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P/ Adapa, pela inspiração, Shem pela cópia das "Cartas Fenícias", Esharra e POL pela oportunidade

Religião Suméria e o Retorno Eterno


Luz de Ishtar

Para os estudiosos e místicos da tradição Mesopotâmica, a questão da vida após a morte conforme discutida na literatura levanta questões interessantes, especialmente se comparadas com o Egito. Em geral, diz-se que os egípcios tinham uma visão muito positiva da vida após o julgamento das almas pela pena de Maat em comparação com os Mesopotâmicos. Deles, diz-se que a vida após a morte era uma terrível experiência, onde os mortos comiam areia e vestiam penas como roupas, lamentando na Mansão dos Mortos de Ereshkigal, a Deusa do Mundo Subterrâneo, a perda da vida no Mundo Físico. Mas apesar da evidência escrita sobre tal fato (veja os mitos da Descida de Inana, o Épico de Gilgamesh, por exemplo), seria esta toda a verdade?

Este fato pode parecer cobrir só uma parte da verdade, se supusermos que os Mesopotâmicos acreditavam no Eterno Retorno, um conceito que talvez não possa ser totalmente idêntico ao que hoje entendemos como reencarnação, mas que poderia aproximar-se dele. Neste artigo, iremos propor que pode bem ser verdade que os antigos Mesopotâmicos acreditavam no retorno da alma da Mansão dos Mortos depois da morte física, que a Descida à Mansão dos Mortos era um estágio necessário para a purificação por atos não responsáveis e omissões para que o espírito/alma pudesse retornar novamente depois, e que este fato era devido ao elo entre as Grandes Alturas e as Grandes Profundezas, ou o Duranki. Apresentaremos a seguir argumentos para fundamentar estas hipóteses, baseando nosso raciocínio na Religião e Mitologia Suméria, bem como em obras da literatura. Este artigo não pretende ser dogmático ou definitivo, mas sim ser um convite para trabalhos posteriores sobre os temas aqui apontados, a fim de que possa crescer também o nosso entendimento deste tópico importante da Religião Mesopotâmica.

Adapa, no seu primeiro notável artigo sobre Religião Suméria (neste site também) diz que a reencarnação é um conceito apropriado para os Sumérios, e ,de fato, tão real e explícito que não valia a pena relatar o óbvio e evidente especialmente para os nossos ouvidos do século XX. Os mesopotâmicos, diz Adapa, tomavam notas do nascer e do pôr do sol a cada dia, sabiam do retorno das estações, dos planetas e das estrelas, e sabiam que todos estes sempre tinham um ponto de partida e chegada, à medida que se movimentavam nos céus. Portanto, eles acreditavam com certeza que tudo na natureza das alturas e do mundo físico era cíclico: desta forma, dentro deste contexto, é possível supor que eles também acreditavam que a vida e a morte também poderiam se constituir em algo cíclico. Esta opinião também é compartilhada pelo eminente Assiriologista Jean Bottero em sua obra Mesopotamia: Writing, Reasoning, and The Gods, e Bottero apresente inúmeros exemplos do esforço dispensado pelos mesopotâmicos para registrar e comparar dados, demonstrando com isto claramente o começo do raciocínio dedutivo.

Analisemos primeiramente a mitologia mesopotâmica para ver a fundação de muitas das histórias de descida à Mansão dos Mortos e Subida às Altura para ver a relação estreita que existia entre as Grandes Alturas e as Grandes Profundezas, o modelo cíclico, o Retorno Eterno e fluxo entre os Reinos da Existência. O que queremos mostrar é que os antigos mesopotâmicos podem Ter visto a relação entre o céu e a terra como um fluxo eterno, refletindo o elo ou Duranki entre o As Grandes Alturas e as Grandes Profundezas desde o início da existência como um princípio religioso básico. Numa visão de mundo onde as Profundezas estavam em contato permanente com as Alturas, a morte não constituía um fim em si mesma.

