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COSMOGONIA-MEMÓRIA DO VELHO SOBERANO

 por MORA FUENTES

 

 

Os bons e velhos tempos das antigas perversões. Depois que a mulher se foi (e mais nada aconteceu de definitivo em minha vida), resta-me recordar com dulçor e espanto a época em que gloriosos reinávamos no reino dos Tolos. Unidos numa tenra e airosa juventude sucumbíamos nobres e autárquicos a essa vileza esgarçada de comandar vida e morte. O manto e a coroa, atavismo natural de quem governa, caia em nós na mesma íntima afinidade com que esse leve úmido matinal se une às folhas no princípio do dia, aderência amiga entre a aranha e a teia que constrói. Impregnávamos de espanto nossos súditos com nossa realeza encantada e ignipotente. Mesmo depois, exilados e silenciosos, ainda conseguíamos ludibriar, urdir com loquacidade. E quase prefiro esse tempo, quando expulsos do palácio nos instalamos numa aprazível caverna, onde a suntuosidade da corte se perdia e tomava rumos de pobreza, tanta magnificência e esplendor aquela entranha de rocha possuía. Representava convicto o papel de ermitão-monarca. Alguns súditos, os mais imbecis sem dúvida, permaneceram fiéis, vinham nos visitar, traziam notícias, levavam outras ao grupo que subterraneamente lutava por nós. Instalara-se no país um governo provisório, tentativa limpa e inabalável de remover a treva e a imundície que minha administração supostamente impusera à população. Os novos dirigentes eram mansos, inexperientes como pombas. Pela primeira vez governavam. Destituídos da virtual ardileza de reis e potentados, desconheciam que o povo, esse cardume plácido e derrotado que silenciara de morte a sua voz diante da rigidez e soberania do meu império, que ele partiria desenfreado em todas as direções se palavras vigorosas e limpas fossem usadas, que destruiriam o poder nesse arrojamento impensado, e a digna e sibilina ordem do mundo seria conduzida ao caos. Não sabiam do ócio profundo ajustado a mentes e corações, forte como a fronteira do inferno, perigoso e feroz se perturbado. Outras coisas mais eu sabia e eles não. Com simplicidade compreendi sempre, porque sempre fui rei e reinei, que é impossível ter o poder e não cair no aprazível hediondo pecado de desrespeitar limites. Em pouco tempo podridão e vício gerariam nas novas propostas os mesmos velhos erros. O que se iniciava como governo iluminado indo de encontro aos outros, logo se transformaria na luta da perpétua permanência. Tem-se uma vez o poder e ele te faz diferente, se entranha na víscera, agarra tua alma como a cadela no cio agarra o macho que a visita. Preferimos centenas de vezes a morte pousando sobre tudo do que nos desfazer dessa avidez de possuir, ter, ser dono de. Abocanhar. Sangrar, se necessário, ceder nunca. O desvelo inicial nunca sobrevive tempo suficiente para injetar nesses milhares milhões diretrizes justas e perenes. Inúteis e ineficientes se desejamos o monopólio da vida. E por pior que seja o governante sempre se beneficiarão, livres por inteiro do risco de optar autônomos pela direção a seguir. Poupamos dessa forma os desgaste inútil da múltipla escolha, e suas cabeçorras inertes vazias vão poder se alegrar mais com os pequeninos gozos da existência. Nessa época, nós da caverna nos propúnhamos a diminuir o mais possível esse tempo generoso e desmerecido que se impunha à nação. Lutávamos tranqüilos, certos da vitória. Ninguém mais que o cardume desejava menos sua liberdade. Venceríamos, vencíamos sempre. O que demonstra que na realidade nunca perdemos a realeza, impossível separar o úmido da água, desviar a fome para outro ponto do corpo que não o estômago. Quando a mulher se foi definitivamente, senti como quando perdemos o olho, os braços, as pernas. Muito tempo passou até que o hábito de sorrir e existir surgisse outra vez dentro do meu vazio. Mesmo agora não existo como antigamente. Um grande amor, é verdade, o universo nos unia, tínhamos tudo um do outro igual, a harmonia se formava da nossa união, cântico de arcanjos e querubins ou outros mais graduados, integração de dois que são um mesmo, inteiração unidade. Avidez também, até isso nos unia. Voracidade rara, faminta de uma fome de almas, desejo de estender a mão sobre o mundo e empalidecer o dia, esterilizar a terra. Ou fecundar, oferecer generosos, celestes, a dádiva concedida. Perdoar, submeter, dirigir. Mais voraz que eu, essa pequena mulher que me acompanhou os dias, oriunda de deuses, liame sagrado entre meu trono e o outro lá de cima. Esplêndida, insubjugável, dominava serena, certa de que os céus a ouviam, livre na sua permissividade, guiando-se pela voz do deus que lhe habitava o ventre, representante única dessa divindade. Criava normas específicas para melhor servir a esse que a conduzia. Como