AS NORMAS CONSTITUCIONAIS

 

Noção Inicial

 

             A imperatividade, ou carga cogente, ou conteúdo impositivo e coativo, das normas jurídicas não se manifesta com a mesma intensidade nos diversos tipos de normas. Luiz Roberto Barroso, reproduzindo a lição da doutrina clássica, divide as normas jurídicas em duas grandes categorias: a das normas cogentes e a das normas dispositivas. As normas cogentes são preceptivas, quando obrigam a determinada conduta, e proibitivas, quando a vedam. São normas que visam a impor-se à vontade dos seus destinatários, condicionando absolutamente a sua conduta e não permitindo a ocorrência de desvios ou alternativas ao regramento legal imposto. A vontade individual de optar é, nesses casos, de nenhuma valia e de nenhum efeito. De outra parte, as normas dispositivas são aquelas que deixam aos destinatários a liberdade de disporem de maneira diversa da regulamentada pela norma, a qual tem, um efeito supletivo à vontade das partes.

            Luiz Roberto Barroso nota que não se trata, nesse segundo caso, de ausência de imperatividade, mas, sim, de uma graduação dela. As normas dispositivas teriam a sua imperatividade sustada pelo advento de uma condição, geralmente imputada às partes. A conclusão é no sentido de que todas as normas jurídicas precisam ter, necessariamente, carga imperativa. 

           

1.      Constituição como sistema jurídico

 

A Constituição é um sistema de normas jurídicas. As normas constitucionais, portanto, conservam os atributos essenciais das normas jurídicas, com especial relevo à imperatividade, pelo que, o comando que contém deve ser zelosamente observado pelos seus destinatários.

As disposições constitucionais, além dessa necessária carga imperativa, são detentoras de um nítido caráter de superioridade hierárquica, aurido de sua origem, em outro lugar.

Cumpre perceber, também, dois pontos preliminares fundamentais. Primeiro, todo e qualquer dispositivo da Constituição deve, necessariamente produzir um efeito, sendo, na moderna doutrina, absolutamente inadmissível que se entenda, como se verá na classificação de Azzaritti, um grupo de normas constitucionais como meramente indicativas. Segundo, a partir da admissão de que não há, nas Constituições modernas, nenhum dispositivo destituído de eficácia, é também necessário que se perceba que as duas categorias básicas de dispositivos constitucionais- princípios e normas – não produzem os mesmos tipos de efeitos. Realmente, os princípios constitucionais, de normatividade mais subjetivas, de menor concreção, de menor densidade semântica e, portanto, de maior longevidade por propiciar margem de interpretação mais ampla, tem como efeitos úteis fundamentais a orientação ao legislador, na produção da norma, pra que este se contenha, em seu trabalho, às disposições que o vinculam, e, também, em um segundo momento, para aferir a constitucionalidade da lei, norma ou ato realizados,checando a compatibilidade desses com o conjunto de princípios da Constituição. Os efeitos úteis dos princípios, então, em resumo, seriam o de contenção e orientação do trabalho do legislador, por um lado, e o de conferir a validade e eficácia a uma lei ou norma, ou, ao reconhecer a sua inconstitucionalidade, tirar-lhe ambas, condenando-a à nulidade. Já as normas têm outro tipo de efeito. Dotadas de maior concreção, maior densidade semântica, maior precisão conceitual e detalhamento, e, por isso, de menor longevidade por oferecer margem muito estreita ao trabalho de interpretação, prestam-se a regerem exatamente o ato, fato ou fenômeno a que se refiram, os quais ou serão válidos por estarem acomodados a essas normas, ou, contrariamente, serão tidos por nulos por serem ofensivos ao conteúdo constitucional.

 

2. Categorias de normas constitucionais

 

            A partir da lição dos constitucionalistas  italianos, as normas constitucionais são repartidas em duas categorias: as normas programáticas (ou diretivas) e as normas preceptivas. Esta é lição de Gaetano Azzariti.