Em primeiro lugar, as Descidas à Mansão dos Mortos são um tema constante na Mesopotâmica, e todas, sem exceção, tratam do triunfo do espírito sobre o desejo, atos errados ou culpa. Histórias de descida sempre contém a advertência de que não se deve ousar descer à Terra da Qual Não se Retorna, que as leis das Grandes Profundezas não podem ser mudadas e que seus desígnios, os mais importantes. Entretanto, Inana desceu para encontrar sua irmã e outro eu, a Grande Juíza e Rainha do Mundo Subterrâneo, Ereshkigal, e Aquela que é a Amada e a Amante ressurgiu como a visão de humanidade em triunfo que transcende a todas as mortes. Enlil desceu depois de Ter estuprado Ninlil, que imediatamente tomou o problema em suas mãos e foi atrás dele para trazê-lo de volta para o Mundo das Alturas, atingindo ao longo do processo maior maturidade para então tornar-se de mocinha inexperiente em Consorte e Esposa do Deus do Ar. Nem mesmo Enlil, o mais importante dos jovens deuses Anunaki, pôde escapar das leis do Mundo Subterrâneo depois de haver cometido um ato terrível, que deu origem à mais romântica de todas as histórias de Descida à Mansão dos Mortos. Ninlil, como a Amada e mais Dura Juíza que Enlil poderia Ter, foi atrás dele para resgatá-lo, tornando-se então parceira do jovem deus em todos os níveis. Deuses e deusas, todos, enfrentaram desafios terríveis e retornaram para as Esferas Superiores depois de responderem por seus atos e terem atingido grande crescimento ao longo do processo. Fica, portanto, claro que o retorno da Mansão dos Mortos não é tarefa impossível, apesar de todas as advertências de que não se deve aventurar por lá. Mas este retorno torna-se possível apenas pelo triunfo do espírito, pela conquista das fraquezas pessoais, por uma perda necessária para que possa ser obtido um crescimento maior.

Em segundo lugar, histórias de ascenção às Esferas Superiores são menos comuns, mas são também jornadas igualmente jornadas perigosas, cujo retorno nunca é garantido para os fracos e que não confiam nos desígnios dos deuses.

No mito de Adapa, Adapa sobe aos céus para encontrar Anu, a fim de se justificar frente ao Deus do Firmamento por Ter desrespeitado o poder do Vento Sul. Adapa é o proto-Salomão, o sábio e sacerdote-rei de Eridu. Ele recusou a imortalidade para voltar ao Mundo Físico ao invés de ficar com os deuses nas Esferas Superiores, Dom que foi-lhe dado por Anu, ao dar ao jovem sacerdote-rei a oportunidade de comer e beber da mesa dos deuses. Adapa recusa o oferecimento, porque Enki, seu deus pessoal, tinha-o advertido contra aceitar qualquer bebida ou alimento, caso ele quisesse voltar para o Mundo Físico com vida. Uma das possíveis experiências para compreender esta passagem é a seguinte: compreendeu que ele teria eventualmente a vida eterna depois de viver uma vida plena no Mundo Físico, e não no momento que Anu ofereceu a ele tal Dom. Adapa compreendeu que não poderia Ter a vida eterna naquela hora, porque ele sabia ser necessário na terra como sacerdote-rei, e a fundação do estado que estava sendo construído em Eridu, o local de onde a monarquia foi criada a partir das alturas. Novamente, temos uma história de subida às alturas com um retorno, cujo mistério mostra o ciclo e o elo que existe entre o céu e a terra, as Grandes Profundezas e as Grandes Alturas, que não são vistas como mundos opostos, mas como complementos num ciclo que nunca termina.

O vôo de Etana às alturas para encontrar Ishtar e obter a Planta da Vida também ilustra uma história bem sucedida de ascenção aos céus e uma promessa de maior realização na volta ao Mundo Físico. Etana é tanto uma personagem mítica quanto uma personagem histórica, pois seu nome consta da Lista de Reis Sumérios. No mito que tem o seu nome, Etana sonha com um herdeiro, e para atingir tal objetivo voa até Ishtar nas costas de uma águia, para pedir-lhe a Planta da Vida, para que finalmente pudesse conceber um herdeiro. O texto está fragmentado, mas sabemos também pela Lista de Reis Sumérios que Etana teve um filho chamado Balih, portanto tendo seu objetivo de vida alcançado. Considerando portanto os mitos acima apresentados, propomos que pode ser uma constante da Religião e Mitologia Mesopotâmica que sempre é possível haver um retorno das Grandes Alturas e das Grandes Profundezas, mas este retorno é apenas tornado possível pelos dons do corpo, mente, coração e espírito daqueles que ousam buscar pela auto-transcendência fazendo o seu melhor em todos os mundos.

