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A RESPONSABILIDADE DO ESTADO

E SEUS AGENTES POR ACTOS

QUE VIOLEM DIREITOS FUNDAMENTAIS

( ALGUMAS CONSIDERAÇÕES )

 

 

 

José Lopes da Graça

A responsabilidade do Estado e seus agentes,

por actos que violem direitos fundamentais

(algumas considerações)

 

"O Estado gere o seu comércio jurídico privado,...é lesante, ...

é lesado,...é credor e devedor, é proprietário, é sócio, é herdeiro"

António C. Neves Ribeiro

 

Sumário: Preliminares; 1. A responsabilidade objectiva e subjectiva do Estado; 2. A problemática da responsabilidade solidária; 3. A compensação por danos patrimoniais; 4. O direito à indemnização, um direito análogo aos direitos fundamentais; 5. Facto ilícito, culpa e dano indemnizável; 6. Restrições implícitas aos direitos, liberdades e garantias: as expropriações.

 

 

 

PRELIMINARES

O Estado pode actuar no uso de um poder de império ou então como simples particular. Seja como fôr, em quaisquer dessas situações o Estado pode, eventualmente, ocasionar danos a terceiros. Essa a razão porque a configuração constitucional do instituto da responsabilidade hoje ínsito na nossa Constituíção traduz em larga medida o acolhimento das doutrinas mais avançadas em matéria de protecção dos cidadãos em caso de lesões provocadas pelos funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas. ( vidé a propósito Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituíção portuguesa anotada, p. 185).

O conceito de responsabilidade corresponde à ideia de dever-se responder ou prestar contas pelos próprios actos. A categoria responsabilidade pode, no pensamento de Pessoa Jorge, assumir duas tonalidades concretas: de um lado a susceptibilidade de imputação, do ponto de vista ético, de determinado acto, e as suas consequências ao agente, excluindo-se, claro está, os inimputáveis ( menores ou dementes ), e do outro, a possibilidade de sujeição de alguém ou alguma coisa, às consequências de um determinado comportamento. (Direito das Obrigações, 1.º vol., p. 496).

Deste modo, a responsabilidade traduz a situação em que alguém se encontra de poder ser obrigado a indemnizar outrem por prejuízos que lhe foram causados. O Código Civil cabo-verdiano absorve e estipula no seu art.º 483.º e ss. o instituto da responsabilidade por actos ilícitos.

Enquanto categoria jurídica que é, a responsabilidadepode revestir natureza criminal, disciplinar, civil, entre outras. A responsabilidade criminal pressupõe a superveniência de um delito criminal podendo implicar para o infractor um sacrifício que pode revestir o carácter de um medida privativa de liberdade ou mesmo de um sacrifício patrimonial em virtude da violação do mínimo ético, afectando destar relações sociais de interesse para a comunidade.

Quando o comportamento ilícito colide com regras ou obrigações impostas por um determinado estatuto ou regulamento destinados a disciplinar relações entre indivíduos pertencentes a uma determinada unidade orgânica então estaremos face à responsabilidade disciplinar. Equivale a dizer que aplica-se por conseguinte a actos de indisciplina ou provenientes de uma má execução dos serviços.

Subjacente à responsabilidade civil encontramos um ilícito de natureza civil, ou seja, respeitante a interesses essencialmente particular. Tem em mira remediar aqueles interesses de ordem patrimonial ( v.g. Orlando Bravo. Direito. p. 161). Importa sempre um comportamento danoso ou seja, uma conduta que gera prejuízos para uma terceira pessoa.

Ora, de entre os ilícitos descritos a presente reflexão circunscreve-se tão sómente a este último tipo de responsabilidade, isto é, a actos danosos lícitos ou ilícitos, provenientes da prática das actividades do Estado e demais entidades públicas ou seus agentes, ou titulares dos seus órgãos.

 

 

    1. A RESPONSABILIDADE CIVIL OBJECTIVA E SUBJECTIVA DO ESTADO E SEUS AGENTES
    2. É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que a responsabilidade do Estado e seus agentes tanto pode ser objectiva como subjectiva, podendo resultar situações de responsabilidade solidária como decorrência lógica daqueles desideratos.

