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Vacinas Gênicas

O IMPACTO SOBRE O CONTROLE DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

Celio Lopes Silva

Professor titular e chefe do Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

O desenvolvimento pioneiro da vacina contra a varíola feito por Jenner há quase dois séculos marcou, com grande sucesso, o início de uma nova era para a medicina moderna. Desde então, a imunoprofilaxia, ou vacinação, tornou-se a medida mais eficiente e menos dispendiosa de evitar doenças infecciosas. A erradicação da varíola, o sucesso do programa de vacinação contra a poliomielite e a redução da morbidez e mortalidade causadas por doenças infecciosas que ocorrem na infância são provas contundentes da importância da vacinação. Contudo, recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS), com base em dados epidemiológicos, passou a alertar os governos para o ressurgimento de várias doenças infecciosas e para os problemas de saúde pública delas advindos, principalmente nos países em desenvolvimento. Segundo a OMS, em todo o mundo nascem por ano em torno de 130 milhões de crianças, sendo que cerca de 12 milhões morrem com idades entre 0 e 14 anos. Aproximadamente 9 milhões destas mortes são causadas por doenças infecciosas (dengue, hepatite, meningite, malária, esquistossomose e outras), sendo 3 milhões contra as quais já existem vacinas de uso rotineiro (tuberculose, difteria, coqueluche, sarampo e outras). O desenvolvimento de novas vacinas que evitem, num futuro próximo, o aumento descontrolado destas e de outras doenças infecciosas é de fundamental importância para a humanidade.

As vacinas têm como objetivo fundamental a imunização prévia do indivíduo, de modo que ele passe a responder rápida e eficientemente quando em contato com o agente infeccioso, evitando assim a ocorrência ou desenvolvimento da doença. No decorrer dos tempos, diversas estratégias foram utilizadas para o desenvolvimento de diferentes vacinas. As vacinas de primeira geração, que se reportam principalmente ao começo deste século, foram produzidas com microrganismos vivos e atenuados (como é o caso da vacina BCG contra a tuberculose) ou mortos e inativados (como a vacina contra Bordetella pertussis). Contudo a eficácia dessas vacinas ainda é muito questionada.

Na última década, os avanços na tecnologia de desenvolvimento de vacinas permitiu a introdução de novas estratégias para a obtenção e produção de antígenos, assim como foram otimizadas novas maneiras de se administrar e apresentar esses antígenos para as células do sistema imune. Estas estratégias abriram caminho para inovações, particularmente no contexto do desenvolvimento de vacinas mais seguras, eficazes e polivalentes. Entre estas estão as de subunidades, consideradas de segunda geração, constituídas de antígenos purificados e provenientes de fontes naturais, sintéticas ou mesmo recombinantes. Mais recentemente, surgiram as vacinas gênicas ou de terceira geração, onde os genes ou fragmentos de genes, que codificam antígenos potencialmente imunizantes, são carreados por plasmídeos de DNA. Atualmente, o isolamento de genes é uma técnica dominada pela ciência devido ao grande desenvolvimento da biologia molecular. Os genes isolados são ligados a outros fragmentos de DNA denominados plasmídeos, que permitem a replicação do gene em bactérias ou células eucarióticas. Os plasmídeos usados em vacinas gênicas possuem seqüências de DNA necessárias para seleção e replicação em bactérias; promotores especiais para processos de transcrição e tradução; genes que conferem resistência a antibióticos; e seqüências específicas que permitem a expressão gênica em células procarióticas e eucarióticas. Após a clonagem do gene no plasmídeo, eles são introduzidos em bactérias hospedeiras, geralmente uma Escherichia coli, por um processo denominado de transformação bacteriana, com a finalidade de se produzir plasmídeos em larga escala e ter quantidade suficiente de DNA para a vacinação propriamente dita.

A primeira demonstração de que a injeção intramuscular de um gene poderia ser empregada como vacina gênica foi feita em 1993, por pesquisadores da indústria farmacêutica Merck. Eles demonstraram que a injeção intramuscular do gene que codifica uma nucleoproteína do vírus influenza poderia ser utilizada para imunização de camundongos contra essa virose. Esse fato causou enorme repercussão nos meios científicos e tecnológicos envolvidos no desenvolvimento de novas vacinas contra agentes infecciosos. Desde então foram desenvolvidas vacinas gênicas contra uma série de agentes patogênicos em modelos animais. Em 1994, por ocasião do primeiro encontro sobre vacinas, patrocinado pela OMS, tivemos a oportunidade de apresentar nossos resultados sobre vacinação contra a tuberculose empregando o gene que codifica o antígeno protéico hsp65 micobacteriano. Algumas dessas novas vacinas, principalmente aquelas contra AIDS e influenza, apresentaram excelente resposta em primatas, e já se encontram em fase de testes pré-clínicos em humanos.

