PASSEIO
de
Hilda Hilst
1
Não haverá um equívoco em tudo
isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha
paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua
imagem.
E me sabendo quilha castigada
de partidas
Não quis meu canto em leveza
e brando
Mas para o vosso ouvido o verso
breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta
e douta.
Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha
mão.
Um aroma te suspende e vens
a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades,
te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.
2
Lenta será minha voz e sua
longa canção.
Lentamente se adensam essas
águas
Porque um todo de terra em
mim se alarga.
E de constância e singeleza
tanta,
Meus mortos hoje sobre um chão
de linhos
Por algum tempo guardarão meu
ritmo
Nos ouvidos da terra. De granito.
Pude aclarar a sombras nos
oiteiros
E aquecer num sopro o vento
da tarde.
Mas não vereis ainda meus prodígios
Porque haverá lideiras neste
outono
E vossos olhos estarão por
lá
Desocupados do sono, extremados
Para uma só visão num só caminho.
3
Quisera descansar as mãos
Como se houvesse outro destino
em mim.
E castigar as falas, alimárias
Vindas de um outro mundo que
não sei.
Fazê-las repetir suas longas
árias
Até que a morte silencie as
mandíbulas
Claras.
4
Caminho. E a verdade
É que vejo alguns portais
E entre as grades uns pássaros
a leste.
Não sabem de seus passos os
meus pés
Nem de mim mesma sei
Mas tantas timidizes se esvaíram
E este meu corpo agora não
as tem.
E atravessando os mármores
e os muros
Como se fossem mais muros de
vento,
Passeio nos jazigos
E um cordeiro de pedra eu apascento.
5
Também nos claros, na manhã
mais plena,
A retina ferida nesse vôo que
passa além do verde,
É sempre a morte o sopro de
um poema.
Entre uma pausa e outra ela
ressurge
Ilharga de sol. Ah, diante
do efêmero
Hei de cantar mais alto, sem
o freio
De uns cantares longínquos,
assustados.
6
As aves eram brancas e corriam
na brancura das lajes.
As aves eram tantas e sabiam
do seu corpo de ave.
Esguias e vorazes consumiam
Os corpos que eram aves menos
ágeis.
E as garras assombradas dividiam
As espessuras ínfimas da carne.
Na plumagem umas gotas de sangue
Dos corpos devorados se entrevia.
Mas da vida e do sangue não
sabiam
As aves que eram tantas sobre
as lajes.
O ritual sincopado das gargantas
Tinha o ruído oco de umas águas
Deitadas bem de leve em algum
cântaro.
Todo o espaço se enchia desse
canto
E atraía umas aves, outras
tantas.
A face do meu Deus iluminou-se.
E sendo Um só, é múltiplo Seu
rosto.
É uno em seus opostos, água
e fogo
Têm a mesma matéria noutro
rosto.
Alegrou-Se meu Deus.
Dessa morte que é vida, Se
contenta.
7
O Deus de que vos falo
Não é um Deus de afagos.
É mudo. Está só. E sabe
Da grandeza do homem
(Da vileza também)
E no tempo contempla
O ser que assim se fez.
É difícil ser Deus
As coisas O comovem.
Mas não da comoção
Que vos é familiar:
Essa que vos inunda os olhos
Quando o canto da infância
Se refaz.
A comoção divina
Não tem nome.
O nascimento, a morte
O martírio do herói
Vossas crianças claras
Sob a laje,
Vossas mães
No vazio das horas.
E podereis amá-lo
Se eu vos disser serena
Sem cuidados,
Que a comoção divina
Contemplando se faz?
8
Vereis um outro tempo estranho
ao vosso.
Tempo presente mas sempre um
tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não
sei.
Será como pensardes ou como
é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão
longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o vôo quase sempre
incerto.
O peito era maior que o céu
aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito
inquieto
É olhar ao redor como quem
vê
E silenciar também como quem
ama.
Éramos muitos? Ah, sim
Eram muitos em mim.
O perigo maior de conviver
era o perigo de todos.
Nosso Deus era um Todo inalterável,
mudo
E mesmo assim mantido. Nosso
pranto
Continuadamente sem ouvido
Porque não é missão de divindade
Testemunharo pranto e o regozijo.
O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O
mantenham vivo.
E os verdes, os azuis, o chumbo
delicado
De umas tardes, a pureza das
aves
Os peixes de verniz
Na abertura mais funda de umas
águas.
(...)
[Exercícios
para uma trajetória poética do ser (1963-1966)]
[in Poesia:
1959-1979/ Hilda hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília):
INL, 1980.]