      É assim que parece resultar claro do Código Civil a susceptibilidade de imputação de danos ao Estado ao estipular no seu art.º 501.º que o mesmo responde civilmente pelos danos que haja provocado a terceiros, sejam esses danos provenientes de comportamento dos seus órgãos sejam dos seus agentes ou representantes.

      Mais acrescenta aquele dispositivo que o Estado responderá nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários. A propósito, de acordo com a leitura de Menezes Cordeiro tal imputação ao Estado abrange não sómente os danos provenientes de factos ilícitos praticados pelos referidos órgão, agentes ou seus representantes, mas também os respeitantes a quaisquer outros factores que atinjam em primeira linha os aludidos agentes (o risco ou os factos lícitos). ( in Direito das Obrigações, 2.º vol., p. 379).

      Deste modo, o Estado, despindo-se do seu poder de império pode assumir o papel de credor ou de devedor numa relação jurídica de direito privado, tanto de natureza contratual, como de natureza extra contratual (c.f.r. O Estado nos Tribunais. António C. Neves Ribeiro, p. 61).

      É objectiva a responsabilidade da pessoa colectiva de acordo com o estipulado nos artigos 165.º e 500.º do Código Civil, o que se traduz num sistema excepcional de responsabilidade civil por factos lícitos, com especial destaque para a responsabilidade pelo risco. (vidé a respeito, Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, ps. 199 e 200). Tal ideia de risco equivale à responsabilidade objectiva, no pensamento de Pires de Lima, Antunes Varela e Vaz Serra (c.f.r. Código Civil anotado, vol 1, p. 344).

      Diferente é a responsabilidade por actos ilícitos no qual se inserem as situações de responsabilidade objectiva. A particularidade deste regime resulta do facto de, embora recaindo sobre o Estado a obrigação de indemnizar, poder sempre gozar do direito de exigir do agente culpado o reembolso do quanto haja prestado ( in Menezes Cordeiro, op. cit., p. 379).

      Por conseguinte a responsabilidade objectiva corresponde à ideia de responsabilidade pelo risco ( art.º 499.º, 500.º e 501.º do C. Civil). Diz respeito à responsabilidade por factos lícitos. No concernente ao Estado a responsabilidade objectiva resulta do disposto nos artigos 499.º conjugado com os artigos 490.º, 491.º, 495.º, 496.º e 498.º todos do C. Civil, sendo o disposto no art.º 501.º do mesmo Código, referente à responsabilidade do Estado em casos de gestão privada, isto é, respeitante à Administração Pública, quando despida do seu poder de império. São os casos concernentes às situações relativas aos bens do domínio privado e aos actos e contratos no quadro do direito privado. A responsabilidade de uma pessoa colectiva, nestes casos,(o Estado, uma autarquia, ou outra entidade pública qualquer), é a resultante de um comportamento de indivíduos que em seu nome actuam, ou da pessoa que integra o órgão respectivo.

      Os funcionários do Estado respondem nos mesmos termos em que devem responder os comitentes de acordo com o disposto nos artigos 500.º e 501.º do Código Civil. O primeiro dispositivo reporta-se a actos culposos ou dolosos do funcionário, no exercício de suas funções. Neste caso estaremos face a uma responsabilidade da administração ao lado do funcionário. Assim, por hipótese, em caso de acidente por erro de um agente regulador de trânsito, a responsabilidade compete à administração pública. Os acidentes por falta de sinalização, fazem, de igual modo, incorrer a administração em responsabilidade.

      A responsabilidade por actos de gestão pública, vem regulada no Decreto n.º 48.051 de 21/XI/1967 ( vidé Dario M. de Almeida, op. cit., p. 299).

      No desempenho de funções inerentes a actos de gestão pública, o Estado pode incorrer em responsabilidade subjectiva, culposa ou dolosa.