A vacinação com DNA pode ser feita em várias espécies animais, por diversas vias e esquemas. Além da injeção intramuscular, que é a via mais utilizada, as vacinas gênicas também podem ser administradas por via intranasal na forma de aerosol, por via oral ou por via intradérmica através do bombardeamento de micropartículas de ouro cobertas com o material genético. Após imunização por via intramuscular, o material genético é incorporado às células musculares (miócitos) ou mononucleares como os macrófagos ou células dendríticas que são células apresentadoras de antígenos para o sistema imune. As partículas de DNA que forem endocitadas pelas células no sítio da inoculação permanecem no núcleo celular sem ocorrer incorporação ao genoma da célula hospedeira. As vias metabólicas da célula hospedeira são utilizadas para os processos de transcrição do DNA inoculado, e em seguida o RNA mensageiro é traduzido para que ocorra a síntese do antígeno protéico relacionado ao agente infeccioso. Este processo ocorre de forma muito semelhante àquele observado nas replicações virais. Os antígenos expressados endogenamente são processados pelas células apresentadoras de antígenos, e os fragmentos resultantes complexados com moléculas de classe I que são codificadas por genes do complexo de histocompatibilidade. Em seguida, os peptídeos resultantes da fragmentação do antígeno são apresentados na superfície celular para o reconhecimento e ativação específica de linfócitos T CD8 citotóxicos. Alguns dos antígenos produzidos pelas células musculares são secretados para o espaço intercelular, onde podem tanto estimular linfócitos B a produzir anticorpos específicos, como ser endocitados por outras células apresentadoras de antígenos. No processo de endocitose, os antígenos passam do compartimento extracelular para o interior das células apresentadoras e, por este motivo, são considerados antígenos exógenos e assim processados em compartimentos celulares que são diferentes daqueles realizados quando o antígeno é originado dentro da célula. Os fragmentos dos antígenos exógenos são complexados com moléculas de classe II, codificadas por genes do complexo de histocompatibilidade, e apresentados na superfície das células apresentadoras para o reconhecimento e ativação de linfócitos T CD4 auxiliares. As vacinas de DNA são, portanto, capazes de induzir ambos os tipos de imunidade protetora, humoral e celular, com estimulação tanto de linfócitos T CD4 como de T CD8 citotóxicos, sem o risco associado às vacinas de organismos vivos.

As vacinas gênicas, além da imunidade humoral e celular específica, oferecem vantagens adicionais em relação às vacinas clássicas. Nas vacinas gênicas, a síntese dos antígenos endógenos ocorre com características estruturais muito semelhantes à molécula nativa sintetizada pelo patógeno, criando epitopos conformacionais necessários para indução de uma resposta imune mais efetiva. A imunidade adquirida persiste por longo período de tempo devido à constante produção do antígeno dentro da célula hospedeira e à capacidade destes estimularem linfócitos de memória imunológica. No plasmídeo contendo o gene do agente infeccioso pode-se clonar outros genes, como, por exemplo, os de componentes estimuladores da resposta imune (IL-2, IL-12 e IFN-g) que auxiliam no processo de reconhecimento antigênico entre as células apresentadoras de antígenos e os linfócitos.

Em termos econômicos, o custo de produção das vacinas gênicas é significativamente menor do que o custo de produção das vacinas recombinantes, peptídeos sintéticos e outras. Essa vacina pode ser estocada como sedimento seco e à temperatura ambiente, sendo que no momento da administração é necessário somente a adição de pequena quantidade de água. Estas condições trazem vantagens econômicas para o estabelecimento de amplos programas de imunizações em regiões de difícil acesso.

VACINA DE DNA CONTRA A TUBERCULOSE

A tuberculose volta a ser um dos mais graves problemas de saúde pública em todo o mundo, principalmente nos países subdesenvolvidos. O Mycobacterium tuberculosis, que é o agente etiológico dessa doença, infecta atualmente mais de um bilhão de pessoas no mundo e é responsável pela morte de aproximadamente três milhões de pessoas por ano. A prevenção da tuberculose é feita em diversas partes do mundo pela utilização da vacina BCG. A eficácia dessa vacina varia de zero a 70% entre as diferentes populações do mundo submetidas ao teste. Assim, o alto índice de mortalidade dessa doença e a baixa eficiência da vacina BCG justificam o desenvolvimento de uma nova vacina.

