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Parte II
Humanismo e Renascimento
Capítulo 1
O Renascimento
  Para a mentalidade medieval, a desigualdade proporcional era um bem e não uma injustiça, pois era baseada não no amor próprio, mas na humildade de reconhecer as carências individuais de cada um e a superioridade de outros. De maneira que a regra é a admiração às superioridades de cada um (pois cada pessoa representa em si algo da perfeição de Deus, e representa esta perfeição melhor do que qualquer outra). Em se admirando, algo daquilo a que se admira passa para quem admira, e assim sucessivamente, existe uma constante progressão social para o mais alto, para o mais belo, para o mais perfeito. A função da elite é, pois, a de elevar constantemente a sociedade e não, como querem os socialistas, oprimir e destruir.
  Com o advento do Renascimento, esta "atitude de alma" admirativa, gradativamente, vai se transformando em inveja; e do ideal de desigualdades harmônicas, passa-se a uma busca constante de igualdade e liberdade. Igualdade fruto do orgulho que não aceita superioridade. Liberdade que não aceita a imposição de regras sociais e morais, que, segundo os revolucionários, aprisionariam o homem . Da união destes dois princípios revolucionários, somos todos iguais e livres, surge a fraternidade ecumênica e niveladora, onde a verdade é subjetiva e a moral apenas social (pelo menos até o advento das chamadas sociedades alternativas, que praticamente preceituam a inexistência da moral).
"A partir do século XIV, começam a surgir fissuras no grandioso edifício da Idade Média: uma gradual e profunda mudança de mentalidade começa a se operar na Cristandade."
  Essa mudança não ocorreu - principalmente, pelo menos - de forma explícita ainda no Renascimento, a transformação foi muito mais tendencial do que ideológica.
Capítulo 2
A Revolução Tendencial
  Segundo o já citado pensador católico brasileiro, Plinio Corrêa de Oliveira, em seu livro, Revolução e Contra-Revolução:
"No século XIV começa a observar-se na Europa cristã, uma transformação de mentalidade que ao longo do século XV cresce cada vez mais em nitidez. (...) Este novo estado de alma continha um desejo possante, se bem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem de coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu apogeu nos séculos XII e XIII".
"Subrepticiamente, Nosso Senhor foi sendo afastado como guia e inspirador da vida social. Embora ainda não negado frontalmente, Seu papel na vida cotidianaa foi-se desvanecendo. Tendo decaído o amor à Cruz, foi arrefecendo na alma do homem do fim da Idade Média a aspiração ao heroísmo, ao sacrifício e ao desprendimento. Os espíritos foram-se deixando levar pelo desejo dos prazeres terrenos, pela fantasia e pelos sofistas".
  Paul Faure, historiador e escritor francês, aponta sinais da modificação progressiva do espírito medieval:
"Cada vez mais se descobrem no século XIV sinais do espírito novo. É-se sensível aos contrastes de uma vasta cultura sem ordem nem regras, muito diferente neste ponto da unidade cristã, tal como a tinha sonhado a Idade Média. (...)
Discernem-se aí, na literatura, na filosofia, nas artes, etc., uma corrente racionalista e crítica e uma corrente metafísica e mística; uma corrente de ascese e de austeridade e uma corrente de indulgência e de leviandade; muita fé e muito ceticismo. (...)
Entretanto, a Renascença tem esta unidade: a que é assegurada por um amor extremo da independência em todas as sua formas. A procura e o culto da riqueza; o individualismo artístico ou religioso, o nacionalismo; a curiosidade erudita; o recurso aos textos que se libertam da glosa, do rito ou da rotina; o amor  ao luxo e à carne; em suma, à vida, são manifestações diversas deste único espírito de liberdade. (...)
Os costumes mudam, isto é, a maneira de viver, mas também as de pensar e de crer. Em princípio, na Idade Média, a autoridade da Igreja se exerce em todos os domínios. Ela é a primeira classe da sociedade, ou melhor, é a própria sociedade, representada e conduzida por seus sacerdotes. (...) Ela ignora as fronteiras. Utiliza uma língua internacional, o latim evoluído da Idade Média".