      Neste domínio, podemos configurar uma série de situações daí resultantes: Assim, por hipótese, o Estado, por actos dos seus órgãos ou agentes pode incorrer em responsabilidade subjectiva (art.º 2.º n.º 1), devendo o Estado gozar do direito de regresso caso haja da parte do funcionário insuficiente diligência ou zelo no desempenho das mesmas funções (art.º 2.º n.º 2), e ainda, devendo o Estado responder conjuntamente com os titulares do órgãos ou seus agentes quando haja excesso de zelo ou de diligência ou mesmo em caso de dolo, sempre havendo neste último caso a solidariedade da pessoa colectiva (art.º 3.º n.º 2). A culpa, nos casos de gestão pública, é apreciada em conformidade com o disposto no art.º 487.º do C. Civil (art.º 4.º n.º 1). De salientar a este respeito que o direito de regresso prescreve nos termos da lei civil (art.º 498.º, n.º1 e n.º 2).

      O art.º 6.º do diploma acima referido, oferece-nos a noção de acto ilícito, sendo certo que os seus artigos 8.º e 9.º fixam a noção de responsabilidade objectiva (pelo risco) e de casos de expropriação, respectivamente.

       

       

    3. A PROBLEMÁTICA DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
    4. Podem ocorrer casos ou situações em que a administração se apresenta como exclusivamente responsável pelo acto ou facto danoso, assim como pode também suceder casos em que essa responsabilidade possa ser exigida em regime de solidariedade, tanto à administração, quanto ao titular do órgão ou o agente que em sua representação haja actuado.

      Ora a responsabilidade solidária sómente ocorrerá em caso de procedimento doloso por parte do agente ou titular do órgão do Estado ( v.g. art.º 3.º do decreto Lei n.º 48.051). Estipula tal dispositivo que em caso de procedimento doloso a pessoa colectiva é sempre solidáriamente responsável com os titulares do órgão ou os seus agentes. Este desiderato representa de certo modo decorrência do princípio da repartição de responsabilidades ínsita no art.º 497 do C. Civil, de acordo com o qual, sempre que a responsabilidade pelo risco recair sobre várias pessoas, todas responderão solidáriamente pelos danos, mesmo que haja culpa de alguma ou de algumas.

      Por conseguinte sempre que a imputação seja solidária o terceiro lesado com o acto ou facto danoso coloca-se na posição de poder exigir tanto da administração quanto do titular do órgão ou do agente responsável a indemnização devida, calculada nos termos da lei.

      De referir porém que a negligência ou mera culpa, na prática do acto, por parte do titular do órgão ou agente poderá reverter em duas consequências concretas. De um lado poderá ter havido um grau de diligência ou zelo manifestamente inferiores, ao possível e esperado em razão do cargo ocupado. Quando assim sucede a administração, podendo embora aceder ao pagamento de justa indemnização ao lesado, sempre gozará do direito de regresso contra o agente culpado. Fora desta situação competirá à administração aceder ao pagamento por inteiro e em exclusivo da indemnização arbitrada. (v.g. Marcelo Caetano a respeito, op. cit., ps. 1233 e 1234).

      Equivale a dizer que sendo o agente do Estado, ou de outra entidade pública qualquer, culpado pelos danos ocasionados a terceiros no exercício de uma actividade de gestão privada, haverá sempre uma responsabilidade repartida entre o Estado e o respectivo agente, nos mesmos termos em que responde o comissário, em contratos de comissão, pelos danos que provocar, tudo se passando como se fosse o próprio comitente a agir. Tal é o caso do disposto no art.º 503.º do Código Civil que contempla as situações de responsabilidade por facto de outrem, de responsabilidade objectiva e da responsabilidade solidária, similar à situação da responsabilidade do comitente e do comissário (o que encarrega outrem de uma comissão).

      Em tais hipóteses, mostrando-se solidária a responsabilidade de um e do outro, rege o disposto no art.º 497.º n.º 2 do C. Civil. Por conseguinte se o comitente satisfizer a indemnização por danos provocados a terceiros, por parte do comissário, sempre gozará do direito de exigir deste último o reembolso por tudo quanto haja pago (Dario A. de Almeida, op. cit., p. 294) . É que o Estado, ao proceder à nomeação do agente atribui a este um poder e um dever de direcção sobre os seus representantes, que, sendo culpados pelos danos para com terceiros, decorrentes de actos de gestão de empresa, respondem solidáriamente com ele. (v.g. o Estado nos Tribunais, op. cit., p. 65).

