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Abordagem Psicossocial dos Consumidores de AOD
no I Juizado Especial Criminal do Recife.*

Gilberto Lucio da Silva*

É comum ouvirmos dizer que alguém não consegue parar de beber ou usar drogas pois “não tem força de vontade”. Esta é uma meia verdade. Não basta que o dependente tenha vontade pois ele oscilará, entre o querer parar e o querer usar – uma condição que é própria da doença. Verificamos, entretanto, que por ocasião do surgimento de um mínimo de vontade de parar com o uso, funciona mostrar ao dependente as principais conseqüências do abuso de drogas.

Pensamos, além disso, que esta vontade pode e deve ser induzida pelas pessoas mais próximas: familiares, amigos, companheiros de trabalho, ou profissionais que lidem com o usuário. Isto pode ser feito, por exemplo, explorando as dores resultantes das conseqüências do abuso, diminuindo ao máximo as facilidades de uso, e dizendo as verdades nos momentos adequados, com serenidade, sem hostilidade, permitindo que o dependente “caia na real” e se defronte consigo mesmo.

Esta é a principal estratégia utilizada pela abordagem inicial dos consumidores de drogas que são regularmente encaminhados ao Setor Psicossocial do I Juizado Especial Criminal do Recife, a fim de serem avaliados quanto ao grau de envolvimento com o abuso de substâncias entorpecentes.

Muito antes de iniciarmos nossa atuação técnica no âmbito jurídico, obtivemos alguma experiência trabalhando mais de uma década no atendimento psicológico em diversas unidades de saúde da Região Metropolitana, em ambulatórios do Sistema Único de Saúde. Em 1992, realizamos capacitação específica para a Abordagem Inicial do Dependente Químico, promovida pela Associação Brasileira do Estudo do Álcool e Outras Drogas (ABEAD).

Sabemos que há poucos instrumentos desenvolvidos especificamente para este fim, e concordamos com os estudos que indicam que apenas a avaliação do consumo de substâncias não é um parâmetro confiável para a eficiência dos tratamentos. Parar de usar a droga não é sinônimo de vida social adequada, pois crimes e contravenções ocorrem no mais das vezes sem o envolvimento de algum tipo de substância. É o ser humano que existe por trás da droga que é o mais importante a ser avaliado.

Programa de Atendimento aos Consumidores de AOD

A intervenção junto aos consumidores de álcool e outras drogas, que estamos realizando no I JECrim, compreende, inicialmente, uma série de entrevistas psicológicas, onde, além da conceituada Entrevista Motivacional – que visa justamente fazer o usuário “acordar” para o comprometimento de sua saúde e vida social, se realiza a aplicação de testes padronizados para ajudar na detecção do nível de sua dependência física e/ou emocional da droga.

Dentre os testes psicológicos disponíveis, fazemos uso do questionário CAGE, da escala ASI (Índice de Severidade de Adição), do Teste de Detecção de Alcoolismo de Michigan, versão breve, e das Escalas de Seguimento de Alcoolistas e outras Drogas (ESA e ESA – drogas), nas versões para adultos, adolescentes e idosos. Além destes escores, contamos com a aplicação do Roteiro para abordagem e avaliação psicológica da Dependência Química, elaborado após os primeiros contatos que realizamos com usuários do Setor, com o auxílio dos nossos estudos nesta área.

No período de um ano de funcionamento deste sistema de avaliação do autor para sugestão de medida jurídica, os resultados alcançados são promissores. Até o momento, dos 179 casos que foram encaminhados para estudo do consumo de substância psicoativa (álcool e outras drogas), 97 receberam parecer técnico para audiência, sendo 50 para avaliação e tratamento para o consumo de drogas. Destes, cerca de 22 tiveram medida de transação penal em forma de tratamento para usuários ou dependentes de drogas, um já tendo inclusive cumprido o período determinado pela medida jurídica, e apresentado o desejo expontâneo de continuar o acompanhamento na segunda etapa (profissionalizante) desenvolvida junto ao Setor Psicossocial.

Em 14 casos, foi indicada a medida de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), na forma de doação de materiais de trabalho para os órgãos de saúde que realizam o atendimento ao usuário. Em 08 casos a medida foi acatada. Estes indivíduos não apresentaram comprometimento na sua saúde biopsicosocial que justificasse o encaminhamento para tratamento especializado, podendo ser beneficiados pela Lei n°. 9099/95, obtendo uma oportunidade de refletir sobre a situação que os trouxe à Justiça, e revendo sua postura social.

Em 33 processos, comunicamos a inviabilidade do estudo técnico ao Juiz e ao Ministério Público, em função da impossibilidade de avaliar o autor que se encontra preso ou foragido (10 casos), ausente (06 casos), com endereço insuficiente, ocorrendo a devolução pelos Correios da correspondência enviada para marcação das entrevistas (11 casos).