  Essas tendências se acentuaram no século XV e produziram profunda metamorfose nos espíritos, conforme assinala o renomado historiador dos Papas, Ludwig Von Pastor:
"O século XV, principalmente em sua segunda metade, e o começo do XVI, foram para a Europa em geral, e particularmente para a Itália, uma época de transição dos antigos modos de ser para outra disposição de coisas totalmente diversa.
Em todos os campos da vida operou-se uma profunda transformação, na qual se manifestaram os mais rudes contrastes, de modo que o político e o social, a literatura e a arte, e os próprios assuntos eclesiásticos, achavam-se em estado de fermentação que pressagiava a aurora de um novo período".
Na História da Humanidade, continua Pastor, depois da época em que se realizou a transformação do antigo mundo pagão numa sociedade cristã, não existe outro período mais digno de consideração do que aquele em que se verifica a passagem da Idade Média para a Moderna.
Um dos mais poderosos fatores desse período, repleto dos mais acentuados contrastes, foi o profundo e amplo estudo das coisas antigas, que se costuma designar com o nome de Renascimento da Antigüidade clássica."
  Essa transformação foi  realizada paulatinamente e de um modo quase imperceptível, como ressalta o historiador alemão Wilhelm Oncken (1838-1905):
"A passagem da Idade Média para a Moderna se realiza de modo tão paulatino e imperceptível, que não se pode fixar exatamente este período da história, menos ainda assinalar um fato determinado como ponto divisório entre as duas idades.(...)
[A fase final da Idade Média] deverá ser dividida em períodos de caráter diferente e de tendências inteiramente opostas.
As mais importantes destas tendências são aquelas que se propunham despojar-se do espírito e das idéias da Idade Média, e colocar-se, em troca, em contato com as manifestações intelectuais e artísticas da Antigüidade".
  Com o Renascimento começa um lento abandono da austeridade medieval e uma alucinada procura dos prazeres, como no caso da corte dos Valois. Bruxarias, cabalas, cortesãs que aparecem com um obscuro mundo de feitiçarias e bruxedos, a arte começa a se paganizar e a buscar cada vez mais o culto do corpo humano, etc.
  Vários tipos humanos podem ser colocados como símbolos da Renascença, entre eles citamos, por exemplo, Francisco I , o Papa Júlio II, Cosme de Médicis, etc.
  A isso se soma a decadência do clero e o aparecimento de uma série de movimentos paralelos, como os legistas no campo  político e jurídico, os trovadores nas artes, a literatura sentimental e amorosa...
  No nível filosófico, diversas foram as doutrinas que eclodiram. A principal foi o Nominalismo, que tentava quebrar certos pressupostos da escolástica, como a "união objetiva" entre o sujeito e o objeto.
  Desta forma, a Renascença foi quebrando a base de sustentação da Idade Média, que era, sobretudo, hierárquica, austera e sacral.
Capítulo 3
Petrarca, Mestre dos Humanistas, Arauto da "Consciência Moderna"
  Francisco Petrarca, poeta e escritor, nasceu em Arezzo em 20 de julho de 1304 de Petracco e Eletta Canigiani; morreu em Acqua sui Colli Euganci em 19 de julho de 1374.
  Petrarca pode ser considerado o mestre do Humanismo, enquanto soube traduzir em forma clara certas intuições presentes no pré-Humanismo de Albertino Mussato, Ferreto de Ferreti e outros, aprofundando-as notavelmente no seu conteúdo ideal.
  Ele, com efeito, viu nos Studia humanitatis ["Estudos de humanidades"] não uma orientação cultural e filológica, um fim em si mesmo ou um retorno ideal ao passado, mas um instrumento eficacíssimo e uma nova força espiritual para criar uma nova cultura e uma nova concepção de vida.
  O culto da antigüidade clássica não é mais unicamente amor e interesse vivíssimo por uma poesia e por um mundo historicamente circunscrito, nem só ânsia de ampliar e de aprofundar o patrimônio cultural; é sobretudo a crítica e o julgamento da Idade Média, e a descoberta, numa formulação inicial, das linhas ideológicas e programáticas da consciência moderna.
Capítulo 4
A Cavalaria Medieval, Um Estudo de Caso
 "A Cavalaria, outrora uma das mais altas expressões da austeridade cristã, se torna amorosa e sentimental, a literatura de amor invade todos os países, os excessos de luxo e a conseqüente avidez de lucros se estendem por todas as classes sociais".