      De confromidade com o disposto no art.º 500.º n.º 2 do C. Civil, reconhece-se aos intervenientes nomeados pelo Estado a qualidade de seus representantes, assumindo este, responsabilidade idêntica à que se verifica em relação à comissão.

       

    5. COMPENSAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS
    6. É certo que determinado acto ilícito e culposo da administração pode afectar direitos patrimoniais dos particulares originando um dano ou prejuízo material. Trata-se destarte de ofensa a um bem ou a um património, susceptível de avaliação em dinheiro, ou seja, económicamente mensurável.

      É partindo desta base, isto é da ideia de que a prática de actos podem prejudicar outrem, haja ou não intenção de prejudicar, que os artigos 2.º e 3.º, todos do Decreto Lei n.º 48.051 admitem a possibilidade de indemnização por prejuízos eventualmente causados aos administrados, abrangendo tanto a ofensa de direito subjectivos como de outros interesses. (vidé o art.º 496.º do C. Civil, a respeito.).

      Por seu lado é ponto assente que o Estado, no desempenho de actos de gestão privada ou seja, desprovido do seu poder de império, pode arrendar, alugar, comprar, vender e ainda, ser proprietário, e também, herdar. Quando assim sucede estamos face a actos de gestão privada do Estado, entendendo tanto a doutrina quanto a jurisprudência que assim procedendo, tais actos do Estado serão regidos pelo Direito Privado, visto encontrar-se o Estado despido de qualquer poder de autoridade. No dizer de Menezes Cordeiro, proclama-se como actos de gestão privada aquelas em que a actuação tenha lugar no âmbito de permissões normativas do Direito Privado, isto é, constatando-se neste caso a ausência do ius imperii ( c.f.r. op. cit., p. 380).

      O dever de indemnizar, imputável a quem prejudica, ou a quem encarrega alguém de fazer alguma coisa, é o resultado directo da responsabilidade civil, por forma a se proceder à reposição da situação anteriormente existente antes do evento danificador.

      No concernente a actos lesivos, de gestão pública, os pedidos de indemnização à Administração são feitos pelos particulares mediante solicitação da sua pretensão aos tribunais com competência para decidir em matéria administrativa, relativamente a danos provenientes de tais actos, quer se trate de responsabilidade contratual, quer de resposabilidade extra contratual (v.g. art.º 10.º do Decreto Lei n.º 48.051 de 21 de Novembro de 1967).

      Ao invés competirá aos tribunais comuns dirimir litígios em que são configurados pedidos concernentes à indemnização por danos provenientes de actos de gestão privada (vidé O Estado nos Tribunais, op. cit., ps. 59 e 60 ).

      O Estado deverá dar cobertura à prestação da justa indemnização a terceiros lesados por actos danosos de gestão pública ou privada ocasionados em decorrência de sentença condenatória nesse sentido, transitada em julgado. Parece contudo óbvio que o pagamento de tais encargos possa ser processada por via transaccional, isto é, de forma voluntária. Quando assim sucede estamos perante pagamento voluntário pelo Estado. (v.g. António C. Neves Ribeiro, op. cit., ps. 60 e 61 ).

       

    7. O DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE NATUREZA ANÁLOGA AOS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
    8. Trata-se de um direito fundamental antes mais por integrar o catálogo dos direito, liberdades e garantias expressamente contemplados na Constituíção cabo verdiana de 1992 ( vidé art.º 15.º da CRCV/92). Reporta-se à protecção dos cidadãos contra lesões provocadas pelos funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas no desempenho das actividades da pessoa colectiva, quer no que concerne a actos de gestão pública, quer no que respeita a actos de gestão privada.