Duas citações para substanciar esta hipótese tiradas de "As Cartas Fenícias" de Wilfred Davies e G. Zur:

  1. Sobre Ishtar: " Mas Ishtar é tudo isto e mais. Ela é Aquela que Renasce.... Sabei, oh Príncipe que a morte é a fonte da vida, a vida a causa da morte. Dumuzi, o Amado de Inana/Ishtar deve morrer para viver. Ela é o ritmo, e todos os ritmos têm um fim, e este fim é a morte, e tudo tem um começo" (pags 34-35),
  2. Sobre Nergal: "Há muitas formas de heroísmo. Há aquela forma que representa a estupidez magnífica, onde o herói nada alcança, não salvando seu povo ou sua própria vida, mas levando todos estes problemas consigo além da morte todos estes inimigos. Ele então irá lutar na Mansão dos Mortos as batalhes que ele não venceu, pois diz-se que quando morre um indivíduo, tudo o que esta pessoa fez ser-lhe-á apresentado, para ver se ele/ela se arrependem ou não de suas ações. Se ele lamentar e sofrer pelas ações que não pôde realizar ou nas quais falhou em executar, então este é um peso que ele deve carregar na sua próxima [meu ênfase]. Aqui está um relato de justiça: os assessores do inferno farão descer sobre cada homem seus crimes, seus amores e ódios, sendo que tal indivíduo será atraído pelos mesmos eventos, sem parar, até que as ações de sua vida não mais estejam manchadas" (pg 41), e
  3. Ainda sobre Nergal: "Nergal é aquele que tudo queima, o destruidor, pois esta é sua última limitação. Quando uma pessoa morre, ela irá, se tiver medo, queimar nas chamas de seu terror. Ela irá ser devorada pelos cães de seus desejos não satisfeitos, cortada em pedaços por sua culpa, até que todo este indivíduo seja purificado, e um pouco, apenas um pouco de metal, que pode ser ouro, ou cobre ou mercúrio, prata ou até mesmo chumbo, seja encontrado. Este teste acontece a cada vez que se respira: a cada respiração, as pessoas morrem e renascem, e portanto, a cada dia as pessoas nascem ao nascer do dia e morrem ao adormecer, e no sono, o gosto da morte pode ser sentido nos sonhos do que não realizados durante o dia. Aqui, na Mansão dos Mortos, esta pessoa deverá ser um herói, caminhando sem medo pela terra de seu próprio Mundo Subterrâneo, zombada pelas leis que desprezou ou se rebelou contra. Esta pessoa deverá encontrar os demônios que ela mesma criou, deve lutar as batalhas que ocorreram dentro de si mesma a cada dia. Isto é justiça: entre cada respiração, ele deverá ver o julgamento que será passado por sobre ele. Apenas coragem e perseverance na verdade e na visão interior são as armas desta pessoa lá" (pag. 45).

"As Cartas Fenícias" é um relato real de ensinamentos dos mistérios em forma escrita de um mestre para seu devoto iniciado dentro da Tradição Mesopotâmica. Este trabalho é feito de 10 cartas, cada uma envolvendo um deus/deusa (Rimon-Adad, Nabu, Ishtar, Nergal, Shamash, Marduk, Anu, Enlil, Ea-Enki, Sin-Nana), escritas pelo mestre para seu iniciado ao longo do período de dois anos. As cartas cobrem o treinamento do futuro sacerdote-rei pelo mestre, cuja identidade somente nos é revelada na última carta da série. As citações do capítulo sobre Nergal introduzidas acima são claramente sobre reencarnação, um termo que para os fins deste artigo é referido como o Retorno Eterno, talvez a citação mais explícita que pudemos encontrar na literatura a respeito deste tema. Note que o pedaço de metal que resta depois da queima pode se referir àquela parte da matéria em nós que é primordial e sem manchas, a semente da Grande Mãe Ninhursag-Ki que todos nós carregamos dentro de nós, representada pelos metais atribuídos aos deuses, ou seja, o divino e incorruptível em nós, a semente de nossos deuses e deusas pessoais. Podemos também ver nesta citação o nascimento de uma proto-alquimia? Creio que a resposta é positiva, e esta é uma trilha que seguirei em breve. As citações implícitas sobre o Eterno Retorno estão nos mitos, como bem o mostramos, e que podem ser vistas apenas pelo olhar diligente e cuidadoso.