            Inicialmente formulada para reconhecer duas categorias de efeitos, os impositivos e os meramente indicativos, essa classificação evoluiu para decidir que não há, nem pode haver, norma constitucional desprovida de eficácia. Todas as normas contidas na Constituição são jurídicas, pelo que todas são origens de um comando efetivo e que exige cumprimento, posição essa que ganhou divulgação e peso a partir da obra de Vezio Crisafulli.  

            A tentativa italiana de reduzir as normas programáticas a meros enunciados, simples noções ou indicativos filosóficos da linha e dos objetivos do governo, não logrou maior aceitação, sendo estas levadas à condição das preceptivas, isso é, determinadoras de um comando.

            Os constitucionalistas italianos fundamentaram, também, as distinções de mérito de uma e outra categoria das normas constitucionais que identificaram.

            Quanto ao destinatário, seriam programáticas as normas dirigidas ao legislador encarregado da confecção da legislação infraconstitucional.

            Seriam preceptivas, por seu turno, as normas endereçadas ao cidadão e ao juiz.

            Quanto ao objeto, seriam programáticas aquelas que incidissem sobre os comportamentos do Poder Público, do Estado, ao passo em que seriam preceptivas as dirigidas ao cidadão ou destinadas a reger as relações privadas.

            Quanto à natureza da norma, seriam programáticas as detentoras de alto teor de abstração e imperfeição, ou seja, normas que não apresentassem todos os elementos necessários à caracterização imediata do seu conteúdo, das relações que visava reger e das penalidades impostas, como também aquelas normas constitucionais que dessem apenas uma linha a seguir ao legislador ordinário. Seriam normas preceptivas as concretas, em cuja enunciação fossem encontráveis todos os elementos necessários à plena produção de seus efeitos.

 

            2.1 Classificação das Normas Constitucionais

 

            2.1.1. Classificação norte-americana

                       

            A primeira vem do direito norte-americano, que as dividiu em duas categorias: as auto-aplicáveis ou auto-executáveis (self executing provisions) e não auto-executáveis (not self executing provision). As primeiras seriam aquelas normas que se apresentam na Constituição com todos os elementos necessários à plena produção de seus efeitos. As segundas necessitam complementação para que produzam seus regulares efeitos. Pontes de Miranda ensinou que “quando uma regra se basta por si mesma, para sua incidência, diz-se bastante em si, self executing, self enforcing, self acting. Quando, porém, precisa das regras jurídicas de regulamentação, porque sem a criação de novas regras jurídicas que as complementem ou suplementem não poderiam incidir e ser aplicadas, dizem-se não-bastantes em si”.

 

            2.1.2. Classificação de Azzariti

 

            Outra classificação é a de Gaetano Azzariti, que as reconheceu em duas categorias: as normas programáticas e as normas preceptivas. As primeiras, programáticas, não conteriam nenhum comando, nenhuma obrigação, sendo apenas um enunciado geral político-filosófico. As preceptivas seriam impositivas, obrigatórias.

 

            2.1.3. Classificação de Crisafulli

 

            Configurando, de certa forma, um avanço em relação à classificação de Azaritti, outro italiano, Vésio Crisafulli, classificou as normas constitucionais em três grupos: normas programáticas, normas imediatamente preceptivas e normas de eficácia diferida. As normas programáticas, nessa classificação, teriam peso jurídico e seriam de cumprimento obrigatório, como também o seriam as outras duas.

           

            2.1.4. Classificação de José Afonso da Silva

 

            No Brasil, a melhor classificação, que é inclusive abraçada pelos tribunais superiores, vem de José Afonso da Silva, e distingue as normas constitucionais em três categorias:

a)      Normas de eficácia plena (apta para imediata produção de efeitos e não admitindo regulamentação por legislação infraconstitucional) e;