      A categoria, direitos fundamentais a que aqui se reporta, não pode ser aferida de um mero direito de defesa do cidadão contra o Estado, traduzido na exigibilidade de omissão das entidades públicas face à esfera jurídica privada dos cidadãos. A respeito dessa função dos direitos fundamentais, ensina Gomes Canotilho, neste particular, que cumprem uma outra finalidade que é a de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: num plano jurídico-objectivo constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual, e por outro lado, implicam ainda num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos. (vidé Gomes Canotilho, op. cit., p. 448).

      Porém, os direitos fundamentais, comportam ainda os chamados direitos positivos, ou seja, direitos subjectivos privados ante o Estado, quer sejam de ordem individual, quer de ordem social. Ademais, o respeito pelos direitos fundamentais, podem igualmente ser impostos a outros cidadãos, ou pessoas colectivas que não apenas o Estado.

      De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, se por garantias se entender, quer o direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a protecção dos seus direitos, quer o reconhecimento dos meios processuais adequados a essa finalidade, então, pode-se constatar que a obrigação de indemnização por danos resultantes de actos ou omissões dos titulares dos órgãos dos poderes públicos, de funcionários e agentes, inscreve-se também como uma das garantias fundamentais dos cidadãos.

      Trata-se, mais concretamente de uma garantia contenciosa em face da administração, o que vincula uma pessoa colectiva pública à obrigação de proceder à reparação por danos eventualmente causados a outrem, pelos seus órgãos ou agentes, atendendo ao facto de a administração, através de pessoas colectivas, e por seu lado, estas, através das pessoas físicas titulares dos seus órgãos, que lhes servem como seus agentes, poderem lesar terceiros com os seus actos e daí resultarem prejuízos.

      Esta a razão porque se pode aferir pela sede onde se localiza o tratamento da matéria que se trata efectivamente de questão atinente aos direitos fundamentais dos cidadãos. Efectivamente a problemática da responsabilidae das entidades públicas vem localizada na referida Parte II da Constituíção cabo-verdiana, designadamente no seu art.º 15.º, que reza no seu n.º 3 o seguinte: a todos é reconhecido o direito de exigirem, nos termos da lei indemnizações pelos prejuízos que lhes forem causados pela violação dos seus direitos e liberdades fundamentais.

      Já vimos que na prática dos actos de gestão do Estado os particulares podem sofrer danos. Essa a razão principal de semelhante dispositivo constitucinal que outro fim não terá senão a salvaguarda e a protecção dos cidadãos em caso de lesões provocadas por funcionários do Estado e demais entidades públicas (c.f.r. Constituíção portuguesa anotada, op. cit., p. 185).

      A reacçção dos particulares lesados pode não se circunscrever apenas ao Estado, na medida em que a pessoa colectiva expressa e exterioriza a sua vontade através de seus funcionários ou seus representantes, agentes ou titulares de órgãos, que nesta justa medida poderão ser igualmente chamados à liça por intermédio do instituto da responsabilidade solidária, de parceria com o Estado.

      Tanto os actos legislativos quanto os actos jurisdicionais poderão ser fontes de imputação de responsabilidade ao Estado e demais entidades públicas. Com efeito parece resultar óbvio que o particular, de um lado, pode ser lesado nos seus direitos, liberdades e garantias, por virtude das disposições de uma determinada lei, assim como pode de igual modo, ser prejudicado por denegação da justiça, ou pelas chamadas "omissões jurisdicionais materialmente indevidas", ou até por situações provenientes de condenação injusta.

      Quaisquer dessas situações poderá determinar que seja arbitrada uma indemnização a favor do terceiro directamente atingido com o evento. Note-se, mais ainda, que o texto constitucional vai mais além de uma mera violação activa por parte do Estado e demais entidades públicas, já que a omissão lesiva é passível de imputação a tais entidades. Pretende-se com este dispositivo constitucional salvaguardar os direitos e interesses dos cidadãos de um lado, e do outro afastar a ideia da impunidade total do Estado e outras entidadespúblicas, bem assim, dos agentes ou titulares dos seus órgãos.