Adapa do Twin Rivers Rising cita um mito obscuro, que aqui reproduzimos em sua totalidade:" Depois que os Guardiões e o Porteiro tinham cumprimentado aquele homem, reúnem-se então os Anunaki, os Grandes Deuses. Mami, aquela que fixa os destinos, decide o destino com eles. Eles determinam a morte e a vida, mas os dias da morte eles não fixam." (E. Schrader, "Keilinschriftliche Bibliothek", Vol. VI, I, 228). Esta citação mostra claramente que os dias da morte podem realmente não serem eternos. Gostaríamos de acrescentar que este também é o mistério da Descida de Inana, o Eterno Retorno prometido não só para o Amado, Dumuzi, mas também para o rei e mortal Dumuzi, um homem, e sua irmã, Geshtinana, que são tornados imortais pela Deusa, e assim representando toda humanidade.

Finalmente, o último exemplo para fundamentar nossa hipótese de que o Eterno Retorno pode Ter sido um tema fundamental e reconhecido para os Mesopotâmicos que não valia a pena ser declarado ou escrito, principalmente para as nossas audiências do século XX, vem do Mito da Criação do Homem ( e da Mulher), versão Suméria (veja mito de Atrahasis, Tábua 1 em Stephanie Dalley). Neste mito, Enki, o deus das Águas Doces, da Mágica e das Artes, e Ninhursag, a Grande Mãe Terra, criam a humanidade a partir das águas férteis subterrâneas, o Apsu, e uma pitada de argila, insuflando na mistura o espírito de um deus que se sacrificou por esta operação. Está escrito no mito que o espírito do deus sacrificado ressoa em todos os seres como a batida de um tambor (força de vida? Energia?) para que nos lembremos de seu sacrifício. Em outras palavras, esta é uma metáfora maravilhosa que mostra a encarnação como um presente da Consciência Cósmica dado para toda humanidade, tudo o que vive e respira. Um elo foi então estabelecido entre o céu e a terra desde os primórdios Religião Suméria, e a partir deste momento a humanidade foi chamada para continuar pelos deuses os trabalhos da existência pelos deuses como servos fiéis e dedicados. Esta metáfora mostra a verdade que todos os iniciados têm experimentado desde o começo dos tempos. O Espírito pode apenas encarnar através do amor, da mesma forma com que apenas podemos ascender às alturas da experiência religiosa e visionária dando corpo espiritual aos desígnios de nossa alma. Sacrificado neste contexto pode muito bem significar a perda necessária para atingir uma maior conscientização, o desvelar e a vulnerabilidade necessários para entrar nas Grandes Profundezas ou nas Grandes Alturas, uma lei que está sempre presente, mas nem sempre dita, em todos os mitos citados para que possa ocorrer o Retorno. Este retorno, entretanto, só é obtido pelo valeroso de coração, corpo, mente e espírito. Podemos muito bem interpretar o mito da Criação de acordo com os Sumérios como o eterno milagre do espírito entrando na matéria, e para aqueles de nós que vivemos nossas vidas à luz da Tradição Mesopotâmica aqui e agora, nós realizamos com certeza o milagre da matéria tocando o espírito nas nossas dedicações pessoais às deusas e deuses de nossos corações. Desde os primórdios da Religião Suméria, desde a criação do homem e da mulher, temos presente o elo eterno entre a matéria e o espírito. A parte de nós que pertence ao espírito eterno será confrontada então com as realizações de nossa vida e julgada pelos Anunaki da Mansão dos Mortos. Estas divindades serão os juízes de nossas almas e decidirão quando estaremos prontos para retornar da Mansão dos Mortos. Para onde a seguir? Ainda não sabemos e temos de descobrir, mas a morte não é certamente o fim dentro deste contexto.

É por todas estas razões que sugerimos que o Retorno Eterno pode Ter sido um princípio fundamental, mas não explícito da Religião Mesopotâmica.


Fontes mencionadas neste artigo:

Os Tratados (brilhantes ) de Adapa sobre Religião Suméria, http://web2.airmail.net/apkallu7, estão traduzidos neste site.

E. Schrader, "Keilinschriftliche Bibliothek", Vol. VI, I, 228

Jean Bottéro (1991). Mesopotamia: Writing, Reasoning, and The Gods, University of Chicago Press, Chicago, London.

Davies, Wilfred and Zur G. (1979) The Phoenician Letters. Mowat Publishing, Manchester, UK.

Myths of Gilgamesh, Adapa, Athrahasis (Creation of Man), Enuma Elish, Etana and the Descent of Ishtar can be found in Stephanie Dalley (1989). Myths From Mesopotamia, Oxford University Press, Oxford, New York.

 

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