DE “O
COFREZINHO DE JÓIAS DO AMIGO DE CASA RENANO”,
DE JOHANN PETER HEBEL
Pouco se pode dizer a
respeito da vida tranqüila de Johann Peter Hebel (1760-1826), bom pastor luterano, depois diretor do
Ginásio de Karlsruhe, e que reunia, em sua pessoa e
em suas obras, um humor jovial, uma bondade afetuosa e algum
tanto ingênua, e profunda sensibilidade. Autor de uma coletânea de
poemas escritos em dialeto, que alcançaram grande popularidade, fez-se
conhecido sobretudo por seu almanaque, O Amigo de Casa Renano
(1818), de que depois tiraria uma seleção de contos, O Cofrezinho de Jóias de Casa Renano. São
breves narrativas de autêntico sabor popular, de uma graça serena que encantava
ao próprio Goethe. “Encontro Inesperado”, uma delas, merece figurar aqui não só
pela sua beleza inocente, mas ainda por assinalar uma das fontes de inspiração
do conto moderno, o veio popular. Apresenta, além disso, o especial interesse
de constituir o núcleo de um conto de Hoffmann, “As Minas de Falun”.1
1
Texto utilizado: Johann Peter Hebel, Die
schönsten Erzählungen aus dem Schatzkästlein des rheinklandischen Hausfreundes,
Insel-Bücherei nº17. Leipzig, Insel Verlag, [s/d].
ENCONTRO INESPERADO
Há mais de cinqüenta
anos, em Falun, na Suécia, um jovem mineiro beijou a
noiva jovem e bela, dizendo-lhe:
-
- E a paz e o amor hão
de morar nele – disse a bela noiva com um sorriso amável -, pois tu és o meu
único bem, e sem ti preferiria o túmulo a qualquer outro lugar.
Mas, quando o pastor os
apregoou pela segunda vez
Com efeito, quando no
dia seguinte o jovem passou pela casa dela, no seu traje preto de mineiro (pois
o mineiro está sempre vestido de seu fato mortuário), ainda lhe bateu à janela
e deu-lhe bom-dia, mas não veio dar-lhe boa-noite. Nunca mais voltou da mina, e
foi em vão que ela lhe embainhou, naquela manhã mesma, um lenço preto de
listras vermelhas para ele usar ao pescoço no dia do casamento; como ele não
viesse mais, ela guardou o lenço, chorou o noivo, e nunca mais o esqueceu.
Neste meio tempo a
cidade de Lisboa, em Portugal, foi destruída por um terremoto, a Guerra de Sete
Anos terminou, o imperador Francisco I morreu; a Companhia de Jesus foi
dissolvida, a Polônia dividida; morreu a imperatriz Maria Teresa, Struensee foi executado2, a América tornou-se
livre, e o poderio unido da França e da Espanha não conseguiu a conquista de
Gibraltar. Os turcos cercaram o general Stein na
caverna de Veteran, na Hungria, e o imperador José
morreu também. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finlândia russa, teve
início a Revolução Francesa e a longa guerra, e o imperador Leopoldo II também
se recolheu ao túmulo. Napoleão conquistou a Prússia, os ingleses bombardearam
Copenhague, os lavradores semeavam e ceifavam. O moleiro moía,
os ferreiros martelavam, e os mineiros, nas suas oficinas subterrâneas,
escavavam a terra em busca de veios de metal.
Quando, porém, em 1809,
por volta do São João, os mineiros de Falun
procuravam abrir uma passagem entre dois poços, uns trezentos côvados abaixo do
solo, no meio do entulho e da água vitriólica
encontraram o cadáver de um moço, totalmente ensopado de vitríolo verde, mas intato e inalterado, de maneira que suas feições e sua
idade poderiam ser inteiramente reconhecidas, como se tivesse morrido uma hora
antes ou apenas adormecido no decurso do trabalho.
Carregaram-no para o ar
livre. Porém os pais, amigos e conhecidos do jovem adormecido estavam mortos
desde muito tempo, ninguém o identificava nem sabia nada de sua desgraça, até
que chegou a noiva do mineiro que um dia, outrora, tinha ido à mina para não
mais voltar.
Grisalha e
encarquilhada, ela veio apoiada e uma muleta e reconheceu o noivo. Deixou-se
cair sobre o cadáver macio. Mais com encantada alegria do que com pesar;
custou-lhe refazer-se da longa e violenta emoção.
- é o meu noivo – disse
afinal -, por quem chorei durante cinqüenta anos e que Deus me permite ver
ainda uma vez antes do meu fim. Oito dias antes do casamento ele desceu à mina,
e nunca mais subiu.
O espírito de todos os
presentes foi tomado de comoção e dó ao ver a antiga
noiva sob os traços de uma velha murcha e débil, ao passo que o noivo
conservava ainda a sua beleza juvenil. Viam, com lágrimas nos olhos, como no
coração da mulher a chama do amor da mocidade despertava mais uma vez. Ele,
porém, não abriu a boca para rir, nem os olhos para reconhecê-la.
Como era ela a única
pessoa a quem ele pertencia e que sobre ele tinha algum direito, os mineiros
levaram-no para o quarto dela até se armar o ataúde no cemitério. No dia
seguinte, já preparado o túmulo, vieram os mineiros
buscá-lo. Então ela abriu uma caixinha, e retirou o lenço de seda preta de
listras vermelhas, e depois acompanhou em seus trajes domingueiros, como se
fora o dia do casamento e não do enterro. Quando o depuseram no túmulo, ela lhe
disse:
- Dorme bem agora, mais
um dia ou dez, no fresco leito nupcial, e não te aborreças. Ainda tenho alguma
coisa que fazer, mas chegarei brevemente, e dentro em pouco será outro dia. O
que a terra já uma vez devolveu, não quererá guardá-lo segunda vez.
Com estas palavras
olhou em derredor de si e retirou-se.