b)       Normas de eficácia limitada (que não produz nenhum efeito e não é aplicável antes de regulamentada por legislação infraconstitucional) e que admitem uma subdivisão, em: b.1) normas de princípio institutivo (que indicam uma legislação futura que lhes complete a eficácia e lhes propicie efetiva aplicação), e que, na definição do seu próprio autor, são aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos; para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei, umas deixando uma margem maior à discricionariedade política do legislador, outras fornecendo, já a partir da Constituição, alguns elementos e conteúdos obrigatoriamente impostos à futura lei, tolhendo, assim, a margem de escolha do legislador. B.1.1)Normas de princípios institutivos impositivas - lei que regerá a ocupação e edificação em faixa de fronteira e a que disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, das estruturas da Polícia Civil e da Polícia Militar, bem como a lei que disporá sobre a estrutura e atribuição dos Ministérios; b.2.2)Facultativas, ou permissivas - como a lei complementar federal que poderá autorizar os Estados a legislarem sobre questões específicas das matérias situadas sob sua competência legislativa privativa e as leis estaduais que poderão criar a Justiça Militar nos Estados; b.2) normas de princípio programático (nas quais o constituinte, ao invés de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a lhes traçar os princípios a serem cumpridos pelos seus órgãos legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos, como programas das respectivas atuações, visando à realização dos fins sociais do Estado). José Afonso da Silva as distribui em três categorias: a) normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade (como participação nos lucros e resultados), a proteção ao mercado de trabalho da mulher, a proteção em face da automação e o incentivo à produção e o conhecimento de bens e valores culturais; b) normas programáticas referidas aos Poderes Públicos (como a elaboração de planos regionais de desenvolvimento, a desapropriação por interesse social e a garantia de acesso às fontes da cultura nacional); c) normas programáticas dirigidas à ordem econômico-social em geral (princípios da ordem econômica, princípios da ordem social).

 

 

                        2.1.5. Classificação de Celso Bastos e de Carlos Ayres Brito

 

            Celso Bastos e Carlos Ayres Brito também propuseram uma classificação. Para esses mestres, as normas constitucionais podem ser normas de aplicação (aquelas que estão aptas a produzir todos os seus efeitos) e que se dividem em normas irregulamentáveis (incidem diretamente sobre os fatos regulados, impedindo qualquer regulamentação posterior, não admitindo tratamento senão pela própria Constituição) e regulamentáveis (são as que permitem regulamentação, sem qualquer restrição da parte da Constituição) ou normas de integração (são as que sentem uma distância entre a sua previsão ou comando e a efetiva condição de produção de efeitos, para o que é necessária a elaboração de legislação). Esta segunda categoria admite dois tipos, as normas complementáveis (exigem uma legislação integrativa para a produção completa de seus efeitos) e normas restringíveis (admitem a restrição do comando constitucional pelo legislador ordinário).

 

2.1.6.      Classificação de Luiz Roberto Barroso

 

Luiz Roberto Barroso também oferece a sua classificação, a saber:

a)      Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político, e que seriam normas constitucionais de organização;

b)      Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos, classificadas como normas constitucionais definidoras de direito;

c)      Normas constitucionais - têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado ditas normas constitucionais programáticas.

 

2.1.7.      Classificação de Maria Helena Diniz

 

Outra importante classificação, que vem ganhando espaço na doutrina, foi elaborada pela reconhecida professora paulista, que separa as normas constitucionais em normas supereficazes ou com eficácia absoluta (dotadas de efeito paralisante de toda a legislação infraconstitucional com elas incompatíveis, as quais vem sendo identificadas  nas cláusulas pétreas), normas com eficácia plena (reúnem todos os elementos necessários à produção completa de seus efeitos a partir da redação da própria Constituição, não exigindo, e às vezes não aceitando, legislação integradora), normas com eficácia restringível (cuja definição corresponde às normas de eficácia contida, de José Afonso da Silva, e que, em síntese, admitem legislação integradora, com efeito de restringir o seu alcance, mas a falta dessa legislação não tira a força normativa do dispositivo constitucional, que atua, então, livre dessa restrição por legislação infraconstitucional), e normas de eficácia relativa complementável (cuja produção de efeitos depende da elaboração da legislação integradora, sem a qual seu comando fica latente, sendo divididas em normas de princípio institutivo e de princípio programático.