Para o desenvolvimento de uma vacina gênica contra a tuberculose, nós introduzimos nos plasmídeos denominados pCDNA3 ou pHMG o gene de um dos antígenos imunodominantes de micobactérias que é a proteína de estresse hsp65. Efetivamente, ambos os promotores dirigem a expressão de genes micobacterianos em células de mamíferos. Os plasmídeos contendo o gene micobacteriano foram inoculados por via intramuscular em camundongos. Todos os testes de vacinação foram comparados com um grupo de animais inoculados somente com BCG intradérmico. A produção de anticorpos específicos no soro dos animais imunizados com o gene hsp65 foi observada duas semanas após a terceira dose de DNA. A indução da resposta imune celular foi detectada por um teste específico, que é a medida da capacidadeproliferativa dos linfócitos presentes nos nódulos linfáticos, quando colocados na presença do antígeno hsp65. Mediadores e reguladores da resposta imune, como as interleucinas, também foram detectados no sobrenadante de cultura, ou nos próprios linfócitos dos animais imunizados, tanto por técnicas de ELISA quanto RT-PCR. Nestes, estava aumentada a liberação de IFN-g, IL-2 e IL-12 (que são consideradas citocinas estimulatórias da resposta imune celular), mas não de IL-4, IL-10 e IL-13 (que são supressoras dessa resposta). Portanto, o padrão de resposta imunológica induzida nos camundongos, pela imunização com o gene hsp65, foi considerado do tipo Th1, o qual é altamente favorável para a eliminação de agentes infecciosos.

O procedimento utilizado em nossos trabalhos para a imunização dos camundongos com o gene hsp65 foi muito efetivo e protegeu os animais contra posterior infecção com M.tuberculosis de alta virulência. A proteção conferida pela vacina gênica foi bem maior que aquela apresentada pela BCG. Desta forma, fomos os primeiros a demonstrar que a imunização com um único antígeno de M.tuberculosis protege efetivamente contra a tuberculose experimental. Com base nestes dados, clonamos outros genes micobacterianos e testamos as suas respectivas atividades protetoras. Os genes que codificam os antígenos hsp70 e ESAT-6 também induziram proteção significativa e similar àquela mostrada por hsp65. Por outro lado, imunização com genes que expressam as proteínas denominadas hsp10 ou 36 KDa não mostrou atividade protetora contra infecção por M.tuberculosis.

Os modelos desenvolvidos em nossos trabalhos também permitiram identificar quais as características essenciais das células que conferem proteção imunológica contra infecção por M.tuberculosis. O estudo detalhado das duas principais subpopulações de linfócitos T mostrou que existem vários fatores relacionados com a proteção contra o bacilo da tuberculose. Assim, os linfócitos T CD8 estimulados pela vacina gênica são preferencialmente do tipo citotóxicos, isto é, têm a capacidade de destruir células que albergam o bacilo da tuberculose em seu interior, permitindo a eliminação dos mesmos. Tanto os linfócitos T CD8 como os T CD4 secretam em altas concentrações as interleucinas estimuladoras do sistema imune, como a IL-2, IL-12 e IFN-g, as quais ajudam a manter ativados vários sistemas responsáveis por eliminação de microrganismos da célula hospedeira. A transferência de linfócitos T CD8 de animais vacinados para animais não-vacinados protege estes últimos da infecção pelos bacilos virulentos, mostrando que estas células são fundamentais para os processos de defesa. A maioria dos linfócitos T CD4 e T CD8 específicos para o antígeno usado na vacinação apresentava alta expressão do marcador de superfície celular CD44hi, que é uma molécula presente nas células de memória. Estas células, com seu respectivo marcador, puderam ser detectadas por citometria de fluxo mesmo 18 meses após a imunização. Nossos resultados mostraram ainda que, quando a imunidade celular é desenvolvida num microambiente contendo altos níveis de IL-4, como aquele observado após vacinação com BCG, as células T perdem sua capacidade citotóxica, produzem pouco IFN-g, e há pouca diferenciação de células de memória. Além disso, estas células tornam-se produtoras de citocinas do padrão Th2, que são supressoras da resposta imune celular. Estes fatos poderiam explicar a baixa capacidade protetora da BCG contra a tuberculose.

Os benefícios práticos e estratégicos resultantes do desenvolvimento de vacinas gênicas são inúmeros, como mencionado anteriormente, e absolutamente desejáveis no âmbito da realidade brasileira. O impacto sobre o controle das doenças infecciosas que podem ser prevenidas por imunização gênica será, provavelmente, uma das aquisições mais importantes advindas do domínio desta nova tecnologia.

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