       

    9. FACTO ILÍCITO, CULPA E DANO INDEMNIZÁVEL
    10. A noção de facto ilícito vem estabelecida no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051 de 21/XI/67, que o define, para efeito desse diploma regulador da responsabilidade civil extra contratual do Estado demais pessoas colectivas públicas, nos termos seguintes: todos os actos que violarem normas legais e regulamentares ou os princípios aplicáveis. Neste caso a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto. Trata-se de uma conduta violadora do dever imposto por lei. Portanto, nesse sentido, facto ilícito será todo o facto violador de interesses garantidos pela lei. (vidé Pessoa Jorge, op. cit., ps. 499 e 515).

      Trata-se de um elemento indispensável à definição da responsabilidade civil extra contratual do Estado. Por conseguinte há-de gerar a responsabilidade civil extra contratual, enquanto elemento constitutivo do mesmo, todo o facto ou acto jurídico passíveis de violar interesses jurídicamente protegidos pela lei. O facto ilícito pode abranger tanto os delitos civis como os delitos penais, e ainda os chamados quase delitos. O imperioso é que se traduzam numa colisão com interesses legalmente protegidos, sejam eles provocados por um acto comissivo ou omissivo.

      Ensina Marcelo Caetano que o facto ilícito tanto pode ter consistido num acto jurídico, nomeadamente num acto administrativo, como num facto material, simples conduta despida de caracter de acto jurídico, ( conduta voluntária proveniente de um órgão, dirigida à prossecução de determinados efeitos relevantes para a ordem jurídica ) imputável à pessoa colectiva (M. Caetano, op. cit., p. 1225). Note-se que facto jurídico distingue-se de acto jurídico visto que o primeiro reporta-se a qualquer evento ou acontecimento material susceptível de produzir efeitos jurídicos, enquanto que o segundo traduz-se num evento humano dirigido à produção de determinados efeitos de direito.

      Ora, na medida em que na base do facto ilícito, encontramos uma espécie de culpa em elevado grau, no dizer de Moitinho de Almeida, só haverá responsabilidade extra contratual, caso se verifique a presença deste mesmo requisito. Já no que concerne à responsabilidade civil estricto sensu, tão sómente bastará que haja a presença da mera culpa. Para que ocorra a exigibilidade em sede da responsabilidade extracontratual, tanto faz que nos encontremos perante um acto ou um facto, ilícitos. Mesmo tratando-se de um negócio jurídico, o que importa, efectivamente, é que sejam contra legem ou seja, colidente com interesses legalmente protegidos (vidé Moitinho de Almeida, in A responsabilidade Civil dos Advogados, p. 44 e 45).

      Por seu turno, no concernente à culpa, de referir que só os factos ilícitos culposos induzem à responsabilidade civil do Estado e seus agentes. A culpa traduz a intenção de praticar o facto (dolo) ou então a falta de zêlo ou de diligência a que os órgãos e agentes se acham obrigados (negligência).

      A ideia de culpa afere-se da noção básica atinente à diligência mínima e equilibrada de um bónus pater famílias, um certo tipo de homem modelo e concreto que actua em sociedade de forma responsável, prudente, equilibrada e cuidado adequados, de acordo com o esperado e em conformidade com cada circunstância que se lhe apresenta, seja qual fôr a função ou actividade que ele, eventualmente desempenha (vidé a respeito o art.º 2.º, n.º 2 do Decreto Lei n.º 48 059 de 1967 de 21 de Novembro). De salientar neste particular que a demência, por se tratar de uma situação anómola, de inimputabilidade, traduz-se numa causa de exclusão da culpa, de acordo com o disposto no art.º 488.º do C. Civil (v.g. Pessoa Jorge, op. cit., p. 560).

      A doutrina tem aceite, tradicionalmente, a classificação da culpa em três categorias: a culpa levíssima a culpa leve e a culpa grave. É particularmente importante a repercução jurídica de cada uma desta categorias, no domínio da exigibilidade e imputação. Assim, parece ser ponto assente que no que respeita à responsabilidade extra contratual, se deva ao critério do juiz a susceptibilidade de poder ou não relevar a culpa levíssima, enquanto que, em princípio, se mostra irrelevante este tipo de culpa na responsabilidade contratual, salvo se se constatar uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação.