 

 

3.                Estrutura, Validez, Vigência e Eficácia das Normas Constitucionais.

 

A partir da lição do professor Raul Machado Horta, temos que o conhecimento da estrutura da norma jurídica, de modo geral, e da norma jurídica constitucional, de modo especial, permite fixar a forma e características com que a norma se apresenta no mundo jurídico, mormente a constitucional, em que pese a sua particularíssima posição na ordem jurídica estatal.

 

A norma jurídica tem, assim, duas propriedades fundamentais, quais sejam: validez e a vigência.

 

 

4.                Validez e Vigência

 

Para Legaz Lacambra, a validez pertence à essência do Direito, e a vigência é a qualidade extraída da experiência.

 

De outra forma, a validez é o atributo de exigibilidade da norma, seu revestimento impositivo, ao passo que a vigência refere-se à obediência prestada à tal norma jurídica. Ou, validez é a aptidão jurídica pra produzir efeitos, e a vigência é a produção efetiva de efeitos pela norma jurídica.

 

 

5.                Eficácia

 

Hans Kelsen substitui a vigência pela eficácia e mergulha num campo mais propenso à fixação clara das diferenças entre um e outro conceito. Para o mestre austríaco, validez do direito significa que as normas jurídicas são vinculantes, e que todos os dela destinatários lhe devem comportamentos de acordo com as prescrições e imposições dessa norma. A eficácia localizar-se-ia em outro campo, o da efetividade, em que se mede a efetiva aplicação, a submissão real dos destinatários da norma a ela.

 

Partindo-se do conceito de validade em sentido amplo, é necessário, como alerta Maria Helena Diniz, que se distinga entre validade constitucional, formal e fática, de um lado, e a vigência e eficácia do outro.

 

 

6.                Validade constitucional

 

A validade constitucional indica que a norma está conforme com as disposições constitucionais. Válida, portanto, é a norma que respeita os comandos constitucionais que a regulam.

 

7.                Vigência Constitucional

 

Vigência, em sentido amplo, não é uma qualidade própria da norma jurídica, pois não depende ela de si própria para atingir essa condição. Será ela válida a partir de suas relações com outras normas jurídicas. Em outra forma, a norma jurídica é válida a partir da constatação de que sua formação se deu com observância das normas constitucionais a respeito de sua produção, e é eficaz a partir de sua inserção harmônica dentro do conjunto de outras normas jurídicas que pretende integrar. No primeiro caso, interessa-nos a forma; no segundo, o conteúdo e o sistema jurídico.

 

8.                Eficácia constitucional

 

A eficácia, por seu turno, diz respeito às condições fáticas e técnicas da atuação da norma jurídica e, principalmente, ao seu sucesso, como bem ressalta Maria Helena Diniz. É, assim, a qualidade do texto normativo de produzir, ordinariamente, seus regulares efeitos.

 

São importantes as palavras de Maria Helena Diniz quanto à eficácia. Para ela, a eficácia diz respeito ao fato de se saber se os destinatários da norma ajustam, ou não, seu comportamento em maior ou menor grau, às prescrições normativas, ou seja, se cumprem, ou não, os comandos jurídicos, se os aplicam ou não. E explica: casos há em que o órgão competente emite normas, que por violentarem a consciência coletiva não são observadas nem aplicadas, só logrando, por isso, ser cumpridas de modo compulsório, a não ser quando caírem em desuso; conseqüentemente, têm vigência, mas não possuem eficácia (eficácia social).

 

A eficácia em sentido técnico prossegue a autora, indica que a norma tem possibilidade de ser aplicada, de exercer, ou produzir, seus próprios efeitos jurídicos, porque se cumpriram as condições para isto exigidas (eficácia jurídica), sem que haja qualquer relação de dependência da sua observância, ou não, pelos destinatários.

 

É claro que a eficácia jurídica difere da eficácia constitucional quanto aos elementos que concorrem para sua ocorrência, já que nesta última é comum, recomendável e necessário o recurso a elementos extrajurídicos, extranormativos, para suportar essa eficácia.

 

(Apud Gabriel Dezen Junior, in Direito Constitucional, Ed. Vestcon.)