  O ideal religioso e temporal do homem medieval estava em larga medida consubstanciado na Cavalaria. As noções de piedade, sacralidade, honra, combatividade a serviço do Bem, encontravam no Cavaleiro sua personificação. Ele era antes de tudo o defensor da Fé, o gládio a serviço da Igreja contra hereges e infiéis.
  O cavaleiro medieval era, sobretudo, o leal vassalo que prestava submissão ao seu senhor e por ele combatia. O lema do brasão de um nobre espanhol, o Duque de Tebas, bem exprime esse ideal: "Meu Rei, mais do que meu sangue".
  O historiador flamengo Johan Huizinga apresenta alguns traços da concepção que o homem medieval fazia da Cavalaria:
"O pensamento medieval estava na generalidade saturado das concepções da fé cristã. De igual modo, e numa esfera mais limitada, o pensamento de todos aqueles que viviam nos círculos da corte ou dos castelos estava impregnado do ideal da cavalaria. (...)
Esta concepção tende mesmo a invadir o domínio do transcendente. O feito de armas primordial de São Miguel Arcanjo é glorificado por Jean Molinet como "o maior feito de cavalaria e das proezas cavalheirescas jamais realizado". Foi do arcanjo que "a cavalaria terrestre e as proezas cavalheirescas" extraíram a sua origem, e por isso imitam as hostes angélicas em volta do trono de Deus".
  Um conhecido compêndio católico de História Universal apresenta outros aspectos da Cavalaria, em seu período de esplendor na Idade Média:
"Essa associação guerreira, espécie de sacerdócio militar, era assim chamada porque os nobres só combatiam a cavalo.
Já aos sete anos de idade, o futuro cavaleiro deixava o castelo paterno e entrava no serviço do senhor suserano. Estudava o manejo da lança e o da espada, tornando-se sucessivamente pequeno vassalo, pequeno senhor, pagem, escudeiro, enfim aos vinte anos era feito cavaleiro. O senhor lhe impunha o gládio e lhe dava o abraço. Depois batia-lhe três vezes no ombro dizendo: "Eu te faço cavaleiro em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, de São Miguel e de São Jorge. Sê valente, destemido e leal".
Um torneio encerrava de ordinário a cerimônia. A Cavalaria gerou uma pléiade de heróis católicos; veio a ser um como vínculo de parentesco e de honra entre os povos do Ocidente."
  Mas as novas doutrinas em voga investiram contra a Cavalaria, que não soube defender-se como nos campos de batalha. O texto seguinte é do escritor francês Puy de Clichamps:
"O cavaleiro que deseja continuar a ser campeão dos combates singulares que compunham a guerra, terá apenas o pálido derivativo numa coisa semelhante: os torneios. (...)
Mas, também aí, onde está o velho ideal cavalheiresco, que era servir a Deus, à Igreja e àqueles a quem a desgraça perseguir? E, se não estiver totalmente esquecida, já não está muito na moda a velha oração, rezada no dia da investidura de armas, sobre a espada nova:
"Que o teu servo não se sirva nunca dessa espada... para lesar impunemente alguém, mas que se sirva dela para defender a justiça e o direito".
A Cavalaria tornou-se apenas uma palavra. (...)
A lenta pacificação dos reinos tinha dado lugar, além da formação e promoção da burguesia, ao início de uma nova força: a mulher. (...)
À falta de poderem lançar-se ao assalto uns aos outros, os cavaleiros, entre dois torneios disputados, de resto, sob o olhar da castelã, tentarão tudo para obter de sua dama uma fita, uma manga ou um anel. A Cavalaria submeteu-se de tal maneira ao poder feminino que podemos ver em canções de gesta, como "Doon de Mayence" (século XIII) ou "Gaufrey" (século XIII), mulheres armarem cavaleiros aos seus pretendentes. (...) Assim pode ler-se no "Joudain de Blaivies" (século XIII):
‘E a jovem traz-lhe a espada/ Ela própria lha coloca à cinta. (...) Agora dá-lhe a "colée"/ ‘Sede cavaleiro, diz a dama de gentil figura/ Que Deus te conceda honra e coragem/ e se tiverdes vontade de um beijo/ tomai esse e outros também/ Então Jourdain diz: "Obrigado lhe digo cem vezes". / Beija-a por três vezes (...)"
