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Corpo-Propriedade

Trata-se aqui não só de generalizar os resultados obtidos nos primeiros textos - o cuidado de si se amplifica tecnologicamente em uma nova experiência de tempo/espaço em que o futuro e sua simulação passam a desempenhar um papel fundamental - mas, sobretudo, de pensar uma nova 'experiência de morte' vigente na pós-modernidade. A idéia de 'limite-meta' é a de mostrar uma nova forma de produção de sentido para os homens. E a resistência a este procedimento residiria não na relação entre morte e alteridade, mas naquela entre vida e multiplicidade.
O individualismo é um dos tópicos recorrentes na discussão sobre o que nos separa da Modernidade. Um dos primeiros signos de crise da sociedade moderna foi a falência das utopias, da crença na possibilidade e necessidade do universal no futuro. Desde a crise das utopias, tornou-se necessário repensar e avaliar as relações entre indivíduo e sociedade. Para os pensadores da pós-modernidade, não é simples valorar o que nos acontece, pois o individualismo é também a novidade.

O espectro de valoração do centramento do indivíduo sobre si mesmo tem, portanto, como complicador, a oposição entre o antigo e o novo. Um extremo é ocupado por aqueles que avaliam negativamente o fim do espaço público e o surgimento do 'narcisismo' com sua ênfase no aqui e agora. Deploram o individualismo porque não há mais sentido de transformação coletiva; contudo, ao lamentarem o fim da esperança revolucionária, podem estar, paradoxalmente, reativando o discurso conservador da decadência que desde Platão assombra o Ocidente. O outro extremo do espectro procura explicitamente opor-se à 'ladainha de decadência'. O individualismo de terceiro tipo, que transforma os deveres do homem em relação a si mesmo em direitos subjetivos, seria capaz de questionar o que havia de moral nas propostas utópicas modernas, seu rigor moral em relação ao trabalho, à higiene, poupança e aperfeiçoamento de si; em suma, o sacrifício do presente em prol do futuro característico de toda moral (1).

A avaliação positiva do individualismo surge nos pensadores que questionaram a idéia de revolução; contudo, em sua exaltação do novo, em sua postura ingênua (o individualismo tem apenas que corrigir seus excessos e continuar sua dinâmica anti-moralista), não estariam reiterando o que de pior havia no discurso revolucionário: sua pertinência a um discurso profético que desvela no presente os signos de proximidade da Jerusalém Celeste? Uma terceira posição, de maior consistência lógica, é exposta por Lyotard, onde o narcisismo pós-moderno é a resultante de um trabalho de luto incompleto do sujeito moderno (2). O indivíduo que se despreocupa com o nós, que em suas ações permanece restrito à sua particularidade, está repetindo compulsivamente o luto do objeto perdido: o universal no futuro, que era a máscara moderna da crença em Deus. Suas ações seriam fruto de uma melancolia incurável. O narcisismo aparece então como a continuidade do projeto moderno de controle do acaso, de recusa do futuro como alteridade purificadora. A questão ética permanece; trata-se ainda, pois esta atitude de recusa pode ser encontrada em Descartes e até em Santo Agostinho, de não apenas reconhecer a existência, mas de abrir-se ao acaso; o sujeito não é mestre do sentido. O problema da posição de Lyotard é sua a-historicidade. A história é ordenada por uma relação do homem, qualquer homem, com o tempo, relação que só pode estar fora do tempo. Esta a-historicidade equivale também a situar fora da Modernidade a vertente trágica de filosofias da história, da qual participam Nietzsche e Heidegger,  que ordenava a narrativa histórica em torno à relação do homem com o futuro e que já encontrava na crença utópica um ressentimento contra o tempo, a marca do espírito de vingança.

Estas descrições deparam-se com paradoxos porque se atêm aos valores positivos de nossa Atualidade, comparando-os imediatamente com os valores modernos. Daí os dilemas: o que vale mais, o projeto solidário ou o narcisismo? o antigo ou o novo? o hedonismo do aqui e agora ou o moralismo do sacrifício? lamentar ou exaltar? controlar ou se abrir?

Nietzsche e Foucault nos propõem uma estratégia alternativa que radicaliza a historicidade. Em A genealogia da moral, Nietzsche afirma que na origem de uma valoração segundo o universal está o ressentimento, a incapacidade de digerir seus sofrimentos, a negação do outro para dizer sim a si mesmo (3). Nesta inversão do olhar avaliador, descobre-se o mecanismo de exclusão próprio à verdade e à razão: todos devem ser e agir segundo o que alguns dizem ser o justo. Os valores universais vigentes em uma dada sociedade surgem como negação de uma negatividade prévia inventada. Adianta-se também a concepção de liberdade como livre-arbítrio. É sobre um fundo sombrio de negatividade que uma ação teria sentido e valor: consistiria em evitar a queda no negativo e, assim, capacitar o indivíduo a ser o que se deve.

Foucault dedicou parte de sua obra a mostrar que a forma de o poder se exercer na Modernidade consistia na criação positiva da negatividade ética. Ao contrário da lei, que visa excluir do real o objeto ao qual se aplica, a norma supõe vínculos circulares entre o poder e seu objeto: o poder normalizador é tão mais eficaz quanto mais o mundo estiver povoado de anormais, uma criação do próprio poder (4). Ganha impulso pelo seu próprio exercício. Um procedimento de poder que, ao dividir os homens entre si, divide cada um em si mesmo.

Surge o método de conceituar a distância entre a Modernidade e a Atualidade. Ao invés de comparar valores de duas épocas, o que suporia o impossível, um ponto de vista supra-histórico para julgar da superioridade, trata-se de acompanhar o deslocamento no lugar do que é socialmente tido como negatividade ética. Este movimento exclui a exaltação ou o lamento como alternativas. Sua questão é descrever o surgimento de uma nova forma de se exercer o poder, que é também uma nova experiência do corpo e da morte, para aí encontrar a possibilidade de resistir. As linhas de fugas não estão nem além e nem aquém, mas no interior do que nos acontece.


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NOTAS

(1) Cf G. Lipovetsky, O crepúsculo do dever, Lisboa: Dom Quixote, 1994, p. 13-26.

(2) Cf J.-F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants, Paris: Galilée, 1986, p. 49-50.

(3) Cf F. Nietzsche, A genealogia da moral, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 34-48.

(4) Cf M. Foucault, A vontade de saber, Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 44-5.