Além destes casos, previamente avaliados pelo Setor, cerca de 22 autores realizaram transação penal na forma de tratamento ou doação, sendo encaminhados posteriormente para serem acompanhados pela equipe técnica do JECRIM. Neste momento, temos 52 casos de consumo de SPA em que realizamos acompanhamento do cumprimento da pena alternativa de doação ou tratamento.

Em 60 casos, a avaliação se encontra em andamento, com a realização de estudo do processo, entrevistas psicológicas e encaminhamento prévio ao local de atendimento clínico especializado para verificar a adaptação do indivíduo ao tipo de intervenção realizado.

Após a definição da medida em audiência, encaminhamos o autor ao local de tratamento ou doação, e, no primeiro caso, remetemos relatório psicossocial à equipe de saúde, informando os dados mais importantes referentes ao caso e a avaliação realizada.

Uma grande conquista que obtivemos junto aos membros do Ministério Público que atuam no I JECRIM, foi atentar para a especificidade do tratamento com usuários de drogas, que envolve um período longo, eivado de transgressões ao cumprimento do acordo assinado em audiência. A determinação de um período mínimo de um ano, para o acompanhamento sistemático do caso, foi acolhida e vem sendo aplicada recorrentemente.

Sempre que possível, recebemos a família do usuário para conversar sobre o que está ocorrendo na vida do filho(a), companheiro(a), genitor(a), corroborando as informações do autor, e ampliando a rede de suporte. Um parente bem orientado e informado pode auxiliar e muito na obtenção de maiores resultados.

Devemos explicar aos familiares, por exemplo, que o princípio ativo da maconha, o TCH, produz uma alteração bifásica entre euforia (fase estimulante) e sedação (fase depressiva). Que durante a fase estimulante, descrita como uma ação semelhante ao estado de sonho, pode ocorrer distorção visual e do tempo, a concentração pode estar comprometida, a memória diminui e o apetite é suprimido refletindo o efeito do THC sobre os receptores da acetilcolina e da serotonina respectivamente.

Alertar que após a fase estimulante, é comum sono e letargia. Que os efeitos psíquicos levam ao uso dependente. Que podem existir sinais de ansiedade ou mesmo de pânico. E que, na maioria dos casos, a síndrome amotivacional é característica da personalidade do usuário, impedindo-o de progredir na vida escolar ou laboral. Colocar estes fatos pode ajudar e muito na compreensão do problema, tanto para os usuários como para os familiares – a quem pouco ou nenhuma informação científica chega.

Ninguém possui o dom da clarividência, que permita dizer de uma vez por todas o que vai acontecer com o indivíduo após sua passagem pela Justiça. Ele poderá ser um cidadão participativo e conhecedor das leis, ou poderá viver à margem da Lei. A psicologia não tem um poder preditivo tão eficaz. Uma avaliação poderá sempre, no máximo, responder aquilo que for perguntado. Quanto melhor a questão formulada, melhor a resposta obtida. Até aqui, podemos dizer que estamos colocando algumas questões de modo acertado, haja vista o empenho que reconhecemos nos usuários encaminhados aos centros de tratamento especializado, e que pudemos constatar in loco, durante as visitas realizadas pelo Setor.

Os agradecimentos recebidos dos jovens atendidos e de seus familiares há de sempre proporcionar novo fôlego, para quem ainda crê na capacidade humana de reconstruir as estruturas rompidas. Os usuários, em sua maioria com idade entre 18 e 25 anos, nos chegam lançando seus questionamentos sobre a ambivalência da situação social onde algumas drogas são lícitas e outras não, sobre a realidade das transgressões não punidas – a “boca” que todo mundo sabe onde é, sobre a angústia que os leva a rejeitar as falsas respostas para as situações de privação que vivenciam – desemprego, dissolução dos laços familiares, falta de perspectivas educacionais/profissionais.

Problemas no seguimento sempre vão existir, pois estamos lidando continuamente com o fenômeno da recaída na utilização da substância. Percebemos que alguns perfis de personalidade utilizam a adição como uma “barreira protetora” contra a dor psicológica, o estresse comum a vida laboral, e os problemas vividos nos relacionamentos afetivos. Estas personalidades não querem abrir mão deste “amortecimento”, proporcionado pela sedação (sensação de relaxamento) que a substância lhes dá. Também é possível identificar falhas precoces na dinâmica de cuidados familiares, gerando tendências anti-sociais por meio da não aceitação de regras de conduta e convivência social.

Muitas vezes simplesmente não temos as respostas mais certas para lhes dar. Mas devemos, acima de tudo, ser adultos para os jovens que nos chegam, e maduramente encarar o seu (e o nosso) desafio, sem tentar curar uma coisa que é essencialmente sadia: a busca por respostas, momentaneamente impelida pelo medo de perder a própria identidade.

*Trabalho apresentado no III Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, João Pessoa, 27 a 31 de maio de 2003.Voltar

*Pesquisador, Psicólogo Clínico, Hospitalar e Jurídico, Especialização em Antropologia das Sociedades Complexas.Voltar