      Será culpa leve, toda aquela que não sendo nem levíssima nem grave, pode todavia ser acautelada pelo homem mínimamente prudente. Em termos de imputação produz os mesmos efeitos que a culpa levíssima, tanto em sede de responsabilidade contratual, como de responsabilidade extra contratual. A culpa grave, traduz-se num acto grosseiro e leviano como causa imediata para o não cumprimento da obrigação – non iltelligere quod omnes inteligunt " (vidé Moitinho de Almeida, op. cit., ps. 31 e 32 ).

      Já no que respeita à ideia de dano indemnizável, tal se afere das consequências de um certo acto praticado, traduzido num prejuízo ocasionado a um particular. O dano será destarte o elemento objectivo da responsabilidade civil ou seja a perda, prejuízo ou dano sofrido por alguém. É consequência de um acto voluntário que em virtude de provocar a violação de um dever, reconduzir-se-á deste modo à responsabilidade civil.

      De salientar neste particular que entre o acto praticado e a consequência do mesmo facto danoso, deve existir um elo de ligação vislumbrado nos seguintes termos: que o acto haja sido causa adequada à produção do prejuízo ou dano, ou seja, que haja um nexo de causalidade entre o acto e o seu resultado danoso. Pessoa Jorge alerta para o facto de na base de um único facto concreto, podermos detectar uma prolongadíssima cadeia de prejuízos, que não se verificariam se aquele facto não ocorresse. Tal ideia, contudo, não tem sido pacífica, o que tem-se traduzido em alguma controvérsia doutrinária (op. cit., p. 495).

      Seja como fôr, a teoria da causalidade adequada pressupõe a descoberta da condição necessária do dano, entre as causas que o antecederam, isto é que estiveram na base da sua ocorrência.

    11. RESTRIÇÕES IMPLÍCITAS AOS DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS: O CASO DA EXPROPRIAÇÃO

Ressalta do disposto no art.º 16.º, n.º 5 da Constituíção vigente a consagração do regime da restrição aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. No dizer da Gomes Canotilho, a razão principal conducente a tal restrição resulta do facto de os direitos fundamentais se encontrarem, por vezes, em conflito com outros bens ou direitos, de igual modo, constitucionalmente protegidos. Nessa justa medida o que se pretende prosseguir, não é outra coisa senão a regularização da concordância prática com outros interesses também protegidos pela lei fundamental, mercê da sua igual dignidade constitucional ( vidé G. Canotilho, in Direito Constitucional, 4.ª edição, p. 476).

A expropriação é sem dúvida um dos figurinos que se inscreve como excepção ao princípio da não privação da propriedade privada, ao respectivo titular, por parte da Administração Pública. Porém tal medida restritiva terá que ser acompanhada de alguns pressupostos, para surdir efeito jurídico de acordo com o estabelecido na lei.

Nestes termos, a submissão ao princípio da legalidade faz-se sentir, de molde a impedir que sejam perpectradas quaisquer medidas arbitrárias, e por outro lado, terá que ser efectivamente comprovado a utilidade pública da medida expropriatória, e por fim a Administração Pública terá que garantir ao expropriado a justa indemnização, a ser arbitrada nos precisos termos previstos na lei, o que se insere, plenamente no princípio da indemnizaçao dos particulares em virtude de ocorrência de actos lesivos de seus direitos. (v.g. G. Canotilho e V. Moreira, op. cit., p. 336 e ss.).

A génese do instituto da expropriação, de acordo com Marcelo Caetano, encontrámo-la no conflito estabelecido entre o princípio do carácter absoluto da propriedade privada e a necessidade de realizar fins sociais de interesse colectivo, mediante a utilização de bens já expropriados. Neste sentido, houve muitas vezes, de acordo com o autor, a necessidade de sacrificar o interesse andividual ao interesse geral, e quebrar as resistências do egoísmo a bem da solidariedade social.