A cena, que pode parecer infantil à primeira vista, é encantadora, até talvez demasiadamente encantadora e transparece dela uma ironia apenas camuflada que ridiculariza um pouco o apaixonado cavaleiro. Hércules fiando aos pés de Onfala faz pelo menos sorrir.
Mas podemos verificar que mais uma vez estamos bem longe da sólida virilidade da primeira Cavalaria. Esta intromissão da mulher na velha instituição guerreira é sinal (...) de que a instituição perdeu a força - um sinal e em parte uma das causas dessa perda de força".
  Debilitado o espírito de abnegação, a Cavalaria transformou-se gradualmente numa indigna caricatura de si mesma. Os romances que escolheram a Cavalaria como tema exprimem bem essa transformação: já não é por Deus e pelos desvalidos que luta o cavaleiro, mas pelos belos olhos de uma dama... Abel Lefranc descreve o triste sucesso do protótipo desses romances, o "Amadis de Gaule":
"Dentre os romances de cavalaria o que conheceu uma mais firme e duradoura aceitação, (...) foi certamente o ‘Amadis de Gaule’.
‘Amadis’ é filho de Périon, fabuloso rei da Gália, e da bela Elisène, filha de Garinter, rei da pequena Bretanha. A dama dos seus pensamentos é Oriana, filha do rei da Dinamarca. Para obter a sua mão, trava combates sem conta, através dos quais se cobre de glória. Arrisca-se, diversas vezes, a perder para sempre aquela que ama, mas sua coragem e constância triunfam de todos os obstáculos. Vencedor de tantas provas, torna-se finalmente o esposo de Oriana.
De 1540 a 1556, aparecem doze livros de ‘Amadis’, em igual número de volumes in-fólio [formato de um livro, no qual a folha de impressão é dobrada apenas em duas e não forma por conseguinte senão quatro páginas], com numerosas e notáveis gravuras em madeira. Todos estes belos volumes cedo foram reimpressos, alguns deles mesmo várias vezes. (...)
Enfim, de 1561 a 1615 foram publicados, (...) traduções francesas de romances espanhóis ou romances compostos em francês imitando o ‘Amadis’.
Esta simples enumeração, que não abarca as numerosíssimas reimpressões das edições citadas, permite fazer uma idéia da prodigiosa difusão das diversas partes do romance e das seqüências que lhe foram dadas em italiano, alemão, inglês, holandês e até em hebraico. (...)
Desde o início, foi imenso o sucesso desta obra. A versão francesa do ‘Amadis’ penetrou em toda parte, na corte, nos meios aristocráticos e burgueses e até nos conventos. Durante um longo período, tornou-se o código da cavalaria, o "breviário" mundano, um verdadeiro livro de cabeceira para uma infinidade de leitores e leitoras, que ele seduziu e encantou. (...)
Mas não devemos esperar encontrar ali um modelo de virtudes, muito menos de austeridade, nem sequer uma disciplina moral: os costumes revelam-se bastante fáceis e as personagens não opõem grande resistência ao ímpeto das paixões amorosas. Nenhum outro romance parece ter exercido tamanha influência sobre a sensibilidade e a imaginação dos homens da época durante quase meio século. Os contemporâneos de Francisco I e de Henrique II aprenderam nestes livros a pensar e a sentir de uma outra maneira.
Como refere ainda Bourciez, ‘sendo embora este romance, menos o espelho em que se reflete uma geração do que o modelo por ela seguido, nem por isso deixa de existir entre ambos certa conformidade. Neste sentido, o ‘Amadis’ é, pois, um documento".
  Pari passu com os romances de Cavalaria, outra influência deletéria corrompe os costumes: a poesia cortês dos trovadores provençais . Semelhante literatura, túmida de sentimentalismo, abre caminho para a literatura "erótico-espiritual". Esse processo é descrito pelo historiador flamengo Johan Huizinga:
"Quando, no século XII, o desejo insatisfeito foi colocado pelos ‘Trovadores da Provença’ no centro da concepção poética do amor, deu-se uma virada importante na história da civilização.
