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O retrato de Esbornian Gay
 por J. Toledo

 

"Ávido, cada homem só é pastor em seu próprio antepasto" 
                   
   (lavra pessoal)

Como se sabe, antes de enlouquecer de vez, Nietzsche afirmou – preto no branco – que o espontâneo é preferível ao metódico. Nada mais certo! Não fosse a cretina da irmã, Elisabeth, isso teria se confirmado muito mais cedo, isto é, quando o filósofo ainda apreciava a genialidade de Wagner às espanholices de Bizet.

Na literatura e nas artes, como na estética em geral, aquela ainda me parece ser a regra. Contudo, às vezes, resta o sentimentalismo, essa pueril e viscosa dejeção intelectualóide que interfere no sistema, antepondo-se com sua melíflua e obsolescente inutilidade. Lacrimosas manifestações que arrastam o espírito às regiões onde o nada e o zero se coagulam, transformando coisas antes belas numa sucata indigesta para inglês sorver junto ao chá.

Dito isso, recordo-me com carinho de conversa matinal que tive com Hilda Hilst, minha Ariadne perpétua. Mulher aranha que teceu as mais belas teias da poesia contemporânea. Sim, manhã dessas, falávamos da estética da morte e, entre uma chávena de Kierkegaard e alguns bolinhos de Heidegger, lembramos eufóricos de Wittgenstein, a Dona Benta da cozinha filosófica e dos temperos da linguagem que, sendo o único austríaco notório a não ter afogado o ganso com Alma Mahler, tornou sua ambivalência tão saborosa quanto os diálogos entre Vladimir e Estragon antes que Godot chegasse.

Porém, nessa agradável troca de amenidades matutinas, ocorreu-nos também a mística do engodo, o grande teatro onde a vida engana a morte e as platéias permanecem no eterno suspense em saber qual exatamente o final. Coisas da ansiedade que a psicologia silvestre já havia notado.

E falando disso, ficamos ali, sob o manto diáfano das lucubrações existenciais, onde a vida sobrepujava a ceifadora e convertia a eternidade num bem tão imperecível que as bugigangas todas da política atual se tornavam assuntos para um dia prosaico e chuvoso, a ocorrer daqui a séculos.

Nada daquelas bobagens de Goethe ou Oscar Wilde que, pensando na sedução e na alimentação egolátrica, pretenderam ampliar estadas ou eternizar feições sob tolas fatuidades e brejeirices inconfessáveis. Não! O que Hilda e eu conversávamos naquele instante era muito mais profundo.

Tratava-se de corromper a morte e não essas asneiras de subornar vereadores a troco de dinheirocas ou ver fotografias de Arnold Schwarzenegger para obter fortes emoções. Seria o suborno das finitudes, a manutenção da beleza e a extinção dos brevês de provecta pela eleição dos bebês de proveta.

Assim, poderíamos apascentar o espírito e combinar tertúlias infinitas sobre a História, da qual seríamos testemunhas perpétuas. Não é fantástico? Vitrificados na própria essência, ela e eu assistiríamos de camarote o passar do tempo, os aniversários do Barbosa Lima Sobrinho e os programas da Hebe Camargo que, também ladinos, já fizeram isso há muito. E todos felizes e harmoniosos... Os mortais, por nos verem ali, geração após geração. Nós, por sermos quem somos: concomitantemente velhíssimos e novíssimos. Maravilha! A longevidade funcionando para sempre.

Mas uma coisa ficou certa em nossa imorredoura existência: nada de analogias. Afinal, com humor vítreo ou não e em unanimidade, todos notarão que continuará sendo muito mais gargalhante observar o detestável retrato de Doris Day que ler o deteriorável Retrato de Dorian Gray.

Bom dia.

(Crônica publicada no Correio Popular de Campinas-SP, em 29/03/2000.)

     
 
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