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A CRIAÇÃO DA JUVENTUDE

A CRIAÇÃO DA JUVENTUDE

A CRIAÇÃO DA JUVENTUDE



Escrito por Antonio Lassance

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        juventude é um fenômeno essencialmente histórico. Ela muda de lugar, de cor, de tamanho, de idade, de humor, de roupa, de linguagem. A ponto de podermos dizer que ela não existe, a não ser quando é inventada.
A Antropologia nos fala de sociedades onde não existe juventude. A passagem da infância para a idade adulta é feita por um momento ritualístico que suprime qualquer consideração sobre uma época de transição.
Nas sociedades clássicas greco-latinas, a juventude era considerada simplesmente como uma idade. Todavia, diferente de hoje, não tinha absolutamente nada a ver com adolescência. Muito pelo contrário. Juventude vem de
juvenilitate, " idade juvenil" . E a idade juvenis era precisamente demarcada entre a adulescens e a idade senior. Isto perambulava entre os 22 e os 40 anos. Ou seja, na Antiguidade clássica, alguém na casa dos 30 era naturalmente um jovem. A origem mais provável de juvenis é æoum, cujo significado etimológico é "aquele que está em plena força da idade".
Não se confundia jovem com adolescente. Eram coisas absolutamente distintas.
Adulescens significa " aquele que está em crescimento". Dizia-se que uma pessoa terminava sua adoelscência quando parava de crescer em altura. Este é o sentido original, ao qual se agregou a construção de um discurso sobre o adolescente e o jovem, que ganhariam suas respectivas imagens. Acreditava-se num "espírito adolescente" e num "espírito jovem". A ourivesaria da imagem incrustou aos poucos, meticulosamente, o brilho e o metal que dão características ainda hoje aceitas. Ao adolescente: fragilidade, insegurança, imaturidade, irritação. Ao jovem: "jovialidade", entusiasmo, disposição, mocidade, inexperiência, imprudência, idealismo, rebeldia.
Na definição clássica, a juventude vinha depois da adolescência. Tanto que Juventa, a deusa romana da juventude, era invocada justamente nas cerimônias do dia em que os "mancebos" (adolescentes) trocavam as vestes simples pela toga. O jovem nascia como um ser adulto, e não adolescente. Era o cidadão em plena forma.
Assim também pensava o escritor russo Leon Tolstoi, quando escreveu a quadrilogia demarcada pelas idades, intituladas Infância, Adolescência, Juventude e Idade Madura (esta última não tendo chegado a ser escrita).
Se até o século XIX era mais ou menos assim, do final do século passado e sobretudo na segunda metade deste, a juventude sofre profundas transformações, inclusive na sua forma de entendimento - ou de desentendimento, melhor dizendo - pela sociedade. O que marca a passagem da juventude clássica para a moderna é a forma diferente pela qual são "inventadas" nestas diferentes épocas. Antes, quem definia o lugar da juventude era a família e o Estado. Modernamente, quanto mais a família e o Estado consideram a juventude como uma idade, menos ela o é. Tornou-se um ator social em movimento. Reinventou a si própria. Criou sua imagem e auto-imagem. Propagou estima e cultivou sua auto-estima. Formulou seu próprio discurso. Teve tempo até de projetar seus próprios mitos. A juventude moderna criou a si própria, contrariando a afirmação de Keniston de que a rebeldia "faz parte de um padrão no qual as gerações se repetem de modo quase idêntico".
Apesar desta torcida conservadora, a juventude apareceu neste século como autora e criatura de si própria.
Neste momento, deixamos de falar em apenas idéias e idades e passamos a preceber uma força social destacada. Algo concreto, vivo, e não uma criação convencionada pelo costume, um produto literário, uma figura mitológica ou um estado de coisas. A juventude já não é mais um lugar. É agora um sujeito de carne e osso.
É como se houvesse rompido sua própria casca e destruído o arcabouço que a criara. Por séculos, existiu encubada sob formas pré-fabricadas. Mas, quando rompeu tais formas, destruiu os padrões tradicionais que a criaram.
Assim, é possível ousar dizer que a juventude foi um fenômeno inventado. Juventa foi criada exatamente para ser um mito. Existia apenas "na cabeça" da sociedade. Era uma abstração, uma teoria, uma linha do Equador que servia para dividir hemisférios, mas sem existir de fato. Era uma projeção pela qual a sociedade criava explicações. Não que fosse uma mentira ou manipulação, muito menos miragem ou ilusão. Era um referencial. Entende-se, deste modo, como foi possível o referencial mudar de lugar tão bruscamente ao longo dos séculos em que "juventude" passou a significar coisas diferentes. Esta é a chave do segredo.
