que emergiu e predominou a partir dos anos 1960 na

Europa?

A cultura do imediatismo teve início com o nascimento do modernismo e se

extinguiu com o surgimento do pós-modernismo. A década de 1960 assistiu ao

último grande florescimento dessa aderência ao novo. Para a nossa era

pós-moderna há um mérito maior em celebrar uma mudança constante e cada

vez mais acelerada, daí a passagem para estilos clássicos "sem-sentido" e

um retorno a decorações de corpo em caráter permanente, como tatuagens e

piercings.

O senhor usa a expressão "roubos fashion" para explicar as apropriações,

por parte da indústria da moda, dos verdadeiros estilos que emergem das

ruas e das tribos por todo o mundo.

Acho irônico o fato de as marcas de grife reclamarem tanto ao verem seus

modelos copiados toda hora, sendo que essas mesmas marcas roubam suas

idéias da história, de outras culturas e dos estilos de rua.

Que leitura o senhor tem hoje do Brasil e do design de moda brasileiro,

após sua primeira visita? Qual é a sua impressão? Há um design brasileiro,

mesmo em uma era de mercados globais?

Há 50 anos a moda vinha exclusivamente de Paris. Então Londres, Nova York

e Milão entraram em cena. Hoje estamos começando a ver uma explosão final;

a sugerir que novos modelos e estilistas podem vir de qualquer parte da

aldeia global.

Estilistas e marcas brasileiras podem desempenhar um papel significativo

nessa nova ordem, contanto que tenham confiança para seguir seus próprios

instintos e sua própria cultura. Ademais, deverá haver um apoio interno no

Brasil, possibilitando a estilistas individuais conquistar notoriedade

fora. A exemplo do que muitos países descobriram (e a Grã-Bretanha é um

perfeito exemplo disso: todos os seus estilistas trabalham fora), tudo o

que se tem a fazer é educar e treinar vários estilistas. De importância

crucial é o apoio que deverão receber depois de formados.

É preciso mostrar ao mundo que o Brasil se encontra hoje muito bem servido

quanto a criatividade e excelência em moda, e que nenhum estilista -nem

mesmo grife nenhuma- tomada individualmente, pode fazer esse trabalho

sozinho.

 


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