quando jogaram a bomba no palácio. Existiram outras antes, claro, existiram sempre. Com tudo o que fazíamos não nos permitiam reinar tranqüilamente, um ou outro insensato se atrevia vezenquando a aspirar nosso ócio. Mas essa destruiu a ala rosa, onde estavam as porcelanas, peças raras de antigas gerações, e não tanto pelos objetos, de reposição fácil bastando invadir alguma coleção particular, mas por ser o seu lugar de descanso, a ala preferida, provável região da sua presença, e apenas por isso o ódio se instalou fecundo na sua essência. Usaram de ameaça contra mim, ela me dizia, quando apenas uma palavra pensada ou sugerida contra o rei ou a rainha já é passível de morte por toda a eternidade. E de um sentir devastado, dessa ingloriosa afronta, do medo inquieto pela sobrevivência impróprio à realeza, é que surgiu a vingança. Ela mesma, minha excelsa soberana, se preocupou em torturar todos os suspeitos, matar os diretamente envolvidos, beatificando insanidade e loucura, vital encontrar cabeças que escondem em algum recôndito fagulhas de insurreição. E o que se iniciou como inquérito justo e normal foi se transformando, sequioso, aviltado, num aprendizado ruvinhoso, sôfrego, causa e razão de muitas mortes. Comandava pessoalmente as execuções, e num crescente expulsou toda a guarda e com as mãos pequenas e enlouquecidas tirou o metal das brasas e calma, densa como um açude, completa, percorreu a carne dos prisioneiros. Não exercia mais a autoridade simples de punir. Não ameaçava nem desfazia injúrias. Um novo se fazia, desbravamento, absurdo de possuir, recortar outro corpo, dissecar a vida, perfurar a artéria. Encontrar-se de frente com aquilo que não se vê e não se toca, movimento subterrâneo, átomo de nada convulsionando a matéria. Espasmo. O que é ver? ela dizia perfurando a órbita azulada do guerreiro vencido. Contemplou os cadáveres em total desconhecimento e sem susto. Queimou a mão de um morto, acompanhou submissa o movimento do nervo retorcendo os dedos. Até onde essa carne morta sentia o fogo? Até onde esse movimento de cadáver era ainda a vida dentro dessa carne desse tendão dessa veia? Prodigioso aprendizado. Lento, carente de regras porque tudo era nosso, imundo e exato como a morte. Noites, dias assim, se repetiram quantos? Regressava exausta, impugnada. Ia até nosso quarto, tirava sua roupa e se deitava no chão perto da cama. Yolanda, a camareira de confiança, a única que consumia nossa estranha intimidade, vinha com um tacho de água quente e essências dentro. Com um pano felpudo limpava o sangue das mãos, do rosto, lavava o cabelo, dissolvia os coágulos escuros, afastava cerimoniosa o estudo da morte, perfumava seu corpo e se retirava. Só então eu me permitia entrar. Me aproximava devagar, tirava minha roupa também, sobre nós a benção e os bons augúrios dos santos no firmamento pintado na abóbada do nosso quarto, e austero, comovido, submisso apenas a deus e à sua serva que agora possuía, degustava esse corpo que era o meu mesmo, em tudo igual a mim, mesmo espanto, mesma sobriedade. E essa identidade com o divino permitiu que sua morte se fizesse sábia, sem dores inúteis, volátil e nobre como deveriam ser todas as mortes. Fiquei no exílio os anos suficientes para que o regresso eu o fizesse só e envelhecido, roubado dessa mulher que era minha vida, cúmplice de tantos momentos. Governo outra vez, como sempre. Pouco depois da sua morte vieram buscar-me. Com um ódio como o teu, me disseram, o povo está a salvo. Reuni soldados, refiz exército e comando. Arrefecido, mas forte ainda para imolar os justos, retornei ao palácio. Ocultei da escolta de ministros a chaga de percorrer abandonado o lugar onde estivéramos os dois tanto tempos entregues à perplexidade da vida. Estou na sala do trono. Sempre compreendi e aceitei o aviltamento inerente dessa proximidade. Trono-cadafalso, vértice luminosos do inferno. Passo a mão sobre o desenho do espaldar. Ouro, maciez de veludo, glória insana de regentes e reinados. Para perpetuar essa proximidade se faz vital impedir o mundo a esses todos incapazes do mundo. As regras são simples, e o jugo permanente, evitando espaços. Tanto tempo desde o começo de tudo. Eu era rapazola, um frangote depenado, e já sabia. Penso em como seria bom que a mulher estivesse aqui. Sentiríamos juntos o gozo de usufruir força e poderio. Sinto sua falta como uma sangradura enérgica e latejante. Não posso ser inteiro agora que ela não está. Menor é a cobiça, menos o espanto. Degradados e cáusticos absorvíamos o reino. Assim nos queria. Éramos assim. A alma do poder nos fez assim. Apenas exercíamos fascinados a função para qual nos designaram. Reinávamos imprudentes sobre a vida.

 

Mora Fuentes  - Casa do Sol - Topo

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