Não há como separar juventude e história. Isto significa dizer que não se pode separá-la da política, da cultura, da economia, da luta de classes. Dividida em vários movimentos, cada qual com motivos e feições diferenciados, a juventude só pode ser refeita enquanto idéia se encontrarmos, no labirinto de suas manifestações, o fio de Ariadne que liga essa várias dimensões e aponta para uma saída que encontra respostas para seus segredos. Do contrário, fica-se preso num compartimento que se perde da idéia de conjunto.
A juventude é um espaço de contradição. E quem há de negar que a contradição é justamente o signo da juventude? Como negar que há um antagonismo mesclado de classes? Ou seja, as classes não formam suas juventudes. As classes estão espalhadas em vários movimentos da juventude. É claro que há predominância de certas classes em certos movimentos. O movimento estudantil tem sido essencialmente pequeno-burguês. A origem do punk e do funk é proletária. Mas a juventude não está separada em classes.
Questões como o serviço militar obrigatório, o voto aos 16 anos, a delinqüência e a responsabilidade penal, o sexo, o casamento, a maioridade e outras já foram usadas para demarcar o início da juventude, o que significa dizer que ela já mudou de lugar inúmeras vezes, mas fixando-se de modo cada vez mais confuso junto ao conceito de adolescência.
Há uma razão fundamental por trás desta confusão: com a consolidação dos Estados nacionais, dos séculos XVI a XIX, manter o poder, resguardando o governo e protegendo ou ampliando o território, dependia em muito da grandiosidade do exército. O tamanho do exército, por sua vez, foi sendo impulsionado pela simples redução da dita maioridade. Ou seja, para se Ter mais soldados, a linha divisória da idade adulta foi aos poucos descendo dos 20 para 18 e até 16 anos. A noção de juventude passou a invadir o espaço antes reservado à adolescência. Desta forma, podemos dizer que uma das grandes destruições das guerras foi a do direito à adolescência, que foi sendo reduzida.
Hoje, ambas são praticamente consideradas como uma só coisa. Porém, no século XX as razões militares ganharam um reforço mais decisivo e pretensamente científico: a psicologia. Coincidindo com o surgimento de uma juventude considerada problemática e até perigosa, uma parte da psicologia veio servir de auxílio para torná-la neurótica aos olhos da sociedade. A herança da puberdade e todos os traumas da adolescência são exagerados na caracterização de uma quase doença juvenil, mais conhecida como "delinqüência". A delinqüência, em suma, foi o nome do Frankenstein criado juntando-se a adolescência com a juventude num mesmo tubo de ensaio. Com o aparecimento de uma notável juventude rebelde e política, esta receita foi utilizada com tanta freqüência quanto as bombas de gás lacrimogênio.
Neste fim de século, aqueles que, no fundo, querem decretar o fim da idéia de futuro, a eternidade do capitalismo e, principalmente, o fim da idéia de transformação, de quebra patrocinam a tentativa de assassinato da noção revolucionária de juventude. Ela se torna, no raciocínio destes, uma idéia estacionária, um modelo petrificado. Pior ainda: ela é absolutamente engolida pela fixação da sociedade no "esquemão"
teen. Por isto ela perde sentido.
No entanto, contraditoriamente, quando a juventude mais parece condenada à extinção ou ao acorrentamento à noção de adolescência, mais ela ganha razões para fortificar-se. Afinal, será que os avanços na tecnologia biológica, desde a engenharia genética até a medicina de transplantes e todas as engenhocas químicas que projetam, para o século XXI, expectativas de vida acima dos 100 anos não tornariam o conceito de juventude, mais que necessário, obrigatório? Não estaria o futuro nos desafiando a repensar o lugar da juventude – curiosamente, como à maneira clássica, isto é, distinto da adolescência e dilatado para bem além dos 25 anos?
Mesmo tão antiga, a idéia revolucionária de juventude volta a ser uma grande novidade dos tempos que se aproximam.

Antonio Lassance;
Formado em História pela Universidade de Brasília, faz parte da Organização Não-Governamental Onda Jovem

antoniolassance@hotmail.com.br ou ondajovem@email.com
Este artigo foi publicado orginalmente na revista Juventude.br, dezembro de 98.

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