Note-se, contudo, que tal medida, embora, unilateral e impregnada de forte ius imperii, merecerá ser acompanhada de alguns condicionalismos impostos por lei, como já se referiu, e de contrapartidas que não deverão ser denegadas ao administrado atingido.

É nesse sentido que a Lei n.º 2.030 de 12 de Junho de 1948, determina no seu art.º 1.º, o pagamento de justa indemnização, quando os bens imóveis e direitos hajam sido expropriados por causa da utilidade pública prevista na lei. (vidé a este respeito a Revista Direito e Cidadania, Ano I, n.º 1, Julho a Outubro de 1997, p. 149 e ss.).

 

CONCLUSÃO

É evidente que a responsabilidade do Estado ou outra entidade pública qualquer, seus agentes, órgãos ou representantes, não se circunscreve apenas à matéria civil. Pode ainda ocorrer situações que configurem a imputação criminal ou disciplinar, consoante os casos. A abundante doutrina e jurisprudência existentes neste domínio não nos permite um tratamento mais exaustivo e pormenorizado da problemática, razão porque tais questões a seu tempo serão objectos de tratamento em outra sede.

Em Cabo Verde, o figurino jurídico da responsabilidade civil por parte do Estado e demais entidades públicas, dos seus órgãos, agentes ou representantes, em virtude de prática de actos de gestão pública ou privada, eventualmente lesivos dos administrados, é sem dúvida, conquista do legislador constitucional de 1992.

Na verdade tal instituto não figurava do elenco normativo ínsito no capítulo dos direitos fundamentais da Constituíção de 1980.

A emergência do Estado de Direito Democrático, a consagração dos princípios decorrentes da forma republicana do governo, designadamente no que concerne à responsabilização da Administração e dos titulares de cargos políticos, bem assim, a colocação da lei acima dos próprios governantes, em homenagem ao princípio da legalidade administrativa, entre outros, constituem um conjunto de princípios, metas e objectivos acolhidos e devidamente valorados na Lei Fundamental ora em vigor, enquanto matéria com dignidade constitucional, hoje formalmente consagrada na Lei Maior do país.

Ora o direito dos administrados e não serem privados de seus bens e propriedade(s) nem sempre se traduz num poder absoluto e ilimitado. A localização e destruíção de mercadorias ou produtos deteriorados, destinados ao consumo público, bem assim o acto de expropriação por utiliade pública, entre outros, podem se situar no elenco daquelas medidas de ius imperii, que poderão constituir restrições aos direitos, liberdades e garantias dos privados, neste particular.

Esclareça-se contudo, que pelo menos em matéria de expropriação, sempre restará ao oxpropriado o direito à justa indemnização. Ademais a Administração Pública, ou outra entidade pública qualquer com competência neste domínio, terá que demonstrar e provar a uitilidade pública da medida, e ao mesmo tempo garantir a justa indemnização ao particular objecto da medida expropriatória.

De recordar, neste particular, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 13 de Janeiro de 1987, que distinguia actos de gestão pública de actos de gestão privada, da seguinte forma: situam-se de um modo geral, no âmbito de gestão pública, os actos praticados por órgãos ou agentes do Estado ou pessoa colectiva pública menor no exercício de um poder público, englobando-se na gestão privada os actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública menor intervêm como simples particulares, despidas de poder público. Óbviamente que o poder de império está intensamente presente na adopção in extremis, de medidas expropriatórias.

Por todo o exposto, se pode aferir, em suma, que o desenvolvimento do Estado democrático e o incentivo do comércio jurídico, e a própria evolução socio-económica do nosso país, naturalmente que trarão a seu tempo a necessidade de aprofundamente doutrinário desta temática, de molde a acautelar eventuais excessos dos poderes públicos direccionados aos particulares, que eventualmente possam surgir aqui e acolá, e a proporcionar aos órgãos jurisdicionais do país uma acção que propicie uma atenção redobrada ao princípio da legalidade e das garantias fundamentais dos administrados.

Praia, 27.01.2000

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