A Antigüidade também tinha cantado os sofrimentos do amor, mas, nunca os tinha concebido como esperanças de felicidade ou como frustrações lamentáveis dela. (...)
A poesia cortês, por outro lado, faz do próprio desejo o motivo essencial e cria assim uma concepção do amor com uma nota de fundo negativo. (...) O amor tornou-se então terreno onde todas as perfeições morais e culturais  floresceram. Devido a este amor o amante cortesão é puro e virtuoso. O elemento espiritual domina cada vez mais até os fins do século XIII, o ‘dolce stil nuovo’ de Dante e dos seus amigos termina por atribuir ao amor o dom de provocar um estado de piedade e santa intuição. Atingiu-se um ponto extremo.
Não tarda que o sistema artificial do amor cortesão seja abandonado, e as suas sutis distinções não serão renovadas quando o platonismo do Renascimento, já latente na concepção cortesã, der lugar a novas formas de poesia erótica com uma tendência espiritual.
O ‘Roman de la Rose’ (...) começado antes de 1240 por Guillaume de Lourris, estava completo, antes de 1280, por Jean Chopinel. Poucos livros têm exercido uma influência mais profunda e duradoura na vida dum período do que o ‘Roman de la Rose’. A sua popularidade durou pelo menos dois séculos. Ele determinou a concepção aristocrática do amor dos fins da Idade Média. Em virtude do seu alcance enciclopédico tornou-se o manancial de onde a sociedade laica tirou a melhor parte de sua erudição. (...)
É surpreendente que a Igreja, que tão rigorosamente reprimiu os mais leves desvios do dogma em casos de caráter especulativo, permitisse que o ensino deste breviário da aristocracia fosse disseminado impunemente."
  Influenciada pelo clima geral de decadência, a Cavalaria torna-se uma instituição mundana. As proezas em defesa da Fé já não são seu principal objetivo. Os torneios e as exibições vaidosas ocupam agora lugar preponderante. A libertação da Terra Santa é substituída pela conquista amorosa de uma dama...
"Que seria do jovem nobre, ao receber o cavalo e a lança, sem a Cavalaria? Um soldado mais afortunado ou menos, mais sanguinário ou menos... A Igreja soube transformar um ato puramente militar e feudal num ato religioso. Ela disse aos bárbaros do século IX: ‘Regulai vossa coragem’. Eles a regulam e sua selvajeria pouco a pouco se tornou proeza. ‘Não há cavaleiro sem proeza’, diz um velho provérbio. Todas as outras virtudes virão depois e se darão as mãos: lealdade, liberalidade, moderação, cortesia e honra, que a tudo coroa; toda a cavalaria está contida nestas seis palavras. O cavaleiro autêntico é já um eleito, mas em toda a sua vida deve merecer a felicidade futura, lutando duramente contra si mesmo e contra os outros. Tudo pode estar perdido para ele, exceto a honra e a eternidade..."
Capítulo 5
Formação da Mentalidade Antropocêntrica
"Tal clima moral, penetrando nas esferas intelectuais, produziu claras manifestações de orgulho, como o gosto pelas disputas aparatosas e vazias, pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições fátuas de erudição, e lisonjeou velhas tendências filosóficas, das quais triunfara a Escolástica, e que já agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da Fé, renasciam em aspectos novos.
"O apetite dos prazeres terrenos se vai transformando em ânsia. As diversões se vão tornando mais freqüentes e mais suntuosas. Os homens se preocupam sempre mais com elas.
Nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura e na arte o anelo crescente por uma vida cheia de deleites da fantasia e dos sentidos vai produzindo progressivas manifestações de sensualidade e moleza.
Há um paulatino deperecimento da seriedade e da austeridade dos antigos tempos. Tudo tende ao risonho, ao gracioso, ao festivo."
  O historiador já citado, Wilhelm Oncken - aliás protestante -, aponta  as características da civilização moderna, surgida com o Renascimento:
Esta civilização, nascida na Itália, que desde o século XIII se tinha colocado à frente do progresso intelectual (cuja liderança tinha sido exercida até então pela França), recebeu o nome de Renascimento; na realidade não foi nenhum renascimento da Antigüidade clássica como o teriam desejado seus adeptos mais ardentes, mas tão-só a transição da sociedade para um estado intelectual, social e político inteiramente novo. Com a transformação da Cristandade em vários estados políticos modernos, o Cristianismo parecia transformar-se em um estado intelectual que cifrava sua religião, não tanto na fé na divindade, como na fé na humanidade. (...)
Aquela civilização moderna, no seu verdadeiro fundo, não tinha afinidade com a essência do Cristianismo, nem nada que ver com os ideais da Igreja na Idade Média."
  Desta forma, a mentalidade medieval - sobretudo de austeridade, sacrifício e seriedade - começa, primeiramente no nível tendencial, a ser transformada. Da busca incessante da glória de Deus, o ser humano passa a procurar a sua glória; do sacrifício, começa-se, paulatinamente, a buscar-se o gozo; da seriedade medieval, chega-se ao riso renascentista, etc. Toda a civilização é transformada em seus costumes.
  Surgem, no contexto das novas tendências, diversas teorias. Cada uma, a seu modo, começa a demolir os pressupostos transcendentes e naturais da Idade Média. A vida não mais foi feita para o heroísmo e para a santidade, mas para o prazer. A felicidade não está em servir a Deus e ao seu rei, mas no prazer e nos divertimentos da vida.
  O entusiasmo pela religião esfria, a admiração cede lugar às questões pessoais, a Cruz perde o seu significado. Enfim, o homem Renascentista não entende mais a transcendência que a Idade Média conferia à vida.
  A arte, antes tendo como objeto a sacralidade, passa a retratar o cotidiano da vida humana.
"Antes, [na Idade Média], conhecer significava apreender a essência das coisas, chegar até elas como se chega ao pensamento divino. Agora [na Idade Moderna], porém, o conhecimento liga-se intimamente à produção: a procura das leis da natureza é feita em função do seu aproveitamento para satisfazer às necessidades do homem. Procura-se conhecer a movimentação das águas e os ventos para se construir navios; investiga-se a lei do movimento dos corpos para a produção de máquinas de trabalho e de guerra.
A ciência liga-se definitivamente à técnica, passando da mera contemplação da essência das coisas para a intervenção direta na natureza.
A arte, de simbólica, passa a ser representativa, já que a presença de Deus não é mais a única imagem digna de ser figurada. (...)
O que importa, agora, é criar a ilusão de um mundo imaginário que, de repente, adquire vida própria. Em lugar de se justaporem uns aos outros, os personagens e as cenas subordinam-se ao tema central. Tudo passa a girar em torno da criação e de um universo imaginário, paralelo ao mundo cotidiano, que revela, porém, sua essência e a maneira peculiar pela qual o artista o percebe, vê e analisa. (...)
O Cristianismo sempre professara a criação do homem à imagem e semelhança de Deus; mas, a partir do Renascimento, a ênfase é dada muito mais à imagem do que ao próprio original. Esse processo foi denominado Humanismo. Nos primeiros tempos, os humanistas eram eruditos que transferiram os métodos de interpretação da Bíblia para os textos greco-latinos, mantendo a mesma posição servil diante da palavra escrita. Logo, porém, percebem a insistência com que os gregos representavam sues deuses sob formas humanas, o valor que conferiam aos acontecimentos da vida eterna e a atitude racionalista com a qual tratavam esses episódios; encontram, assim, os padrões nos quais puderam projetar seus próprios ideais de racionalidade e de solidariedade humana. É com esse espírito que o artista do Renascimento procura, na Antigüidade, os temas para a literatura e as formas para a escultura e a pintura" .
  Retratando mais os valores da vida humana - naturalmente falando - do que os da sacralidade medieval - sobrenatural em sua essência, os humanistas quebraram os costumes medievais. Mas não quebraram apenas os costumes, houve uma verdadeira Revolução em todos os campos da sociedade. O homem renascentista não podia mais entender a civilização medieval, não podia mais compreender a finalidade medieval da vida.
  Do Renascimento ouve-se o grito, no começo surdo, do Protestantismo: "Cristo sim, Igreja não". Na Revolução Francesa o brado que se ouve é outro: "Deus sim, Cristo não". Durante o Comunismo, alardeia-se a "nova" "moral": "Deus não existe". Chega-se à Pós-modernidade, quando em 1968, na Sorbonne, se diz: "Se Deus existir, é preciso matá-lo".


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